terça-feira, 23 de janeiro de 2018

COLUNA WILSON BELCHIOR: Os mísseis da Palma

Os fatos em que se baseia esse poema, são absolutamente verdadeiro. Procurei descrever o evento, da forma mais simples e real que permitiram minhas limitações, com o fito maior de ser facilmente inteligível.
Sem pecado e sem juízo, nos idos de 1954,
Semana Santa, de férias na Palma eu estava,
E numa sexta feira escondido de todos saí
Para caçar na lagoa.


Livre como a brisa matinal, descalço, só de
Calção e com os bolsos cheios de pedra,
Baladeiras no pescoço, água pela cintura e
Barro pelas canelas, andei entre as remeleiras
Caçando passarinho, mas passarinho não vi.

Procurei no espelho d’água sob as árvores por
Imagens refletidas, não vi imagens ou coloridos.
Duas horas da tarde, os sapos não cantavam,
Físicamente sumiram nos flutuantes musgos,
Ou na vasa pardacenta da diatomácea.

No ar um cheiro de metano, da decomposição
Da matéria orgânica que lá apodrecia. Dos
Troncos sumiram os calangos, em quem eu
Testava e afiava a minha pontaria.

Paisagem pobre em diversidade, pequenas
Árvores de caules retorcidos, raquíticos galhos
Com folhagens acinzentadas, como as imágens
Em preto e branco das velhas fotografias.

Tudo estava calmo, é que no meu sertão
A Natureza quase onipotente, em oceânica
Mudez desfalece no dia da morte de Jesus...

Muito cansado e já querendo ir embora,
O inusitado aconteceu: vi numa remeleira
Um filhote de bem-te-vi que saíra do ninho,
Ainda não voava, pulava de galho em galho
Tentando ao ninho voltar, sem saber como.

Bico triangular, cor ambar, bordas amareladas,
A pele escura, a boca imensa, canhões no corpo
E penas já aparecendo, nas pontinhas das asas.

Incontinente saquei a baladeira, começei a atirar
E o impensável aconteceu: errei todos os tiros.

Eu era um menino cheio de vontade, que com a
Vontade pensava, naquele instante meu querer
Resumia-se a matar aquele passarinho.

Atirei mais vezes e outras vezes mais, parando
Quando vi no alto galho da mais alta remeleira,
O que me pareceu ser os pais do bem-te-ví.

De repente, o macho enfurecido, movido pelo
Instinto em defesa do seu filho, veio como
Míssil contra mim. Apavorado fui à remeleira,
E a balancei, agarrei o filhote e mergulhei
E mergulhando livrei-me da agressão,
Quando cheguei da lagoa à beira.

Com o filhote piando na mão, cruzei a estrada
De Camocim por trás do matadouro, planejando
Criá-lo, para depois o soltar na lagoa.

Já bem longe, ciente que a agressão terminara,
Qual não foi o meu espanto quando num pereiro
No caminho, encontrei os pais do bem-te-ví.

Dessa vez os dois várias vezes vieram, vinham
E iam, em razantes como mísseis contra mim.

Para me proteger entrei num mata-pasto e
Segurando o filhote que piava, acuado fiquei
Sendo atacado por esses mísseis da Palma.

Por ser Semana Santa, começei a imaginar
Que aquilo era castigo, se com o bico acertassem
Meu ôlho, eu seria da Palma o novo cego, ou se
Trespassassem minha testa, o novo morto.

O medo me fez nitidamente ouvir o sino bater,
E eu imaginar indo em cortejo pela estradinha
Do córrego, num palanquím, carregado pelo
Anésio e o tio Darcy, acompanhado por meus
Pais chorosos e meus avós, pelo Pe. Benedito,
Por seu Irineu sacristão, levando uma jarra
De água benta e um hissope, e pela banda
Do meu padrinho André, da igreja para o
Cemitério dos Gomes.

Finalmente, quando pensava que tivessem
Me perdido, os fui encontrar no tamarindeiro
Velho existente, frente à casa dos Galdinos.


Mas, dessa vez livrei-me deles facilmente,
Pois correndo e chegando estava, à casa
Dos meus avós, levando na mão fechada,
O corpo já inanimado do mísero bem-te-vi.




(*) Wilson Belchior é engenheiro civil, articulista, poeta e memorialista.  

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