A decisão sobre levar ou não adiante uma gravidez é um direito
fundamental da mulher? Quando começa a vida? Como evitar as milhares de mortes
de mulheres por abortos inseguros no
Brasil? A quem cabe decidir sobre o tema, Judiciário ou Legislativo?
Essas são
algumas das questões que devem ser debatidas nesta sexta (3) e na próxima
segunda (6) nas audiências públicas do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a
ação que pede a descriminalização do aborto.
Cerca de 60
pessoas, entre representantes de religiões, médicos, juristas e ativistas
brasileiros e estrangeiros, apresentarão suas posições aos ministros do
tribunal e ao público presente.
A discussão
passa por definir se o aborto deve ser visto como um problema de saúde pública,
se o direito de decidir sobre o próprio corpo no caso de uma gestação é
garantido pela Constituição, e se tratar a interrupção da gravidez como crime é
ou não uma medida eficiente para evitar a prática do aborto e, ao mesmo tempo,
proteger a vida das mulheres.
A audiência
foi convocada pela ministra Rosa Weber, relatora da Ação por Descumprimento de
Preceito Fundamental (ADPF) 442, apresentada pelo PSOL, com assessoria técnica
do Instituto de Bioética Anis. Ainda não há data marcada para o julgamento do
caso.
A ação
argumenta que os artigos do Código Penal que proíbem o aborto afrontam
preceitos fundamentais da Constituição Federal, como o direito das mulheres à
vida, à dignidade, à cidadania, à não discriminação, à liberdade, à igualdade,
à saúde e ao planejamento familiar, entre outros. O PSOL pede que o aborto
feito até a décima segunda semana de gestação não seja considerado crime.
Atualmente, o
aborto só é permitido no Brasil em caso de estupro, risco de vida para a mãe e
feto com anencefalia- neste último caso a autorização foi dada pelo Supremo, em
julgamento de 2012.
O STF recebeu
mais de 180 pedidos para falar na audiência sobre o pedido de descriminalização
do aborto e selecionou os palestrantes com base na representatividade, na
qualificação técnica e na "pluralidade" das opiniões.
A BBC News
Brasil conversou com algumas dessas pessoas para saber que argumentos levarão
ao debate. Os
palestrantes pró-descriminalização do aborto
O grupo de
pessoas selecionadas para falar a favor da descriminalização do aborto é
composto por diferentes setores - de médicos a ONGs internacionais e grupos
religiosos que defendem que as mulheres devem ter autonomia para interromper a
gestação.
Cada setor
deve se aprofundar em uma dessas quatro linhas de argumentação identificadas
pela BBC News Brasil:
Morte
das mulheres - O primeiro dia
de audiências abordará o efeito da legislação sobre aborto em diferentes
aspectos da saúde - psicológico e físico, além do impacto social. Os médicos
favoráveis à descriminalização devem expor a experiência de tratar mulheres com
complicações decorrentes de abortos inseguros.
A médica
ginecologista e obstetra Melania Amorim disse à BBC News Brasil que defenderá
que a descriminalização é necessária para reduzir a mortalidade materna e o
número de abortos provocados. Segundo ela, interrupções da gestação feitas de
forma insegura são a quarta principal causa de morte de materna no Brasil.
A médica diz
que, ao longo dos quase 30 anos de carreira, atendeu na rede pública dezenas de
pacientes com complicações graves de abortos clandestinos. Mas a primeira
experiência foi a que mais impactou.
"Eu tinha
17 anos, tinha acabado de entrar na faculdade e estava estagiando num hospital.
Uma menina de 13 anos chegou já desorientada, em estado grave após um aborto
clandestino. Ela entrou em estado de choque séptico e morreu", conta.
"Entrei
na maternidade esperando ver partos lindos e bebês saudáveis e me vi sempre à
frente da morte. Já me deparei várias vezes com mulheres nessa situação.
Hemorragia e septicemia. As mulheres recorrem a instrumentos perfurantes ou
soluções tóxicas."
Melania diz
que também apresentará dados para sustentar a tese de que a descriminalização
do aborto poderá, inclusive, diminuir as interrupções de gestações, na medida
em que o tema deixará de ser "tabu".
"Você
evita o aborto de repetição, que é responsável por mais de 40% dos abortos
provocados. Com o acolhimento das mulheres durante e após o aborto, você evita
um próximo aborto. Você consegue ouvir a mulher e aconselhá-la a usar um método
contraceptivo eficiente", afirma.
Um estudo que
deve ser mencionado, na audiência, é o da pesquisadora Gilda Sedgh, do
Instituto Guttmacher, de Nova York, que aponta que, em países onde o aborto é
crime, as taxas de aborto chegam a ser um pouco mais altas que as de nações
onde o procedimento é legalizado.
Conforme o
levantamento, a taxa é de 37 abortos a cada mil mulheres em países que vetam o
aborto em qualquer circunstância ou que só o permitem em caso de risco de vida
para a mãe. Em nações onde a interrupção da gravidez é permitida e oferecida
mediante pedido da gestante, o número de abortos é de 34 para cada mil
mulheres.
Desigualdade
social - Antropólogos e
sociólogos favoráveis à descriminalização disseram à BBC News Brasil que
pretendem demonstrar que a proibição do aborto têm impactos sociais, ao reforçar
a desigualdade entre ricos e pobres, já que as mulheres mais pobres acabam
recorrendo a métodos inseguros, enquanto as que têm dinheiro podem pagar por um
aborto em uma clínica particular ou fazer em países onde isso é permitido.
A pesquisadora
Débora Diniz, coordenadora do Instituto de Bioética Anis, apresentará um estudo
que mostra que uma em cada 5 mulheres de até 40 anos já fizeram aborto no
Brasil. Mas as mais pobres, ela destaca, são as mais afetadas pela
criminalização.
"Sabemos
que em todas as classes sociais se faz aborto, mas as mulheres mais
precarizadas, negras e indígenas, do Norte, Nordeste e Centro-Oeste do país,
estão mais vulneráveis à experiência do aborto e também aos efeitos perversos
da lei penal, com risco de cadeia, graves sequelas ou morte", disse ela à
BBC News Brasil.
Tratados
internacionais - Já as ONGs
internacionais devem focar na comparação das leis brasileiras com as de outros
países, e analisar a criminalização do aborto do ponto de vista do direito
internacional.
A pesquisadora
Margareth Wurth, do Human Rights Watch, uma das maiores instituições de defesa
de direitos humanos do mundo, disse à BBC News Brasil que a ONG defenderá que o
trecho do Código Penal brasileiro sobre aborto viola tratados internacionais
firmados pelo Brasil.
"As
punições previstas na legislação penal brasileira para o aborto são
incompatíveis com as obrigações do Brasil perante leis internacionais",
disse Wruth.
"A
criminalização do aborto coloca em risco direitos fundamentas estabelecido em
tratados de direitos humanos firmados pelo Brasil, como o direito à
privacidade, igualdade e à informação."
O Human Rights
Watch também deve ressaltar que a maioria dos países desenvolvidos, como
Estados Unidos, Canadá e membros da União Europeia, tem legislações que
permitem a interrupção da gravidez.
"Há uma
tendência mundial de expandir os abortos seguros. Irlanda, Argentina e Chile
caminham para expandir as hipóteses legais de aborto. Essa é uma oportunidade
para o Brasil se unir a essa tendência", afirma.
Estado
laico - O grupo
Mulheres Católicas pelo Direito de Decidir - ONG de proteção aos direitos das
mulheres integrada por católicas - afirmará que, no catolicismo, "há
incertezas sobre a questão do aborto", além de defender que,
independentemente disso, o Brasil, por ser um Estado laico (com separação entre
Igreja e Estado), não deve ser influenciado por "qualquer credo
religioso".
"Somente
na segunda metade do século 19, em 1861, o aborto foi declarado um pecado, sem
nunca ter se tornado objeto de dogma. A Igreja muda assim como a sociedade
muda. Foi assim em relação à escravidão e foi assim em relação aos direitos
humanos, e pode ser novamente quanto à questão do aborto", diz a ONG, no
resumo das argumentações enviado para o STF.
Para as
integrantes do grupo, a descriminalização ajudaria a evitar a morte de mulheres
em abortos inseguros. "A vida
humana é um precioso dom a ser defendido, mas não se pode restringir essa
proteção à vida do feto e seguir culpando as mulheres que abortam,
condenando-as à morte, especialmente as mulheres pobres e negras, nas clínicas
clandestinas, em nome de uma suposta 'defesa da vida'", completa.
Os
palestrantes contrários à descriminalização do aborto. As pessoas
selecionadas para falar contra a descriminalização também vêm de diferentes setores
- são juristas, religiosos e pesquisadores.
O foco deles
deverá ser o de que a vida começa na concepção e que, portanto, o aborto seria
uma violação do artigo da Constituição que garante "o direito à
vida". Outro ponto que deve ser abordado é o fato de a discussão estar
sendo feita pelo Judiciário e não o Legislativo.
São três os
principais argumentos a serem defendidos:
'Proteger
o mais vulnerável' - O bispo da
diocese de Rio Grande, dom Ricardo Hoepers, que falará em nome da Confederação
Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), afirmou à BBC News Brasil que defenderá
que o aborto é "um ato contra a vida".
"A vida
humana tem seu início na concepção e acreditamos na integralidade da vida
humana desde o início da vida. O aborto é um ato desproporcional, porque o feto
é inocente, indefeso. O ser humano precisa desses nove meses de proteção. A
descriminalização contraria a nossa legislação que prevê a garantia à
vida", disse.
Medidas
para ajudar mães que não querem ter filhos - Para dom
Ricardo Hoepers, a redução das mortes provocadas por abortos clandestinos não
passa pela descriminalização, mas sim por políticas voltadas a "acolher
mulheres" que não querem ter filhos.
"Em vez
de descriminalizar, temos que dar condições para que essas mulheres tenham as
crianças, ter políticas de auxílio. Achamos estranho que o aborto seja uma
conquista, uma bandeira, para ser divulgado como uma vitória. É um trauma, um
sofrimento. Acreditamos que com a descriminalização estamos aumentando o
sofrimento", afirma. "Descriminalizar
não é a solução. É um imediatismo."
Decisão
do Congresso - Enquanto
grupos religiosos focam na definição de quando a vida começa, juristas
contrários à legalização do aborto pretendem defender que não cabe ao
Judiciário decidir sobre o tema.
Essa vai ser,
por exemplo, a linha de argumentação da advogada Angela Vidal Gandra da Silva
Martins, que falará pela União dos Juristas Católicos de São Paulo. "A vida
foi considerada inviolável pelos constituintes, foi colocado isso na
Constituição. Se quisermos mudar algo, o espaço democrático requer
representatividade popular. Se quiséssemos debater a vida, o lugar para esse
debate é o Parlamento, o Legislativo", afirmou à BBC News Brasil.
"Não cabe
ao Supremo legislar sobre um tema de tanta relevância para a vida
pública."
A advogada
também afirma que, como mulher, não acha que a autonomia sobre o corpo valha
durante a gestação. "Se eu
tivesse que falar como mulher e ser humano sobre o direito ao próprio corpo,
acho que a mulher tem direito de regular suas relações sexuais. A partir do
momento que ela concebeu, aquela vida depende dela, não é dela."
Participação
da sociedade - Se as posições
dos diferentes atores ouvidos pela BBC News Brasil são divergentes, em um ponto
eles concordam, que as audiências são uma oportunidade de incluir a sociedade
civil no debate sobre um tema que têm impacto direto na vida das mulheres.
"A participação
da igreja faz parte da democracia do país. Queremos contribuir com a discussão,
não como um ponto de vista fundamentalista", afirmou dom Ricardo Hoepers.
A expectativa
é que grupos favoráveis e contrários à descriminalização se reúnam para
acompanhar as audiências. Grupos feministas organizaram um evento chamado
"Festival pela Vida das Mulheres", com shows e palestras no Museu da
República, em Brasília. Um telão foi montado lá para projetar as audiências.
"A
audiência tem a função de qualificar o debate público sobre o tema para além
das fronteiras da Corte, com efeitos que, acredito, chegarão até o debate das
eleições deste ano. A lista de expositores convidados mostrou o compromisso do
STF em promover um debate sério, plural, com participação de diversas
organizações da sociedade civil com experiência no tema e dados confiáveis a
apresentar", disse Débora Diniz.
Como o mundo
tem decidido essa questão - As decisões
sobre aborto têm sido tomadas por diferentes instâncias pelo mundo. Na Europa,
grande parte dos países descriminalizou o aborto por decisões dos Parlamentos.
Já nos Estados
Unidos, Canadá e alguns países da América Latina o Judiciário teve papel de
destaque na discussão sobre o tema. Em 2006, a
Corte Constitucional da Colômbia decidiu que o aborto deve ser permitido, em
qualquer estágio da gravidez, se a saúde mental ou física da mulher estiver em
risco - na prática as mulheres passaram a ter o direito de fazer o procedimento
em caso de gravidez indesejada.
Nos Estados
Unidos, o aborto foi legalizado a partir de uma decisão histórica da Suprema
Corte, em 1973, conhecida como"Roe vs Wade". Mais recentemente, em
2016, o tribunal derrubou uma lei do Texas que impunha restrições a
procedimentos de interrupção da gravidez feitos no Estado.
No Canadá, uma
decisão de 1988 da Suprema Corte confirmou o direito irrestrito das mulheres do
país à interrupção da gravidez. O Senado da Argentina deve votar na próxima
semana um projeto de lei que descriminaliza o aborto. A Câmara dos Deputados
aprovou o texto com uma margem apertada.
O Brasil está
entre os países com legislações mais restritiva ao aborto no mundo, juntamente
com a maioria das nações da América Latina, Caribe, África e Oriente Médio.(BBC)
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