Ao
debater o regime militar (1964-1985), integrantes da equipe de transição e do
futuro governo Bolsonaro dizem que a repressão da época - que deixou mais de
400 pessoas mortas e desaparecidas, de acordo com o relatório da Comissão
Nacional da Verdade - ocorria no contexto de uma guerra: entre o Estado
brasileiro e grupos armados que tentaram impor o comunismo.
Mas um
levantamento da BBC News Brasil nos arquivos daquela época mostra que a
repressão e a vigilância não se resumia à esquerda armada. Até mesmo pessoas
que hoje fazem parte da equipe de transição do presidente eleito foram vigiadas
de perto pelo aparato de inteligência dos militares - alguns, inclusive, foram
considerados "infiltrados comunistas" e "subversivos".
"(O
golpe de 64) Foi um contragolpe contra um movimento crescente de comunistas. Os
militares assumiram o poder, e tivemos uma guerra", disse ao jornal O
Globo o cientista político e professor aposentado da UnB, Antônio Flávio Testa.
Ele participou do grupo de militares e intelectuais que formulavam propostas
para Bolsonaro, e hoje faz parte da equipe de transição. Na década de 1970,
porém, o próprio Testa foi alvo de um inquérito aberto contra si e chegou a ser
detido "por algumas horas", por participar de atividades ligadas ao
movimento estudantil.
Quem
investigava?
O Sistema
Nacional de Informações (SNI) foi criado em junho de 1964, poucos meses depois
do golpe militar - que, em 31 de março daquele ano depôs o presidente João
Goulart e estabeleceu um regime autoritário que durou até 1985.
O SNI foi
idealizado pelo general Golbery do Couto e Silva, e era composto por um Agência
Central, em Brasília, e agências e escritórios espalhados por todo o país e em
todos os órgãos do governo. O SNI existiu até 1990, quando foi substituído por
uma estrutura menor e sob controle civil. O conjunto todo era chamado de
"comunidade de informações" do regime.
Como os
integrantes da equipe de transição de Bolsonaro e do futuro governo aparecem
nos arquivos do SNI?
O
futuro presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), o
economista Carlos Doellinger, foi nomeado num documento de 1985 como
"infiltração comunista" no governo de José Sarney, que havia acabado
de tomar posse. Já o guru econômico de Bolsonaro, Paulo Guedes, teve sua ficha
levantada quando pediu um passaporte de viagem, nos anos 1970 - mas nada pesava
contra ele.
O
cientista político Antônio Flávio Testa, que fez parte do grupo de formuladores
das políticas de Bolsonaro e integra o gabinete de transição, era considerado
"subversivo" porque participava do movimento estudantil da
Universidade de Brasília (UnB), nos anos 1970, e chegou a ser detido por
algumas horas, segundo contou à reportagem.
O próximo
ministro da Educação, Ricardo Vélez Rodríguez, foi vigiado por ser estrangeiro
e por participar de congressos de filosofia na década de 1980. A inteligência
da ditadura também mencionou textos dele contra a Teologia da Libertação, uma
ala de esquerda da Igreja Católica, em análises de conjuntura.
O futuro
ministro do Gabinete de Segurança Institucional, Augusto Heleno - que foi
comandante militar na Amazônia e chefe da missão de paz no Haiti, a Minustah -
aparece como integrante de uma chapa apoiada pelo governo do general João
Figueiredo na disputa pelo Clube Militar. Dickson Melges Grael, pai dos
velejadores Lars e Torben Grael, fazia parte da chapa adversária.
As
pessoas mencionadas nos documentos foram procuradas pela reportagem, mas só
Antônio Flávio Testa quis comentar o assunto.
'Até
quem nunca sonhou em ser comunista era vigiado'
A maioria
das pessoas monitoradas pela inteligência do regime militar nunca teve qualquer
envolvimento com o comunismo organizado ou com a esquerda, de acordo com o
historiador especializado em história política Antônio Barbosa.
Isso
porque quando o SNI surgiu, em 1964, o mundo vivia uma tensão crescente entre
os Estados Unidos - capitalista - e a União das Repúblicas Socialistas
Soviéticas, capitaneada pela Rússia comunista. Ao tomarem o poder no Brasil, os
militares justificaram o novo regime como uma forma de evitar que o país
aderisse ao bloco soviético - e esse discurso se manteve ao longo de todo o
período militar, diz Barbosa, que é professor da Universidade de Brasília
(UnB).
"Depois
de 1961, quando Cuba se declara marxista-leninista, a Guerra Fria atravessou o
Oceano Atlântico e veio da Europa para as Américas. Nesse momento ocorrem uma
série de golpes militares de direita, anticomunistas, na América Latina,
inclusive no Brasil", diz ele.
"Muito
do trabalho dos órgãos de segurança, como o SNI, era o que eles chamavam de
'luta contra a subversão'. Na verdade, era a luta contra as esquerdas (...),
que ia muito além da parcela que fazia a luta armada. O espectro dos inimigos
do regime era muito amplo. Entravam aí liberais, democratas de forma geral,
socialistas, e qualquer um que não rezava pela cartilha do regime", diz
ele.
De 251
acervos, só 40 foram encontrados até hoje
Ao longo
dos anos, o SNI produziu um acervo gigantesco. Os dossiês principais eram
identificados com a sigla ACE - Arquivo Cronológico de Entrada - e iam sendo
numerados em ordem direta, conforme eram produzidos. "Só na Agência
Central, a numeração (dos ACEs) chegou a cem mil em 1978. E aí eles zeraram a
conta. É por isso que, a partir deste ano, a numeração fica baixa",
explica o historiador Pablo Franco, que trabalha com o acervo da ditadura no
Arquivo Nacional, onde o material está guardado hoje.
Infelizmente,
apenas uma pequena parte desse material se salvou. O restante não foi
encontrado até hoje, e o destino desses documentos é incerto.
"O
SNI era a 'cabeça' do sistema de informações, mas os outros órgãos que foram
criados no regime alimentavam o SNI. Então você tinha o Centro de Informações
do Exército, o Cenimar (da Marinha) e o Cisa (da Aeronáutica). Eles vigiavam os
militares das forças, mas também a sociedade de forma geral. Dentro de cada
órgão público, de cada universidade, tinha uma estrutura dessas", conta
Pablo.
"A
gente sabe por fontes documentais, por exemplo, que dentro do Ministério da
Educação tinha uma DSI (Divisão de Segurança e Informações). Mas o MEC nunca encontrou
os papéis produzidos por essa Divisão. A gente sabe que existiu, mas não se
sabe o paradeiro dos documentos", diz ele.
Desde
2008, historiadores do Arquivo Nacional que investigam esse período histórico
já identificaram 251 agências e diretorias de inteligência, mas apenas 40
dessas tiveram seus documentos recuperados, segundo Pablo.
Vélez
Rodríguez e a Teologia da Libertação
Nascido em
Bogotá, na Colômbia, e naturalizado brasileiro, Vélez Rodríguez é filósofo e
teólogo de formação. Chegou ao cargo de ministro da Educação do futuro governo
depois de indicado pelo também filósofo e guru conservador Olavo de Carvalho.
Em seu blog, Vélez diz que os brasileiros viveram nos últimos anos como
"reféns de um sistema de ensino alheio às suas vidas e afinado com a
tentativa de impor, à sociedade, uma doutrinação de índole cientificista e
enquistada na ideologia marxista, travestida de 'revolução cultural
gramsciana'".
Como
professor - e estrangeiro - Vélez não escapava do olhar atento da Comunidade de
Informações do regime.
Num
documento de 1985, a Assessoria de Segurança e Informações (ASI) da
Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) pede uma checagem das informações
sobre ele na base de dados do Sistema Nacional de Informações (SNI), antes dele
assumir o cargo de professor. Outro trecho de dossiê do mesmo ano registra a
presença de Vélez num seminário de filosofia organizado pela Arquidiocese do
Rio de Janeiro e pela Sociedade Brasileira de Filósofos Católicos, em outubro
daquele ano - e visto com desconfiança pelos militares.
Além
disso, os relatórios do SNI também citam Vélez em alguns momentos como autor de
estudos e artigos críticos à Teologia da Libertação - uma ala de esquerda da
Igreja Católica, surgida na América Latina, e para a qual os ensinamentos de
Jesus incluem a luta contra injustiças sociais.
Um dos
dossiês, da década de 1980, reproduz um trecho de um artigo do futuro ministro,
no qual ele afirma que a corrente do teólogo Leonardo Boff representava uma
"progressiva penetração da URSS (União Soviética) no nosso continente,
através da politização e da radicalização (...)". Em outro artigo, este
publicado no jornal O Estado do Paraná e citado pelos militares, Rodríguez diz
que a Teologia da Libertação faz uma "releitura tendenciosa" do texto
bíblico.
Augusto
Heleno contra o pai de Lars Grael
Paranaense
de Curitiba, Augusto Heleno Ribeiro Pereira é o militar mais próximo do
presidente eleito Jair Bolsonaro. Antes mesmo do começo da disputa eleitoral,
comandava as reuniões do grupo de formuladores do programa de governo do
candidato do PSL. Quase foi candidato a vice-presidente na chapa de Bolsonaro,
no lugar de Hamilton Mourão - o que só não aconteceu porque o partido de
Heleno, o PRP, não topou.
Nos papéis
da ditadura já digitalizados e acessíveis ao público, Heleno aparece uma única
vez. Trata-se de um dossiê de janeiro de 1984 sobre a eleição para a diretoria
do Clube Militar, no Rio de Janeiro, que aconteceria em maio.
Heleno -
que na época era major do Exército - integrava a chapa "governista"
na disputa pelo comando do clube. Conforme o dossiê, o grupo dele tinha o apoio
do ministro do Exército da época, Walter Pires de Carvalho e Albuquerque. A
chapa de Heleno era encabeçada por um general de três estrelas chamado Tasso
Villar de Aquino. Heleno era suplente do Conselho Fiscal.
Do
outro lado estava a chapa "Soberania Nacional".
"Dentre
os integrantes desta Chapa ('Soberania') encontram-se militares contestadores e
indisciplinados, como os coronéis Tarcísio Célio Carvalho Nunes e Dickson
Melges Grael, cujos comportamentos inconvenientes são sobejamente
conhecidos", diz um trecho do dossiê.
Dickson
Melges Grael é pai dos velejadores Lars e Torben Grael. No ano seguinte, 1985,
ele publicou um livro revelando informações sobre o atentado do Riocentro -
quando dois militares tentaram explodir uma bomba num show de música em
comemoração ao Dia do Trabalhador, no Rio.
Contando
com o apoio do governo do então presidente João Figueiredo, a chapa de Heleno
ganhou - teve 4.175 votos contra 2,5 mil do grupo de oposição.
Futuro
presidente do Ipea era visto como"infiltração comunista"
Em
novembro deste ano, o economista carioca Carlos Von Doellinger foi indicado
pelo guru econômico de Bolsonaro, Paulo Guedes, para assumir a presidência do
Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).
Doellinger
já foi pesquisador do Ipea - também deu aulas na Universidade Federal do Rio de
Janeiro e presidiu o Banco do Estado do Rio, o antigo Banerj. Mas em maio 1985,
no primeiro governo civil, ele era visto como uma "infiltração
comunista" pelo Cisa (Centro de Informações da Aeronáutica).
Doellinger
foi para o governo em 15 de março de 1985, quando o maranhense José Sarney
tomou posse como o primeiro presidente civil depois do ciclo de generais no
poder no Brasil. No mesmo dia, o Diário Oficial trouxe a nomeação da Esplanada
de Sarney. Francisco Dornelles, hoje governador interino do Rio, foi escolhido
ministro da Fazenda. E levou consigo Doellinger, que foi nomeado
secretário-geral adjunto do Ministério.
Em maio
de 1985, o Cisa produziu um dossiê batizado de "Infiltração comunista nos
diversos setores de atividade". "(...) os elementos abaixo, nomeados
para cargos e funções de confiança em órgãos do Poder Executivo, registraram
antecedentes negativos neste Centro", dizia o documento.
A lista de
pessoas com "antecedentes" é extensa e ideologicamente heterogênea.
Inclui Cláudio Lembo (que seria governador de SP pelo PSDB), Dilson Funaro
(veio a ser ministro da Fazenda); Dorothea Werneck (chegou a ministra do Trabalho);
Carlos Alberto Menezes Direito (foi ministro do STF); Cláudio Fonteles
(ex-Procurador-Geral da República) e até o jornalista de economia Carlos
Alberto Sardenberg.
O
documento segue descrevendo outras esferas em que teria havido
"infiltração comunista", inclusive na reformulação da educação
superior.
Embora o
governo já fosse civil, o SNI continuou existindo, e sob o comando de
militares. O órgão só foi desmantelado completamente em 1990.
Carlos Von
Doellinger acabou deixando o governo poucos meses depois, em agosto de 1985. Há
outros documentos que mencionam o economista - geralmente informes sobre sua
participação em congressos da área.
Ex-professor
da UnB considerado "subversivo"
Antônio
Flávio Testa é cientista político e professor aposentado da Universidade de
Brasília (UnB), além de assessor técnico do Senado Federal. Antes mesmo do
começo da campanha oficial, colaborou com o grupo de militares e especialistas
responsáveis por formular propostas para Jair Bolsonaro. Próximo dos generais
Augusto Heleno e Oswaldo Ferreira, Testa disse ao jornal O Globo que seu
envolvimento com o grupo não envolve identificação ideológica.
"Eu
não sou de esquerda nem de direita. E não considero Bolsonaro de direita, nem
Lula de esquerda. São dois programáticos", disse ele ao jornal O Globo, em
setembro de 2018.
Na década
de 1970, porém, Testa era estudante de graduação da UnB - e envolvido com o
movimento estudantil da época. Por isso, foi alvo de vigilância constante da
Assessoria de Segurança e Informações (ASI) da UnB, que era o braço do SNI
dentro da universidade.
Em 1976,
Testa integrava uma das chapas que disputou o comando do Diretório Central dos
Estudantes (DCE), a principal entidade estudantil da universidade. Concorreu
como diretor de Esportes, na chapa Oficina.
Para a
ASI da UnB, tanto o grupo de Testa quanto a chapa adversária, batizada de
Unidade, eram "subversivas". "Os panfletos distribuídos por
ambas as chapas continham incitações à indisciplina (...), além de aleivosias
ao Governo e à Administração da UnB. (...) Além de conter incitações à luta de
classes, à discórdia e à desordem". A eleição nunca aconteceu: foi suspensa
pela direção da universidade, e os integrantes das duas chapas - inclusive
Testa - tiveram inquéritos abertos contra si.
À
reportagem da BBC News Brasil, testa disse que não respondeu realmente ao
inquérito, e que o episódio não trouxe maiores consequências para ele.
"Nada (de consequência). Fiquei detido algumas horas", disse.
O nome de
Antônio Flávio Testa aparece em vários outros documentos produzidos pela
ASI-UnB ao longo da década de 1970. Toda participação numa palestra ou protesto
eram devidamente registradas pelo braço do SNI na universidade, às vezes
inclusive com fotografias. (BBC)
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