Em 1967, a escritora britânica Agatha Christie (1890-1976) decidiu
passar férias na Eslovênia. A ideia era descansar em privacidade. Encantou-se
com os lagos de Bled e de Bohinj. Descoberta por jornalistas, foi logo
questionada se estava em busca de inspiração para mais um de seus romances
policiais, de repente fazendo da região cenário para um enredo.
Conhecida
como a dama do crime, a escritora best-seller negou. Respondeu que a Eslovênia
era bonita demais para assassinatos.
A história tornou-se conhecida por essas paragens. E, repetida,
ganhou contornos de lenda.
Hoje, o pequeno país de 2 milhões de habitantes, resultante da
dissolução da leste europeia e socialista Iugoslávia, figura entre os lugares
mais seguros e não violentos do mundo. Como o país atingiu esse patamar?
A última
edição do Índice Global da Paz - criado pela revista The Economist em parceria com
o Instituto Internacional de Pesquisas pela Paz de Estocolmo e as universidades
de Londres, de Sidney e de Uppsala - classificou apenas 13 países como donos de
um "estado de paz" muito alto.
A Eslovênia figura neste seleto grupo ao lado de Islândia, Japão,
Dinamarca, Canadá, Áustria e outros, na 11ª posição. O Brasil está em 106º,
entre países como Uganda, Guatemala, Bolívia, Costa do Marfim e Estados Unidos.
Dados do governo federal esloveno confirmam a sensação de segurança vista
nas ruas - onde é comum que casas não tenham nem portões nem muros. Os índices
de homicídio que já eram baixos quando o país se tornou independente, em 1991,
seguiram caindo com o ingresso na União Europeia, em 2004.
Na década de
1990, eram registrados 37 homicídios por ano, em média. Nos anos 2000, o número
caiu para 21. Atualmente, o número está em torno de 17 assassinatos por ano.
São números
muito inferiores aos do Brasil: entre 60 mil e 65 mil assassinatos por ano, de
acordo com dados do Sistema de Informações Sobre Mortalidade, do Ministério da
Saúde - uma taxa de cerca de 30 assassinatos por 100 mil habitantes, por ano.
Já a
Eslovênia, com 17 casos por ano, tem uma taxa de homicídios de 0,85 por 100 mil
habitantes.
Os números
de ocorrências de outros tipos de crime também são baixos. Em 2018, foram
registrados apenas 5.186 roubos, 157 assaltos e 22 estupros em todo o país.
Sistema prisional 'leve' e proibição de armas - Entre a população local, é comum ouvir histórias do tipo "tenho
carro há 12 anos e nunca o travei à chave".
A reportagem
da BBC News Brasil conversou com diversos especialistas para tentar compreender
os porquês de tal fenômeno. As explicações mais recorrentes são o passado, o
pequeno tamanho do país e a quase impossibilidade de alguém conseguir ter o
direito de possuir uma arma de fogo.
"A
Eslovênia se beneficiou de uma combinação de fatores", comenta o
criminalista Aleš Završnik, professor e pesquisador do Instituto de
Criminologia da Faculdade de Direito de Liubliana. "É um Estado pequeno,
economicamente forte e com altos índices sociais herdados do período
socialista."
Porém, se
comparada a outros países de passado socialista, a Eslovênia é uma exceção -
nem outras nações iugoslavas nem repúblicas ex-soviéticas apresentam índices de
segurança tão positivos. Por isso, a resposta pode estar na mescla dos fatores.
Završnik
ressalta ainda que o país implantou uma "política inteligente" de
combate ao crime, com "relativamente poucas sentenças máximas de
prisão".
"A
questão penal, neste caso, não é o que importa. As pessoas não obedecem por
medo da punição, mas por concordarem que o projeto coletivo de sociedade
funcionou em benefício da população", concorda o jornalista, economista e
cientista político Bruno Paes Manso, pesquisador do Núcleo de Estudos da
Violência da Universidade de São Paulo (USP).
"Assim,
as taxas de encarceramento na Eslovênia são comparáveis a dos países nórdicos,
fortes estados de bem-estar social: na casa de 50 encarcerados a cada 100 mil
habitantes", exemplifica Završnik.
"É
pouco, se comparado com a França, com de 80 a 100 detentos por 100 mil
habitantes, ou os infames 700 prisioneiros por 100 mil habitantes dos Estados
Unidos."
No Brasil, a
taxa de encarceramento é ainda maior: 335 detentos por 100 mil pessoas. "O sistema penal não é draconiano, com prisões mais parecidas
com um internato antiquado do que qualquer coisa típica do imaginário
americano. As leis são de tal ordem que têm um sistema penal brando - que não
produz muitos criminosos recorrentes", afirma o historiador e escritor
americano Noah Charney, pesquisador visitante do Instituto de Criminologia de
Liubliana e autor do livro Slovenology: Living and Traveling in the World's Best Country (em
tradução livre: Eslovenologia: Morando e Viajando no Melhor País do Mundo).
Završnik ressalta também a política anti-armamentista como forte
responsável pela segurança na Eslovênia. No total, 28 mil cidadãos têm
permissão para transportar armas, sendo que 75% desse total são caçadores.
"Todos
os tipos de armas militares são proibidas na Eslovênia. Um fuzil automático e
certos tipos de armamentos, por exemplo, simplesmente não podem ser
adquiridos", diz Završnik.
"A
legislação atual impede a aquisição de armas (militares)", explica o
brigadeiro reformado, advogado e memorialista Janez Švajncer, autor de diversos
livros sobre a história do país.
"O
Estado limita muito a segurança pessoal, porque parte do princípio de que há
polícia suficiente para a segurança das pessoas. A menos que muitos eventos
atestem que isso não é verdade, tal interpretação é aceitável."
"A
legislação de armas da Eslovênia é uma das mais rígidas do mundo", afirma
Završnik. "Se um proprietário de arma descumpre alguma das regras, ela
pode ser retirada dele."
Em média, apenas 17 pessoas são assassinadas na Eslovênia anualmente
Para
pleitear o direito de ter uma arma, um esloveno precisa cumprir uma série de
condições básicas, inclusive apresentar uma razão justificável para tal pedido,
passar por exames médicos e psicotécnicos e comprovar conhecimento no manuseio
seguro de armas. Mesmo assim, apenas modelos menos letais, destinados a caça e
tiro esportivo, são permitidos.
Um
supervisor avalia o candidato durante o processo e, periodicamente, após a
autorização. "Nos últimos anos, a polícia registra que foram revogadas
permissões de posse de 150 a 200 pessoas por ano", comenta Završnik.
"As leis aqui são muito boas em termos de manter a paz. É extremamente
difícil conseguir uma arma - e isso é bom", completa Noah Charney.
"Historicamente,
os eslovenos nunca foram fortemente identificados como belicosos e, por isso,
não há nenhuma inclinação armamentista", pontua a pesquisadora Renata
Salecl, que estuda as relações entre crime e psicologia no Instituto de
Criminologia de Liubliana. "Há muito pouca violência entre as pessoas.
Mas, infelizmente, muitos eslovenos agridem a si mesmos - suicídios, várias
formas de vícios, forte autocrítica, sentimentos de culpa."
Caldeirão de fatores - Charney
aposta na "combinação de fatores" para que a Eslovênia seja, em suas
palavras, "um Estado muito seguro". Ele acredita que a região começou
a se destacar do entorno em níveis de segurança após o fim da Segunda Guerra.
"Foi
quando o crime organizado floresceu como fenômeno internacional. E a Eslovênia
permaneceu à margem disso, porque não era rica o suficiente para ser alvo de
grupos mafiosos", comenta.
Estudioso de
fenômenos de violência pelo mundo, o pesquisador Bruno Paes Manso afirma que
"as sociedades mais pacificadas são aquelas cuja população se sente
representada pelas instituições e pelas leis que as governam".
Para ele,
"a força dessas autoridades vêm de sua legitimidade. São vistas acima de
tudo como representantes e fiadores dos valores compartilhados pela população,
que se sente predisposta a obedecer em nome do bem estar coletivo".
"As
pessoas obedecem não por medo de serem punidas, como pode ocorrer em tiranias
ou sociedades autoritárias, mas por concordarem que essa submissão é o melhor a
ser feito em seu próprio benefício, em nome daquilo que acredita. O advento das
democracias, por esse motivo, acabou contribuindo para a formação de sociedades
democráticas sólidas e para a diminuição da violência no mundo, com mais
sociedades onde pessoas se sentem livres para exercer suas
individualidades."
"A Eslovênia, uma democracia que respeita as liberdades
individuais, parece ter conseguido sucesso nesse processo de pacificação ao
longo de sua história", contextualiza Paes Manso.
"Só uma viagem no tempo, comparando processos sociais e
históricos dos países, nos ajuda a entender a formação da cultura, dos valores,
dos ódios, das sombras, dos conflitos, dos bodes expiatórios da vez, da
solidariedade e da integração e do crime em diferentes nações. Penas duras e
uso excessivo da força costumam ser medidas desesperadas de sociedades
historicamente mal resolvidas."
Há ainda o
fator da homogeneidade. A Eslovênia, um país de população pequena, tem poucas
discrepâncias sociais, sejam elas de renda, religiosas ou étnicas. Isso, de
acordo com Charney, suscita poucos conflitos sociais, ao contrário de outras
nações da região. "O país segue sem as tensões que causaram problemas nos
outros países que formaram a Iugoslávia."
Em 1967, a escritora Agatha Christie (1890-1976) visitou o lago de Bled
e sentenciou: 'a Eslovênia era bonita demais para assassinatos'
Pilares da sociedade - A educação
gratuita, universal e de qualidade é apontada como um fator importante na
formação cidadã.
Não à toa, a
Eslovênia vem obtendo bons índices em rankings internacionais como o Pisa
(sigla em inglês para Programa Internacional de Avaliação de Alunos). Na última
edição do levantamento trienal realizado pela Organização para a Cooperação e
Desenvolvimento Econômico (OCDE), o país ficou em 12º lugar no mundo - 3º lugar
entre os países europeus - com 513 pontos. Já o Brasil ficou em 63º lugar
dentre os 70 países participantes da avaliação, com 401 pontos.
Outro fator
histórico importante para o sucesso da sociedade eslovena está na maneira como
a Iugoslávia se posicionou durante a Guerra Fria.
Era um país
socialista mas, principalmente depois da ruptura com a União Soviética, em
1948, passou a se organizar considerando a economia de mercado, com
industrialização, comércio com outros países europeus e liberdades individual e
de ir e vir da população. Sem prescindir, entretanto, de investimentos sociais.
A própria
posição geográfica, no centro entre a Europa capitalista e a Europa socialista,
foi um fator interessante para esse convívio de valores.
"Foi um
período de desenvolvimento político, econômico e social. Porque a Iugoslávia
não pertencia nem ao bloco oriental nem ao ocidental, com status
particularmente favorável na Europa", pontua Janez Švajncer. "Assim,
o padrão de vida e os direitos sociais eram muito mais altos do que em outros
países."
Dentre as
regiões da antiga Iugoslávia, a Eslovênia já era o "primo rico e
desenvolvido". A maior parte das indústrias se concentrava nela e,
consequentemente, os níveis de sucesso econômico eram superiores ao dos outros
futuros países.
A separação
também ocorreu de forma privilegiada. Enquanto nações como Bósnia, Kosovo e
Sérvia sofreram com longas e penosas guerras, e até hoje precisam conviver com
sequelas sociais e econômicas da devastação, a cisão da Eslovênia da Iugoslávia
foi praticamente sem conflitos.
Foram apenas
10 dias de embates, entre o fim de junho e o início de julho de 1991, com um
saldo de 18 eslovenos mortos e a declaração de Independência.
Esse
caldeirão de fatores reflete-se não só na segurança, mas nos índices de
desenvolvimento humano. No ranking de 2018 da Organização das Nações Unidas
(ONU), o país ocupa a 25ª colocação, sendo um dos países considerados de
"desenvolvimento humano muito elevado".
Presidente
da União dos Eslovenos do Brasil, Martin Črnugelj ressalta que mesmo a
Eslovênia tendo se tornado país independente apenas em 1991, a região nutria
características próprias há mais de mil anos. "A sociedade eslovena saiu
de um regime socialista em 1991 e adotou valores da social-democracia europeia
ocidental", acredita. "A sociedade eslovena apresenta desigualdades
culturais e econômicas pequenas." (BBC)
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