Mesmo tendo passado pela maior renovação dos últimos 20 anos, a
Câmara dos Deputados mantém uma característica que marcou as legislaturas
anteriores – empresas ligadas a parlamentares devem cifras milionárias ao fisco
e, em particular, à Previdência, cuja proposta de reforma tramita na Casa.
Um
levantamento feito pela BBC News Brasil com dados obtidos via Lei de Acesso à
Informação mostra que um em cada quatro deputados é sócio, diretor ou
presidente de empresa com débito em aberto com a Receita Federal ou o INSS.
São 134
parlamentares, que somam uma dívida de R$ 487,5 milhões. A Previdência responde
por mais de um terço desse valor: R$ 172 milhões em débitos de 61 empresas
ligadas a 46 deputados. Entre os devedores há desde igrejas e instituições de ensino até
empresas de comunicação e do setor do agronegócio.
Os dados da
Procuradoria Geral da Fazenda Nacional (PGFN), responsável pela cobrança dos
valores, dividem os débitos em "situação irregular" e
"regular" – e, apesar de opostas, ambas as categorias são em muitos
casos faces de uma mesma moeda.
Isso porque os débitos em situação regular incluem tanto aqueles
garantidos ou suspensos por decisão judicial, o que é comum quando existe uma
divergência entre as empresas e o fisco discutida na Justiça, quanto aqueles
parcelados por meio de programas de refinanciamento como o Refis –
identificados na base de dados da PGFN como "benefício fiscal".
Desde os anos 2000, foram cerca de 40 programas, alguns dos quais,
além de perdoar multa e juros, chegaram a alongar o prazo para pagamento das
dívidas em quase 15 anos. Todos foram instaurados por meio de projetos de lei
ou medida provisória – votados no Congresso.
No relatório Estudo sobre Impactos dos
Parcelamentos Especiais, de dezembro de 2017, a Receita Federal
pondera que, historicamente, cerca de 50% daqueles que aderem ao programa
voltam a se tornar inadimplentes.
Antônio Augusto de Queiroz, diretor do Departamento Intersindical de
Assessoria Parlamentar (Diap), afirma que esse tipo de comportamento também é
recorrente entre as empresas de deputados e senadores.
"Tem uma máxima, que ouvi de um gerente do Banco Brasil, de que
parlamentar não paga dívida, ele 'regulariza'", brinca, fazendo referência
aos instrumentos de refinanciamento e negociação dos débitos.
Os débitos
em situação regular vinculados a benefícios fiscais somam R$ 197,5 milhões nos
dados levantados pela PGFN, cerca de 40% do total da dívida das empresas
ligadas a deputados. Tomando-se apenas os débitos previdenciários, essa
modalidade soma R$ 117,1 milhões dos R$ 172 milhões.
A proposta
de reforma da Previdência traz uma limitação a novos Refis, estipulando prazo
máximo para os programas de até 60 meses, 5 anos. A PEC foi votada na Comissão
de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara e passa agora a uma comissão
especial, na qual os deputados podem suprimir artigos ou propor emendas.
Incentivo ao atraso - Para
Tathiane Piscitelli, professora da FGV Direito SP, a medida que limita os novos
Refis é "melhor do que nada", mas deixa de fora outro aspecto
problemático do programa - o perdão parcial ou total de multa e juros.
"Sem
tocar na questão da quantidade de renúncia, o estímulo segue", pondera a
especialista, presidente da Comissão Especial de Direito Tributário da OAB-SP.
Por
"estímulo", ela se refere ao incentivo que a realização de forma
reiterada de programas de parcelamento tem sobre os contribuintes para que eles
não recolham em dia. "As sucessivas concessões de parcelamentos muito
generosos geram estímulo aos maus pagadores", explica.
"É
claro que tem contribuinte que usa o Refis para fugir da crise, mas esse grupo
é residual."
Dívidas previdenciárias
Olhando
especificamente para a Previdência, o maior débito é de empresas ligadas à
deputada Elcione Barbalho (PMDB-PA), de R$ 46,7 milhões, distribuídos entre o
jornal Diários do Pará e a RBA – Rede Brasil Amazônia de Televisão. Ex-mulher
de Jader Barbalho e mãe do governador do Pará, Helder Barbalho, ela está no
quarto mandato consecutivo.
Do total do
débito previdenciário inscrito na dívida ativa, R$ 23,6 milhões estão em
situação irregular, em cobrança, e R$ 23,1 milhões estão regularizados mediante
algum tipo de benefício fiscal.
O mais
recente programa nesse sentido, que teve impacto sobre os negócios da deputada
e os de seus colegas de legislatura, foi o Pert (Programa de Regularização
Tributária), que nasceu da Medida Provisória 783, de maio de 2017.
A MP foi
relatada na Câmara por Newton Cardoso Junior, também do MDB, que estava em seu
primeiro mandato como deputado à época. O parlamentar mineiro aparece no banco
de dados da PGFN ligado a quatro empresas que, juntas, devem R$ 17,9 milhões ao
INSS - Companhia Siderúrgica Pitangui, Goody Indústria de Alimentos, NC
Participações e Consultorias e Rio Rancho Agropecuária.
Contatada pela BBC News Brasil, a assessoria de imprensa do deputado
não se manifestou até o fechamento da reportagem.
Um dos advogados das empresas de Elcione Barbalho informou que
"a pessoa física" da deputada não possui débitos perante a Secretaria
da Receita Federal do Brasil e que "os débitos das empresas a ela
vinculadas estão parcelados no Programa Especial de Regularização Tributária –
Pert, instituído pela Lei 13.496/2017 e/ou estão em discussão judicial".
A maior
parte da lista da PGFN é formada por veteranos, entre eles o deputado Gonzaga
Patriota (PSB-PE), que está em sua oitava legislatura, Paulo Pimenta (PT-RS),
que está no quinto mandato, e o pastor Marco Feliciano (PODE-SP), que cumpre a
terceira legislatura.
No caso de
Gonzaga Patriota são duas empresas: a Pergran Pernambuco Granitos, com R$ 101
mil de dívida em situação irregular, e o Clube do Congresso, com R$ 1,3 milhão
parcelados via Refis.
O deputado
afirma que, apesar de sócio, não é administrador da Pergran. "Se trata de
uma fábrica que serra pedras e produz granito, mercadoria hoje difícil de ser
comercializada, por ter alto custo e em razão da crise financeira. Ela está
devendo impostos e ainda outros compromissos financeiros".
Patriota
acrescenta que a empresa fez um Refis e, devido à situação da economia, segue
com prestações em atraso. "Ela está hoje até com a sua energia cortada,
por falta de recursos para pagar, mas vai resolvendo aos poucos todos os seus
compromissos", acrescenta.
Quanto ao
Clube do Congresso, ele diz que "as dívidas estão parceladas e, na medida
do possível, estamos pagando esses parcelamentos".
Empresas têm, via de regra, obrigação de recolher o equivalente
a 20% da folha de pagamentos para o INSS
O deputado Paulo Pimenta – cuja empresa Ouro Negro Comércio e
Serviços deve R$ 436,2 mil ao INSS – diz não ter ingerência sobre as atividades
administrativas da companhia. "Não participo do cotidiano administrativo,
bem como não é de minha alçada a existência de eventuais registros ou
pendências de qualquer ordem em nome da mesma. Reafirmo meu posicionamento em
relação ao papel que a Fazenda Pública deve desempenhar, primando pela cobrança
dos seus créditos, em todas as esferas, com o objetivo de reduzir a
inadimplência dos devedores", declarou, por meio da assessoria de
imprensa.
A reportagem não conseguiu entrar em contato com o gabinete de
Marcos Feliciano, sócio da Kaneka Comércio Varejista de Brinquedos, com débito
previdenciário de R$ 26,5 mil atualmente em cobrança.
Na segunda
posição na lista dos maiores devedores está o CNPJ do Hospital Santa Lucia –
débito previdenciário de R$ 44 milhões em situação regular –, do qual é sócio o
médico Pedro Westphalen (PP-RS), que tem extensa carreira na política, mas
ocupa pela primeira vez o cargo de deputado federal.
Procurado,
ele afirma que o débito inscrito em dívida ativa está em discussão judicial e
"será negociado dentro dos instrumentos legais disponíveis" e afirma
que todas as dívidas da empresa "encontram-se parceladas, pois o hospital
aderiu ao Pert em 2017".
"Nunca
participei de qualquer mobilização ou movimento de pressão para o
estabelecimento de outro Refis ou aprovação de lei federal sobre débitos
tributários", acrescentou.
A lista não
é formada, contudo, apenas de veteranos.
Entre os
novatos, há o empresário Fabio Schiochet (PSL-SC), de 30 anos, que aparece como
corresponsável pela Jaragua Apoio Administrativo, com débito de R$ 7,4 mil em
situação irregular, e sua correligionária Joice Hasselmann (PR),
sócia-administradora da GD Agência de Notícias e Apresentadores de Programas de
Televisão, com dívida de R$ 5,4 mil também em situação irregular.
A equipe do
deputado Fabio Schiochet informa que ele foi sócio da companhia até junho de
2015 e que, nesta data, vendeu sua participação para outra pessoa, que também
já teria se desfeito das quotas. "Logo, o deputado nunca foi responsável
pela empresa e desconhece a informação de dívida ativa".
A BBC News
Brasil não conseguiu contato com o gabinete de Joice Hasselmann.
Os dados da PGFN também incluem os estreantes na Câmara Rodrigo
Coelho (PSB-SC), identificado nos registros como sócio administrador da Revista
Premier, com débito previdenciário de R$ 32 mil em cobrança, e Silvio Costa
Filho (PRB-PE), sócio administrador do Grupo Educacional do Carpina, com dívida
de R$ 22 mil, também em situação irregular.
A assessoria de imprensa do deputado Rodrigo Coelho afirma que,
apesar de constar como sócio, ele "não tem mais relação prática alguma com
a empresa há aproximadamente cinco anos e que, desde essa época, encaminha o
processo de saída da sociedade". A dívida previdenciária, acrescentam, foi
"parcelada e está sendo paga".
A BBC News
Brasil não conseguiu entrar em contato com o gabinete de Silvio Costa Filho.
O fenômeno subnotificado do empresário-político
A
"renovação" da Câmara nas últimas eleições, avalia Adriano Codato,
professor da UFPR (Universidade Federal do Paraná), é relativa. Por um lado,
há de fato um contingente maior de eleitos sem qualquer experiência prévia política
- o que subverte a lógica comum até então do "político de carreira",
que muitas vezes era vereador, prefeito ou deputado estadual antes de ocupar um
cargo na Câmara.
"Mas
não houve uma renovação social. Os homens brancos, por exemplo, ainda são absoluta
maioria", diz o cientista político, coordenador do Observatório de Elites
Políticas e Sociais do Brasil.
A quantidade
de empresários no parlamento, ele ressalta, "é um fenômeno subnotificado
no país". Isso porque a profissão dos parlamentares informada ao TSE é
autodeclaratória – e há muitos veteranos, ele diz, que a cada nova legislatura
mudam esse dado. Muitos, por exemplo, são donos de empresa, mas declaram como
ocupação a política.
A pesquisadora Bruna Prata, que já foi orientanda do professor e que
aborda esse tema em sua tese de mestrado, verificou que mais da metade dos
deputados em 2014 tinha quotas na declaração de bens ou se declaravam
empresários.
Os dados da
55ª legislatura mostram que 42 deputados se declaravam empresários, enquanto
273 tinham atividade econômica – ou seja, quotas em sociedades ou ações. Eram
200 os que possuíam quotas e não se declaravam empresários, informa a
pesquisadora.
Parte desses
vínculos, ressalta Codato, pode se dar por razões tributárias – o parlamentar
tem participação na empresa da família por uma questão de planejamento
financeiro. Ainda assim, o dado é relevante porque, em última instância, os
deputados se tornam parte interessada em determinadas votações e têm
oportunidade de legislar em causa própria.
A composição do parlamento em outros países - "Você
tem muito empresário, acima de qualquer média (internacional)", ressalta o
cientista político.
Além do
problema da legislação auto-interessada, o fato de haver uma
"sobre-representação" de empresários no Congresso representa, para
ele, dois problemas: diminui a diversidade social e a representação simbólica
no Legislativo federal.
Uma maneira
prática de explicar esses dois aspectos, acrescenta, é observar o fato de que
os deputados muitas vezes não têm conhecimento sobre o mundo do trabalho ou
sobre a realidade das universidades públicas, por exemplo.
"O
universo de conhecimento dele é o do empresário. Então ele vai pautar a redução
de encargos trabalhistas para as empresas, vai barrar a tributação de
dividendos. A agenda é capturada por esses valores, não são nem
interesses", diz o cientista político.
O
pesquisador da UFPR pondera que, no Reino Unido, as profissões mais recorrentes
no Parlamento são as de jornalista, professor e assessor parlamentar. Nos
Estados Unidos, onde há muitos "políticos profissionais", existe um
número grande de advogados.
Na Itália, o
número de "políticos profissionais" caiu vertiginosamente, de 21% do
total entre 2006 e 2008 para 5% atualmente, conforme um estudo dos cientistas
políticos Bruno Marino, Nicola Martocchia Diodati e Luca Verzichelli divulgado
neste mês de abril. (BBC)
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