
“É direito da criança e do adolescente ser
criado e educado no seio de sua família e, excepcionalmente, em família
substituta.” A determinação do artigo 19 do Estatuto da Criança e do
Adolescente (ECA) ainda é inacessível para, pelo menos, 265 pequenos cearenses
ativos e disponíveis no Cadastro Nacional de Adoção (CNA) – vivendo em abrigos
cujas condições são deficitárias, como denunciam Ministério Público do Ceará
(MPCE), Defensoria Pública do Estado e entidades ligadas à causa.
Fortaleza conta com
três tipos de acolhimentos: de gestão municipal, estadual e de cogestão entre o
governo e organizações não-governamentais. No total, atualmente, são 20 abrigos
na capital, dos quais um está desocupado e em reforma (a Casa Abrigo), e outro,
em processo de desativação (Vida em Foco), segundo o defensor público do Núcleo
de Defesa dos Direitos da Infância e da Juventude (Nadij), Adriano Leitinho.
De acordo com promotor de Justiça do MPCE Luciano Tonet, todos os
locais possuem falhas
estruturais, sendo as mais graves nos quatro abrigos
municipais.
"Estão
todos superlotados. O ideal é ocupação de até 20 crianças e adolescentes, e
alguns chegam a ter 30. Isso dificulta todo o trabalho da equipe técnica, que
precisa visitar as famílias. O repasse do recurso, feito com a previsão de 20
acolhidos, também fica prejudicado."
O titular da Secretaria de Direitos Humanos e Desenvolvimento Social (SDHDS),
Elpídio Nogueira, assume que “os quatro abrigos deveriam oferecer 80 vagas, mas
estão com 109 acolhidos”, porque “sempre aparece gente extra”. Do total, apenas
16 (nove adolescentes e sete crianças) estão inseridos no Cadastro Nacional de
Adoção (CNA). O secretário garante, ainda, que “o quadro de psicólogos,
terapeutas ocupacionais, pedagogos e assistentes sociais está completo”.
Falta
de profissionais - A quantidade
insuficiente de equipes técnicas e de assistência aos acolhidos é outro
problema apontado pelos órgãos, que gera efeitos negativos ao desenvolvimento
socioemocional das crianças e adolescentes e o atraso nos processos de adoção.
"A ausência
de psicólogos, assistentes sociais e pedagogos é grave, porque precisamos dos
estudos técnicos elaborados por eles para dar continuidade aos processos. Às
vezes demoramos de seis meses a um ano para anexá-los", lamenta Adriano
Leitinho.
O
promotor Luciano Tonet complementa: "O número de crianças está além do
limite e crescendo, mas a quantidade de pessoas que cuidam delas não aumenta. É
preciso pessoal para levá-los a aulas, médico e fazer as visitas às famílias.
Sem eles, isso atrasa. É uma violação desnecessária."
A falta de profissionais, aliás, afeta a própria Defensoria Pública.
"Nos processos específicos de adoção, existem três defensores atuando:
dois no Nadij, que faz atendimento inicial e acompanha a situação das crianças
dentro dos abrigos, sendo praticamente um defensor para dez unidades de
acolhimento; e eu na Vara (3ª Vara da Infância e da Juventude), em audiências,
análise de estudos técnicos e outros processos relacionados a crianças e
adolescentes. É muita demanda para poucos defensores", reconhece Adriano
Leitinho.
O início do atual retrato de insuficiência das unidades foi vivenciado por
Messias, 11, que nasceu e cresceu até os sete anos de idade em uma instituição
de acolhimento – até ser adotado por Lucineudo Machado, presidente da ONG
Acalanto Fortaleza. "As condições eram até boas, mas havia necessidade de
fazer campanhas para suprir alimentos, sobretudo proteínas. O que existia era
um número reduzido de educadores e cuidadores", relembra, salientando que
atualmente o cenário é bem mais preocupante.
"A situação das instituições de acolhimento demanda muito cuidado,
o contexto de crise pegou muito forte nesse setor – o cenário hoje é, sim, de
falta de alimentos aos acolhidos; é, sim, de superlotação. Temos, na Acalanto,
um setor de apoio aos abrigos, e o que temos visto é falta de equipe técnica;
em alguns, falta de mantimento. E o poder público tem deixado de olhar",
lamenta Lucineudo.
Unidade
do estado fechada - Apesar de ser
política municipal determinada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, o abrigamento
de pessoas à espera de adoção ou retorno à família de origem também é feito
pelo Governo do Estado. No Ceará, são duas unidades administradas pela
Secretaria de Proteção Social, Justiça, Cidadania, Mulheres e Direitos Humanos
(SPS), das quais uma, a Casa Abrigo, foi fechada por falta de condições de
funcionamento.
Conforme a titular
da SPS, Socorro França, este é o único "problema estrutural". "E
já estamos resolvendo. Além disso, estamos no processo de aluguel de novas
casas para distribuir as crianças. A gente faz da vida eles uma vida normal e
desenvolve vínculos sociais e comunitários até que a Justiça resolva a adoção.
Problema de falta de pessoal não existe, eu garanto", afirma a secretária.
De acordo com o promotor de Justiça Luciano Tonet, os problemas não são
naturalizados pelos órgãos de Justiça. "Não havendo qualquer possibilidade
de melhora por parte do ente público, vamos provocar judicialmente, inclusive
sobre a questão de improbidade, porque muitas vezes há violação do direito das
crianças – e se isso for contínuo, precisa haver responsabilização."
O G1 Ceará solicitou à SDHDS uma visita a alguma das
unidades de acolhimento municipais de Fortaleza, mas teve o pedido negado pela
pasta, com base em uma portaria da Coordenadoria da Infância e da Juventude.
A equipe visitou, porém, o Abrigo Tia Júlia, de gestão do Governo do
Estado. O local deveria acolher até 20 crianças e adolescentes, mas abriga,
atualmente, 59 pessoas, incluindo adultos. A assistente social Alana Ferreira
reconhece que a estrutura do abrigo não é ideal, já que, como determina o ECA,
deve ter configuração de uma residência.
"O Tia Júlia ainda está nos moldes antigos, o que é muito
prejudicial pras crianças. O ideal é que tivesse uma estrutura de casa, mesmo.
O acolhimento prolongado, por vezes, deixa a criança apática, pela falta de
vínculos fortes. E mecanizada por uma rotina tão dura como a de um
abrigo", avalia. (G1)
Nenhum comentário:
Postar um comentário