
Alvo de polêmica,
a decisão do presidente do Supremo Tribunal Dias Toffoli de paralisar
investigações iniciadas com dados do Conselho de Controle de Atividades
Financeiras (Coaf) pode, se confirmada pelos demais ministros, mudar o destino
de grandes nomes da política investigados pela Operação Lava Jato.
Alguns dos inquéritos envolvendo políticos
como o ex-governador do Rio de Janeiro Sérgio Cabral, deputados da Assembleia
Legislativa do Rio de Janeiro, o ex-deputado federal André Vargas, e o
ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha (PMDB-RJ), entre outros, contaram com
relatórios de inteligência financeira elaborados pelo Coaf como meios de prova.
A decisão de Toffoli
atendeu a pedido do senador Flávio Bolsonaro (PSL-RJ), filho do presidente Jair
Bolsonaro, que passou a ser investigado pelo Ministério Público do Rio de
Janeiro quando o Coaf detectou transações bancárias suspeitas de seus
assessores.
O senador argumenta
que seria inconstitucional o compartilhamento de dados desse órgão de controle
com o Ministério Público, sem prévia autorização judicial.
Advogados de investigados na Lava Jato
ouvidos pela BBC News Brasil confirmam que se mobilizarão para verificar em
quais processos ou investigações a liminar do presidente do STF pode beneficiar
seus clientes.
E, se o argumento de
Flávio Bolsonaro for acolhido pelos demais ministros do Supremo em novembro,
quando está previsto o julgamento do mérito do caso, inquéritos, ações penais
em curso e até decisões judiciais poderão ser considerados nulos, diz o professor
da Universidade de São Paulo (USP) Alamiro Velludo Salvador Netto.
"Se prevalecer
o entendimento de Toffoli, essas ações serão encerradas. Todas as provas
derivadas e procedimentos instaurados serão nulos. E aí pouco importa a fase -
pode ser uma mera investigação policial, uma ação penal em andamento ou um
processo transitado em julgado, que pode ser objeto de revisão criminal",
disse.
Decisão
de Toffoli foi tomada ao analisar pedido de Flávio Bolsonaro para que
investigação
sobre movimentações bancárias suspeitas de seus assessores fosse
paralisada
Impacto na Lava Jato - A chefe da força-tarefa da Lava Jato em São
Paulo, procuradora Anamara Osório Silva, disse à BBC News Brasil que a decisão
do presidente do STF "prejudica" as investigações de corrupção e
lavagem de dinheiro em curso.
Os procuradores integrantes da força tarefa
devem fazer um levantamento dos inquéritos que terão de ser paralisados por
causa do entendimento do presidente do STF. "É uma decisão que abrange todos os
casos, nacionalmente. Então, a análise de cada caso concreto deve ficar por
conta de quem está à frente da investigação. Nessa análise, teremos que ver o
que vai ocorrer.
Mas é, sem dúvida, uma decisão prejudicial não só ao combate
ao crime, mas também em relação à posição do Brasil no mundo", disse ela,
destacando que o funcionamento do Coaf segue recomendações internacionais do
Grupo de Ação Financeira (ou Finantial Task Force), integrado por 150 países,
entre os quais Estados Unidos e nações da União Europeia.
Inquéritos e ações penais movidos pela
Procuradoria-Geral da República (PGR) contra políticos com foro privilegiado
também poderão ser impactados, segundo o procurador da República Daniel
Salgado, que chefiou a secretaria responsável pelo compartilhamento de dados do
Coaf na gestão do ex-procurador-geral Rodrigo Janot.
Segundo ele, várias
investigações e denúncias aceitas pelo próprio Supremo se iniciaram com
relatórios do Coaf. "Diversos
trabalhos feitos pelo procurador-geral da República Dr. Rodrigo Janot tiveram
como base relatórios de inteligência do Coaf e o Supremo vinha aceitando esses
inquéritos e abrindo ações penais. Eram investigações que tinham como alicerce
um relatório de inteligência solicitado pela PGR e, com base neles, se entrava
com pedidos de quebra de sigilos bancários", afirmou Salgado à BBC News Brasil.
O procurador destaca que essa prática de
utilizar dados fornecidos pelo Coaf para embasar pedidos de quebras de sigilo
existe desde 1998, quando a lei 9.613 sobre lavagem de dinheiro foi aprovada.
Essa lei especifica que o Coaf terá a
função de "receber, examinar e identificar as ocorrências suspeitas de
atividades ilícitas", para então comunicar essas operações a órgãos de
investigação.
As instituições que registram operações
vultosas - como bancos, corretoras, joalherias, concessionárias de automóveis e
até empresas que agenciam atletas - passaram a ser obrigadas legalmente a
enviar informações ao Coaf sempre que detectarem transações altas em dinheiro
vivo ou movimentações com indícios de irregularidades.
Com base nesses dados, os servidores do
órgão identificam se há indícios de lavagem de dinheiro e encaminham essas
movimentações suspeitas à polícia ou ao Ministério Público.
Mas, na decisão sobre o pedido de Flávio
Bolsonaro, Toffoli entendeu que o Coaf só poderia encaminhar "dados
genéricos", como o nome do titular da conta e o "montante
global" movimentado. Para obter detalhes, os investigadores teriam que
pedir autorização judicial.
"Hoje, esses relatórios do Coaf servem
como alicerce para uma investigação aprofundada. O pedido de quebra de sigilo
vem depois, para termos os detalhes", diz o procurador Daniel Salgado.
"O que preocupa é você podar as
informações a ponto de você não conseguir trabalhar esses dados para
identificar uma linha de investigação. É preciso ter informações mínimas que
possam te levar a uma conclusão sobre se há mesmo movimentações atípicas que
justifiquem uma investigação."
Para
Toffoli, Coaf só pode repassar informações 'genéricas' aos órgãos de
investigação.
Detalhes sobre as movimentações só poderiam ser obtidos com
autorização judicial
Sérgio Cabral e
deputados da Alerj - Adovgados de réus e
de suspeitos de participação no esquema de corrupção da Petrobras investigado
pela Lava Jato já se movimentam para cobrar a paralisação dos processos contra
seus clientes.
O advogado Márcio
Delambert, que representa o ex-governador Sérgio Cabral, faz a ressalva de que
vários procedimentos relacionados ao ex-governador envolveram prévia
autorização judicial.
Mas ele enxerga a possibilidade de Cabral
se beneficiar da decisão do Supremo nas acusações relacionadas às operações
Furna da Onça e Cadeia Velha (desdobramentos da Operação Lava Jato no RJ), que
investiga se o ex-governador comprava apoio de deputados da Assembleia
Legislativa do Rio de Janeiro.
Para identificar se parlamentares estaduais
receberam propina de Cabral em troca de votos, o Ministério Público Federal no
Rio de Janeiro pediu ao Coaf um relatório que apontasse quais parlamentares e
assessores efetuaram movimentações bancárias suspeitas durante a gestão do
ex-governador.
"Quero fazer uma análise desse caso da
Operação Furna da Onça, que é desdobramento da Operação Cadeia Velha, porque
pode ser paralisado", disse Delambert à BBC News Brasil.
Perguntado se, como
advogado criminalista, ele acredita que a decisão de Toffoli também irá
beneficiar os deputados da Alerj investigados nessa operação, ele disse que
sim.
"Mantendo a
logica da decisão, ela tem potencial para impactar a Operação Furna da Onça,
sim. E a maior parte das investigações da Lava Jato têm relatórios de
informação financeira do Coaf", afirmou. Foi no âmbito da Operação Furna da Onça que
as movimentações suspeitas relacionadas a Flávio Bolsonaro foram identificadas.
O Coaf apontou operações financeiras
incompatíveis com o salário de Fabrício Queiroz, ex-assessor do gabinete de
Flávio. Segundo o relatório de inteligência, funcionários do gabinete do hoje
senador repassavam dinheiro a Queiroz - na maior parte das vezes em datas
próximas ao dia de pagamento na Alerj.
Como não havia indícios de que o caso
estava ligado à Lava Jato, o relatório foi encaminhado ao Ministério Público do
Rio de Janeiro em 3 de janeiro de 2018. A principal suspeita dos procuradores é
que o ex-assessor embolsou o dinheiro para si mesmo ou que repassava a quantia
para Flávio, o que é ilegal.
Eduardo Cunha, André
Vargas... - Os advogados de Eduardo Cunha e de André
Vargas também afirmaram que estão analisando a possibilidade de entrar com
pedidos para suspender ou anular investigações e decisões contra seus clientes,
com base na decisão de Toffoli.
Preso desde 2016 por acusações de
recebimento de propina de contratos da Petrobras, Cunha também é alvo da
Operação Cadeia Velha, do Ministério Público do Rio de Janeiro, que investiga a
compra de apoio de deputados por parte do governo Sergio Cabral.
Assim como ocorreu
com parlamentares da Alerj, um relatório do Coaf ajudou a embasar as suspeitas
contra o ex-presidente da Câmara, que é do RJ. O documento aponta que Cunha
movimentou de 2012 a 2018 mais de US$ 80 milhões, entre saques e depósitos.
"Não quero
entrar em detalhes sobre esse caso. Mas estamos analisando que procedimentos
adotar", disse à BBC News Brasil Délio Lins e Silva Junior, advogado de
Cunha.
No caso do ex-deputado federal pelo Paraná
André Vargas, que era filiado ao PT e foi vice-presidente da Câmara, um
relatório da Receita Federal compartilhado com investigadores de Curitiba
acendeu o alerta para possíveis irregularidades.
Vargas foi condenado a seis anos de prisão
em agosto de 2018 pelo então juiz Sérgio Moro sob a acusação de intervir junto
à Caixa Econômica Federal, através da sua influência política, para que a
empresa IT7 Sistemas fosse contratatada para fornecimento de software e
prestação de serviços de informática.
Em troca, conforme a denúncia, ele teria
recebido quase R$ 2,4 milhões em propina.
Na visão dos advogados do ex-deputado,
Nicole Trauczynski e Juliano Breda, o raciocínio usado por Toffoli para decidir
sobre o Coaf também se aplica ao caso de Vargas.
"O Min. Dias Toffoli reconheceu o que
vínhamos pleiteando desde o início da ação penal: a ilegalidade do amplo
compartilhamento de dados entre a Receita Federal e o Ministério Público
federal sem a devida autorização judicial", disseram eles à BBC News
Brasil.
"O direito à prova não é ilimitado no
processo penal, devendo ser conduzido dentro dos parâmetros da legalidade.
Ainda vamos avaliar a medida processual cabível e tomar as providências
necessárias para o reconhecimento também em face do ex-deputado André
Vargas."
O ministro da Justiça,
Sérgio Moro, é um dos principais defensores da ampliação
da cooperação entre
Coaf e órgãos de investigação no combate a crimes
Mas dados do Coaf
são quebra de sigilo? - A questão de fundo na ação movida pelo
senador Flávio Bolsonaro é se a obtenção e compartilhamento de dados obtidos
pelo Coaf, relativos a movimentações financeiras, configura ou não quebra de
sigilo.
O Coaf foi criado em 1998 seguindo uma
tendência mundial, a partir do entendimento de diversos países da necessidade
de uma entidade que faça o meio de campo entre instituições financeiras e lojas
de itens de luxo (que podem identificar transações suspeitas) e órgãos de
investigação como o Ministério Público e as polícias.
Na decisão, Toffoli
diz que o Coaf só poderia repassar ao Ministério Público e à polícia dados
"genéricos" sobre transações suspeitas, como o nome do titular da
operação e o "montante global mensal" movimentado.
Mas, desde que foi
criado por lei e teve as funções definidas, o Coaf repassa relatórios
especificando as movimentações. Para obter dados bancários mais detalhados
sobre a origem e o destino do dinheiro, o Ministério Público, então, pede
quebras de sigilos à Justiça.
"O Coaf foi criado para comunicar as
operações suspeitas. Não tem como falar em montante global. A lei manda
informar operações suspeitas e essa legislação está em vigor, não foi declarada
inconstitucional", argumenta a chefe da força tarefa da Lava Jato em SP,
Anamara Osório.
Já o professor de Direito Penal da
Universidade de São Paulo Alamiro Velludo Salvador Netto diz concordar com o
entendimento de Toffoli de que o compartilhamento de movimentações financeiras
individualizadas, sem autorização judicial, é uma violação de garantias de
sigilo previstas na Constituição.
Para Velludo Salvador Neto, o Coaf só
poderia fornecer informações genéricas. A partir desses dados, o Ministério
Público teria, então, que pedir a quebra de sigilo bancário ao juiz e proceder,
a partir daí, a uma análise das movimentações.
Perguntado se esse
procedimento não retardaria as investigações a ponto de, eventualmente,
inviabilizar o bloqueio de recursos usados para lavagem de dinheiro, o
professor disse: "Não acho que o
comprometimento é grande suficiente para justificar a quebra de sigilos do
cidadão. A Constituição dá garantias em face do poder do Estado. Será que em
nome da celeridade, vale romper com o sistema jurídico?"
Dúvidas abrem
caminho para suspensões generalizadas - O procurador da República Daniel Salgado
afirma que a decisão de Toffoli deixa margem para dúvidas sobre as informações
que os relatórios do Coaf podem conter.
Por isso, segundo ele, a tendência é que os
investigadores de todo o Brasil paralisem, até uma decisão final do Supremo,
grande parte dos inquéritos em andamento sobre crimes de lavagem de dinheiro.
O procurador-geral de Justiça de São Paulo,
Gianpaolo Poggio Smanio, já adiantou à BBC News Brasil que até investigações relacionadas a
organizações criminosas como o Primeiro Comando da Capital
(PCC) terão que ser suspensas com base na decisão do presidente do STF.
No despacho, Toffoli diz que devem ser
paralisados os inquéritos em andamento que receberam, sem autorização judicial,
dados que "vão além da identificação dos titulares das operações bancárias
e dos montantes globais".
"Precisa ter um esclarecimento por
parte do ministro para que ele informe o que realmente é para ser paralisado. O
que deve ser entendido como montantes globais? Quando ele fala em identificação
dos titulares, há possibilidade de identificar a pessoa que depositou a TED à pessoa
suspeita? Ela não deixa de ser uma titular de operação bancária",
questionou o procurador Daniel Salgado. (BBC)
Nenhum comentário:
Postar um comentário