O governo está
prestes a anunciar regras de liberação de saque de dinheiro dos trabalhadores
no Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), segundo afirmou o presidente
Jair Bolsonaro.
Também com a intenção de dar estímulo à
economia, medida semelhante foi tomada no governo anterior: em dezembro de
2016, o então presidente Michel Temer anunciou liberação para saque de contas
inativas, o que totalizou R$ 44 bilhões.
A discussão recorrente sobre o uso de
recursos do fundo desperta não só o debate pontual sobre os reais efeitos
desses saques "fora de época", mas também sobre o papel do FGTS,
criado há mais de 50 anos, no contexto atual da economia brasileira.
Em 6 perguntas, a
BBC News Brasil explica o que está em estudo pelo governo, quem é contra a
liberação de recursos do fundo e como o FGTS funciona hoje:
1. Qual é o plano do
governo?
Bolsonaro afirmou que os detalhes sobre a
liberação de verba do FGTS devem ser anunciados nesta semana. Ao comentar a
medida, o presidente disse que se trata de "uma pequena injeção na
economia".
A expectativa é que,
nesse anúncio, sejam divulgadas as regras relativas a limites de saque e o
calendário para os trabalhadores acessarem o dinheiro.
No fim de maio,
quando foi divulgada a retração de 0,2% da economia brasileira no primeiro
trimestre de 2019, o ministro da Economia, Paulo Guedes, já tinha afirmado que
o governo estudava liberar o saque do FGTS. Àquela altura, a equipe do
ministério trabalhava com o cenário de uma liberação de pouco mais de R$ 20 bilhões.
Agora, a expectativa é que a medida possa
injetar uma verba maior na economia - o governo já chegou a falar em R$ 42
bilhões, mas as contas ainda estão sendo feitas.
Além disso, é esperada a liberação para
contas ativas e inativas, mas com um limite que pode variar em função do total
disponível na conta.
A avaliação da equipe de Guedes é que, no
governo Temer, a medida foi bem sucedida. O atual governo também vê com bons
olhos a distribuição de 50% do lucro do fundo no ano anterior para os
trabalhadores com contas no FGTS, prevista em lei sancionada por Temer em 2017.
2. Liberar recursos
do fundo ajuda a economia?
A injeção de
recursos na economia por meio da liberação de recursos do FGTS pode ajudar a
economia, mas apenas no curto prazo, dizem especialistas.
A economista Vivian Almeida, professora do
Ibmec, diz que a liberação de novos saques do
FGTS tem efeito limitado se for
pensada de forma isolada.
"Se você liberar (o saque do FGTS) sem
junção com outras reformas, isso vai ter um efeito limitado, com renda
transitória, que vai responder àquele momento, com aquelas demandas pontuais e
isso não vai se refletir em aumento de renda permanente das famílias",
diz.
O economista Pedro
Fernando Nery, consultor do Senado, também diz que se trata de uma medida de
curto prazo. "O essencial é que a gente saiba que não existe pote de ouro
ao fim do arco-íris em qualquer lugar. O caminho para o crescimento é mesmo o
caminho das reformas."
Professora do Curso
de Ciências Contábeis da UnB, Lorena Campos explica que a ideia por trás dessa
medida é a de que, com mais verba disponível, as famílias ficariam propensas a
um consumo maior, o que geraria estímulo à produção e, como consequência,
haveria o aumento de empregos e salários.
Ela lembra, no entanto, que não é possível
ter certeza do que cada família fará com o dinheiro. "Uma vez que há a
disponibilidade desse recurso para as famílias, acredita-se que a 'renda extra'
seja destinada para consumo, pagamento de dívidas e investimento", diz.
Em 2017, durante o governo Temer, 25,9
milhões de trabalhadores fizeram o saque de cerca de R$ 44 bilhões de contas
inativas do FGTS.
Vivian Almeida aponta que a medida
"foi responsável por um dinamismo maior no ano de 2017", mas que a
experiência mostra que, com medidas muito pontuais, "os efeitos tendem a
se dissipar muito rapidamente".
A economista Vivian Almeida, professora do Ibmec, diz que, sem reformas,
a liberação de recursos do FGTS tem efeito limitado
3. Quem é contra
liberar o saque de contas do FGTS?
A principal voz contra a liberação de
saques, que diminui a verba do FGTS, é o setor da construção civil, já que os
recursos do fundo são usados para financiar programas de habitação - como o
Minha Casa, Minha Vida -, além de saneamento e infraestrutura, com juros
menores do que as taxas de mercado.
"O FGTS é uma fonte barata de crédito
para quem pega os recursos emprestados. Em tese, isso deveria favorecer
políticas de habitação e saneamento. Na prática, é como se o trabalhador
financiasse empreiteiras", diz Nery.
O presidente da Câmara Brasileira da
Indústria da Construção (CBIC), José Carlos Martins, transmite a posição do
setor a respeito de uma nova liberação de saques: "Nós não concordamos e
não é por corporativismo. Entendemos que foi uma medida que já na vez passada
não foi boa."
Martins argumenta que os recursos do FGTS
estão, na verdade, concentrados em poucas contas e, por isso, a medida não é
eficiente para estimular o consumo da população. "Você pega um monte de
dinheiro que está em poucas contas e aí não vai pro consumo, mas sim para a
aplicação financeira. O que acontece é que não surte o efeito desejado, como
não surtiu."
Segundo a CBIC, 45% do saldo das contas
inativas do FGTS está concentrado em apenas 2% das contas, que têm valores
acima de um salário mínimo. Os outros 98% das contas inativas têm até um
salário mínimo cada.
"O governo sempre acaba atacando o
fundo de garantia", reclama Martins, para quem "o grande problema do
FGTS é ser bem administrado".
Nery também aponta
que também interessa à Caixa, por ser o agente operador do FGTS, que não haja
uma grande diminuição nos recursos do fundo.
"Como está,
quem defende mesmo é o setor da construção civil e a Caixa, que tem o monopólio
da administração dos recursos e cobra taxas altas para fazer isso. São centenas
de milhões de contas."
Como agente operador do FGTS, a Caixa
recebe taxa de administração de 1% do total do ativo do fundo no ano. É
responsável por controlar as contas ativas e inativas, os saques, gerir
aplicações financeiras, entre outros. Em 2017, o banco recebeu mais de R$ 4,9
bilhões para desempenhar essa função.
Por meio da assessoria de imprensa, a Caixa
informou que "cumpre as determinações contidas na legislação, conforme o
que lhe compete no papel de Agente Operador do FGTS", após questionamento
sobre se o banco é favorável à liberação de novos saques de contas do fundo.
4. Por que o FGTS
foi criado e como funciona hoje?
O FGTS foi criado em 1966, durante a
ditadura militar, e hoje está previsto como um direito dos trabalhadores na
Constituição Federal.
O fundo foi criado como alternativa à
chamada estabilidade decenal, que previa que o empregado com mais de 10 anos de
serviço na mesma empresa não poderia ser despedido se não fosse por "falta
grave ou circunstância de força maior, devidamente comprovadas".
A ideia era compensar a mudança nas regras
que acabaram com essa estabilidade com uma proteção financeira ao trabalhador,
criando essa poupança forçada para momentos de necessidade.
Com a criação do FGTS, as empresas passaram
a pagar, mensalmente, o equivalente a 8% do valor do salário do trabalhador
para a conta dele no fundo. A ideia é criar uma reserva para momentos de necessidade
(leia na pergunta 5 as situações em que o trabalhador pode sacar seus
recursos).
A quantidade de contas supera 780 milhões e
o total de ativos do FGTS somava R$ 496,85 bilhões no fim de 2017, segundo o
relatório mais recente.
De acordo com a Caixa, 84% das contas com
saldo têm um valor de até um salário mínimo (R$ 998). O trabalhador tem uma
conta para cada emprego formal que tem ou teve.
Como os recursos dos trabalhadores
depositados no fundo são usados para financiar a juros baixos obras de habitação,
saneamento e infraestrutura, o retorno também é menor que o de outras
aplicações. O rendimento é de 3% ao ano, mais a Taxa Referencial (TR),
calculada pelo Banco Central.
Além de ser operado pela Caixa, o fundo é
administrado por um conselho tripartite - ou seja, composto por representantes
dos trabalhadores, dos empregadores e representantes do governo federal.
FGTS: as empresas pagam o equivalente a 8% do valor do salário
do trabalhador para a conta dele no fundo
5. Quando o
trabalhador pode sacar o FGTS, segundo as regras atuais?
Os momentos mais
conhecidos de saque do FGTS são a aposentadoria - quando o trabalhador pode
tirar toda a verba que tem no fundo - e a demissão sem justa causa. Neste caso,
o trabalhador recebe o valor que foi depositado por aquele empregador, com os
rendimentos e uma multa de 40% sobre esse valor.
A reforma trabalhista sanciona por Michel
Temer também criou a possibilidade de rescisão por acordo entre o trabalhador e
a empresa. Nesse caso, ele tem direito de sacar 80% do saldo da conta do FGTS e
a multa do empregador é de 20% sobre esse valor.
Outras situações em que é permitido o saque
são: para compra de imóvel; quando o trabalhador fica afastado do regime do
FGTS por três anos consecutivos; além de casos em que o trabalhador ou
dependentes forem portadores do vírus HIV, de câncer ou quando estiverem em
estágio terminal devido a uma doença grave.
6. As regras do FGTS
podem mudar?
Pelo menos 165
projetos de lei propõem mudanças na Lei nº 8.036, de 1990, que traz as regras
para o FGTS, segundo levantamento feito por Nery. A maioria deles propõe
permissão para que os trabalhadores usem os recursos do FGTS em outras
situações.
Entre as propostas, estão a execução de
projeto de acessibilidade em imóvel próprio; custeio de despesas com educação e
qualificação profissional; pagamento de cirurgias essenciais à saúde; casos de
adoção ou nascimento de filho e mãe trabalhadora responsável pelo sustento da
família.
Também estão entre as propostas levantadas
o pagamento de dívidas inscritas em cadastros de inadimplentes; utilização na
geração de energia elétrica com base em fontes renováveis; custeio de tratamento
para infertilidade; mulher trabalhadora que estiver em situação de violência
doméstica, entre outros.
Para que qualquer mudança entre vigor,
precisa ser aprovada pelo Congresso e, depois, sancionada pelo presidente.
Além da possibilidade de mudanças mais
pontuais, tem aumentado a discussão sobre a estrutura do FGTS.
A equipe econômica do governo, inclusive,
avalia a função do fundo para eventualmente propor mudanças -- e o atual
governo, em geral, defende o discurso de que as pessoas devem ter mais liberdade
para administrar o próprio dinheiro.
Pedro Nery diz que o FGTS "foi
perdendo importância" como mecanismo de proteção nos últimos anos e que,
quando foi criado, ainda não havia o seguro-desemprego. Ele diz que a baixa
remuneração do fundo "gera uma série de problemas, como as tentativas de
sacar os recursos antes que se desvalorizem (alta rotatividade)".
Para Vivian Almeida, uma eventual mudança
significativa no modelo do FGTS é uma alteração na "lógica" do que o
trabalhador brasileiro conhece.
"A poupança mudar de mão é uma mudança
de paradigma, porque é uma população acostumada a ter uma poupança forçada e de
repente ela gerencia esse dinheiro", diz. "A gente pode ter impacto
que não necessariamente dá para prever, porque estamos falando de um perfil que
ainda não é o do trabalhador brasileiro." (BBC)
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