sexta-feira, 5 de julho de 2019

LITERATURA CEARENSE: Os últimos dias do Seminário da Betânia (João Ribeiro Paiva, no Seminário, de 1964 a 1967 *)

No sertão onde nasci, no tempo de meus avós, havia lá uma crendice que servia para determinar a vida futura de um recém-nascido. Era enterrar seu umbigo em lugar apropriado. Na porteira do curral, por exemplo, seria um fazendeiro próspero; ao lado da igreja, onde diziam ter enterrado o meu, a garantia de um padre. Hoje, suponho que, pelo grande desejo de meu pai de ter um padre na família e pela proximidade do lugar onde nasci, Groaíras, e, ainda, para não correr riscos, veio meu pai enterrar-me o umbigo aqui no pátio da Betânia.

Não recebi o sacramento da ordenação sacerdotal. Mas os quatro anos que aqui passei definiram toda a minha vida: a fé em Deus que nunca perdi; o compromisso com a justiça e com a transformação social que sempre tive; o gosto por cuidar da messe, que é muito grande e os operários poucos, que me fez engajar, tempos mais, tempos menos, nos serviços da Igreja; e, sobretudo, este jeito eclesiástico que hoje tenho e que faz muita gente perguntar se eu sou padre.

Estou começando a escrever este meu relato, num final de tarde, ao pé da estátua de Dom José, frente ao Casarão da Betânia. Sinto-me umbilicalmente preso a este lugar. Nunca me ausentei por muito tempo deste casarão. Em 12 de julho de 1970, dois anos e meio após deixar o Seminário, que fechou as suas portas em início de dezembro de 1967, voltei aqui para me casar com Felisbela Parente Paiva, na capela do Preciosíssimo Sangue. Aqui concluí a Faculdade de Letras, com o privilégio de ter tido o Pe. Osvaldo como professor. E há 15 anos, após me aposentar do Banco do Brasil, presto serviço à Universidade Estadual Vale do Acaraú, sediada neste casarão. Já trabalhei no dormitório dos maiores, na mentora e atualmente no dormitório dos morcegos, onde funciona a Imprensa Universitária e nela exerço a função de coordenador das Edições UVA.  Há muitos betanistas trabalhando aqui. 

Padre Sadoc, fundador e primeiro reitor da UVA, seguido de José Teodoro Soares, os dois trouxeram muitos betanistas para a auxiliar. Diziam até por aí que quem mandava na UVA era a turma da Betânia. De fato, competentes professores e administradores, betanistas prestaram e continuam prestando sua colaboração ao desenvolvimento da educação, da ciência e da tecnologia neste semiárido cearense. É o grande sonho de Dom José que continua se realizando no trabalho que fazemos. Por aqui já trabalharam  os padres Osvaldo Chaves, Valdery e Assis Rocha, Gonçalo Pinho,  João Mendes Lira, Raimundo Clea no, Raimundo Cassiano, Francisco José Aragão, entre outros;  os quase padres Leunam Gomes, Francisco Sampaio Sales, Davi Hélder Vasconcelos, José Cândido Fernandes,  José Vitorino, João Ambrósio de Araújo Filho, Modesto Siebra, José Célio Fonteles,  Aloísio Ribeiro, François Torres, João Edison Andrade, José Ferreira Portela,  Francisco José Carneiro Linhares,  Valdeci Vasconcelos,  Antônio Fernandes Vieira e  outros.

Neste final de tarde, sob olhar de bronze deste grande bispo, quero expressar a minha admiração por ele e trazer-lhe os meus sinceros agradecimentos.

Um homem extraordinário Dom José. Tanto que, a cada ano que passa após a sua morte, mais aumenta a nossa admiração por ele, porque mais se expandem, como um grande leque, os incontáveis benefícios advindos da obra que construiu. Dom José soube aproveitar, com eficiência e eficácia, todos os recursos do seu contexto histórico, numa vasta região do nosso Estado. E fez muito, quando esses recursos eram minguados; e tudo bem feito, quando era pouca a nossa capacidade tecnológica.

Conheceu a bela Roma dos Césares, tão cheia de poder perante o mundo e igual sorte sonhou para Sobral. Competência e perfeição eram os caminhos para realizar o sonho.  Se construía um prédio, era desafiando a ação demolidora dos séculos; se criava escolas, como criou o Colégio Sobralense e o Ginásio Santana, exigia qualidade de ensino equivalente ao do Colégio Dom Pedro II do Rio de Janeiro, o melhor do País, na época; se celebrava o culto divino, ah! ... não permitia o menor gesto desconforme, uma nota musical destoada, uma distração qualquer, ali não havia espaço para desleixo, porque para o Senhor Deus toda honra e toda glória. Foi assim também que criou o Seminário, de que tanto nos beneficiamos, para ofertar-nos a Deus como primícias do seu trabalho.

Profundo conhecedor da Escritura Sagrada, bem sabia que a fé sem obras é nula e “Aquele que se compraz no serviço do Senhor (...) tudo o que empreende, prospera”, como apregoa o primeiro Salmo da Bíblia. Por isso, há mais de meio século da sua morte, continua vivo no meio de nós, na obra que construiu tão bem alicerçada sobre rochas. São as instituições que criou, cidadãos e cidadãs que formou sob os ditames da competência e da ética.

Após Dom José, é difícil encontrar, nesta nossa imensa região, alguém que não esteja recebendo ou já não tenha recebido dele, direta ou indiretamente, algum legado. É que o seu sonho foi tão grande, foi tão cheio de esplendor, que ainda hoje é o sobralense que, embora morto, mais benefícios traz para o seu povo. Eu mesmo sou penhor, sou hipoteca, comprovante carimbado da obra de Dom José.

Nos encontros periódicos de betanistas, naquele clima de alegria que nos envolve, brincamos dizendo que pertencemos aos dois testamentos da Bíblia: os das décadas de 1950 e 1960 são do Novo Testamento; os que ingressaram no Seminário antes deste período pertencem ao Antigo Testamento. Cheguei aqui em 1964. Sou do Novo Testamento, do Livro do Apocalipse, precisamente do seu capítulo 21, que fala de um novo céu e de uma nova terra. 

O nosso ingresso no Seminário coincidiu com início do período mais sombrio da história do Brasil: a ditadura civil-militar. Perdemos logo, por conta dela, o nosso querido Reitor, Pe. José Linhares, que foi para a Alemanha, atendendo ao conselho do aparato de torturas: “Brasil, ame-o e deixe-o”. A minha geração na Betânia não se curvou aos canhões da ditadura. Resistimos, sim, e com ações concretas. Começamos por alfabetizar jovens e adultos já usando o método de Paulo Freire em que “a leitura do mundo precede a leitura da palavra”.  Fomos alfabetizar jovens e adultos no bairro Dom Expedito, onde residia o Pe. Osvaldo. As aulas eram à noite. Dormíamos na sua casa e, na manhã seguinte, voltávamos para o Seminário. Fundamos a escola Cura D’Ars, aqui na Betânia, para os lados da antiga pocilga. Nela alfabetizávamos jovens e adultos dos bairros circunvizinhos. Consta da biografia de São João Maria Vianna que ele tinha o dom da ubilocação, pregava ao mesmo tempo em dois lugares. Também nós precisávamos nos desdobrar para salvar o Brasil. 

Trabalhamos nesta frente de resistência Lourenço Araújo Lima, o grande líder, João Osamir Cunha, Jerônimo José de Barros, Francisco Paulo Monteiro, Davi Hélder Vasconcelos, Aloísio Ribeiro, eu e muitos outros betanistas. Fazíamos o programa radiofônico Mais Operários para a Messe, que, depois da junção do Seminário com o Colégio Sobralense, passou a se chamar A Voz do Estudante, pela Rádio Educadora do Nordeste. Mas um dia, ao chegarmos lá para apresentar o programa, deparamos com um aviso no flanelógrafo assinado pelo diretor da rádio: João Ribeiro Paiva e Lourenço Araújo Lima não poderiam mais ter acesso aos estúdios daquela emissora “por serem perniciosos”. O Pe. Osvaldo, que não concordava com a decisão do diretor, copiou na íntegra este aviso. Talvez ainda o tenha.

Chegavam até nós os ensinamentos do valente profeta dos Sertões dos Inhamuns, Dom Antônio Batista Fragoso. Vinham pela voz do Lourenço Araújo, do Macário Galdino, do Israel Torres, do Juarez Leitão e seu irmão José Maria. Aqui na Betânia as palavras do grande bispo de Crateús caíam como fermento na massa.

Minha turma concluiu o curso ginasial em 1967. Desde o início daquele ano estudávamos no Colégio Sobralense pela manhã e à tarde tínhamos aulas de Latim, Francês, Música aqui na Betânia. Éramos 35 concludentes, sendo 13 seminaristas. Colocamos no convite para a nossa festa de término de curso, no espaço das homenagens póstumas, ao lado de João XXIII e Dom José Tupinambá da Frota, o nome do Dr. Ernesto Che Guevara, que tinha sido morto recentemente. Logo a imprensa do país inteiro noticiou: concludentes sobralenses homenageiam guerrilheiro Che Guevara. Não houve a festa. O Colégio Sobralense recebeu um telegrama do governo: “As forças armadas brasileiras, mobilizadas por terra e ar, não permitirão a realização desta festa”.   Vieram as perseguições. Tivemos que debandar.

Foram assim os últimos dias do Seminário da Betânia.

Tempos depois, os relatórios dos órgãos da ditadura foram disponibilizados na Internet e deles consta que o nosso Seminário era um foco de subversão.

O que queríamos era liberdade e paz para o Brasil -- uma nova terra segundo a profecia apocalíptica.
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João Ribeiro Paiva, de Groaíras, bancário, Professor, integrante da Imprensa Universitária, da UVA.

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