Não recebi
o sacramento da ordenação sacerdotal. Mas os quatro anos que aqui passei
definiram toda a minha vida: a fé em Deus que nunca perdi; o compromisso com a
justiça e com a transformação social que sempre tive; o gosto por cuidar da
messe, que é muito grande e os operários poucos, que me fez engajar, tempos
mais, tempos menos, nos serviços da Igreja; e, sobretudo, este jeito
eclesiástico que hoje tenho e que faz muita gente perguntar se eu sou padre.
Estou
começando a escrever este meu relato, num final de tarde, ao pé da estátua de
Dom José, frente ao Casarão da Betânia. Sinto-me umbilicalmente preso a este
lugar. Nunca me ausentei por muito tempo deste casarão. Em 12 de julho de 1970,
dois anos e meio após deixar o Seminário, que fechou as suas portas em início
de dezembro de 1967, voltei aqui para me casar com Felisbela Parente Paiva, na
capela do Preciosíssimo Sangue. Aqui concluí a Faculdade de Letras, com o
privilégio de ter tido o Pe. Osvaldo como professor. E há 15 anos, após me
aposentar do Banco do Brasil, presto serviço à Universidade Estadual Vale do
Acaraú, sediada neste casarão. Já trabalhei no dormitório dos maiores, na
mentora e atualmente no dormitório dos morcegos, onde funciona a Imprensa
Universitária e nela exerço a função de coordenador das Edições UVA. Há muitos betanistas trabalhando aqui.
Padre
Sadoc, fundador e primeiro reitor da UVA, seguido de José Teodoro Soares, os
dois trouxeram muitos betanistas para a auxiliar. Diziam até por aí que quem
mandava na UVA era a turma da Betânia. De fato, competentes professores e
administradores, betanistas prestaram e continuam prestando sua colaboração ao
desenvolvimento da educação, da ciência e da tecnologia neste semiárido
cearense. É o grande sonho de Dom José que continua se realizando no trabalho
que fazemos. Por aqui já trabalharam os
padres Osvaldo Chaves, Valdery e Assis Rocha, Gonçalo Pinho, João Mendes Lira, Raimundo Clea no, Raimundo
Cassiano, Francisco José Aragão, entre outros;
os quase padres Leunam Gomes, Francisco Sampaio Sales, Davi Hélder
Vasconcelos, José Cândido Fernandes,
José Vitorino, João Ambrósio de Araújo Filho, Modesto Siebra, José Célio
Fonteles, Aloísio Ribeiro, François
Torres, João Edison Andrade, José Ferreira Portela, Francisco José Carneiro Linhares, Valdeci Vasconcelos, Antônio Fernandes Vieira e outros.
Neste final
de tarde, sob olhar de bronze deste grande bispo, quero expressar a minha
admiração por ele e trazer-lhe os meus sinceros agradecimentos.
Um homem extraordinário Dom José. Tanto
que, a cada ano que passa após a sua morte, mais aumenta a nossa admiração por
ele, porque mais se expandem, como um grande leque, os incontáveis benefícios
advindos da obra que construiu. Dom José soube aproveitar, com eficiência e
eficácia, todos os recursos do seu contexto histórico, numa vasta região do
nosso Estado. E fez muito, quando esses recursos eram minguados; e tudo bem
feito, quando era pouca a nossa capacidade tecnológica.
Conheceu a
bela Roma dos Césares, tão cheia de poder perante o mundo e igual sorte sonhou
para Sobral. Competência e perfeição eram os caminhos para realizar o
sonho. Se construía um prédio, era desafiando
a ação demolidora dos séculos; se criava escolas, como criou o Colégio
Sobralense e o Ginásio Santana, exigia qualidade de ensino equivalente ao do
Colégio Dom Pedro II do Rio de Janeiro, o melhor do País, na época; se
celebrava o culto divino, ah! ... não permitia o menor gesto desconforme, uma
nota musical destoada, uma distração qualquer, ali não havia espaço para
desleixo, porque para o Senhor Deus toda honra e toda glória. Foi assim também
que criou o Seminário, de que tanto nos beneficiamos, para ofertar-nos a Deus
como primícias do seu trabalho.
Profundo
conhecedor da Escritura Sagrada, bem sabia que a fé sem obras é nula e “Aquele
que se compraz no serviço do Senhor (...) tudo o que empreende, prospera”, como
apregoa o primeiro Salmo da Bíblia. Por isso, há mais de meio século da sua
morte, continua vivo no meio de nós, na obra que construiu tão bem alicerçada
sobre rochas. São as instituições que criou, cidadãos e cidadãs que formou sob
os ditames da competência e da ética.
Após Dom José,
é difícil encontrar, nesta nossa imensa região, alguém que não esteja recebendo
ou já não tenha recebido dele, direta ou indiretamente, algum legado. É que o
seu sonho foi tão grande, foi tão cheio de esplendor, que ainda hoje é o
sobralense que, embora morto, mais benefícios traz para o seu povo. Eu mesmo
sou penhor, sou hipoteca, comprovante carimbado da obra de Dom José.
Nos
encontros periódicos de betanistas, naquele clima de alegria que nos envolve,
brincamos dizendo que pertencemos aos dois testamentos da Bíblia: os das
décadas de 1950 e 1960 são do Novo Testamento; os que ingressaram no Seminário
antes deste período pertencem ao Antigo Testamento. Cheguei aqui em 1964. Sou
do Novo Testamento, do Livro do Apocalipse, precisamente do seu capítulo 21,
que fala de um novo céu e de uma nova terra.
O nosso
ingresso no Seminário coincidiu com início do período mais sombrio da história
do Brasil: a ditadura civil-militar. Perdemos logo, por conta dela, o nosso
querido Reitor, Pe. José Linhares, que foi para a Alemanha, atendendo ao
conselho do aparato de torturas: “Brasil, ame-o e deixe-o”. A minha geração na
Betânia não se curvou aos canhões da ditadura. Resistimos, sim, e com ações
concretas. Começamos por alfabetizar jovens e adultos já usando o método de
Paulo Freire em que “a leitura do mundo precede a leitura da palavra”. Fomos alfabetizar jovens e adultos no bairro
Dom Expedito, onde residia o Pe. Osvaldo. As aulas eram à noite. Dormíamos na
sua casa e, na manhã seguinte, voltávamos para o Seminário. Fundamos a escola
Cura D’Ars, aqui na Betânia, para os lados da antiga pocilga. Nela
alfabetizávamos jovens e adultos dos bairros circunvizinhos. Consta da
biografia de São João Maria Vianna que ele tinha o dom da ubilocação, pregava
ao mesmo tempo em dois lugares. Também nós precisávamos nos desdobrar para
salvar o Brasil.
Trabalhamos nesta frente de resistência Lourenço Araújo Lima,
o grande líder, João Osamir Cunha, Jerônimo José de Barros, Francisco Paulo
Monteiro, Davi Hélder Vasconcelos, Aloísio Ribeiro, eu e muitos outros
betanistas. Fazíamos o programa radiofônico Mais Operários para a Messe,
que, depois da junção do Seminário com o Colégio Sobralense, passou a se chamar
A Voz do Estudante, pela Rádio Educadora do Nordeste. Mas um dia, ao
chegarmos lá para apresentar o programa, deparamos com um aviso no flanelógrafo
assinado pelo diretor da rádio: João Ribeiro Paiva e Lourenço Araújo Lima não
poderiam mais ter acesso aos estúdios daquela emissora “por serem perniciosos”.
O Pe. Osvaldo, que não concordava com a decisão do diretor, copiou na íntegra
este aviso. Talvez ainda o tenha.
Chegavam
até nós os ensinamentos do valente profeta dos Sertões dos Inhamuns, Dom
Antônio Batista Fragoso. Vinham pela voz do Lourenço Araújo, do Macário Galdino,
do Israel Torres, do Juarez Leitão e seu irmão José Maria. Aqui na Betânia as
palavras do grande bispo de Crateús caíam como fermento na massa.
Minha turma
concluiu o curso ginasial em 1967. Desde o início daquele ano estudávamos no
Colégio Sobralense pela manhã e à tarde tínhamos aulas de Latim, Francês,
Música aqui na Betânia. Éramos 35 concludentes, sendo 13 seminaristas.
Colocamos no convite para a nossa festa de término de curso, no espaço das
homenagens póstumas, ao lado de João XXIII e Dom José Tupinambá da Frota, o
nome do Dr. Ernesto Che Guevara, que tinha sido morto recentemente. Logo a
imprensa do país inteiro noticiou: concludentes sobralenses homenageiam
guerrilheiro Che Guevara. Não houve a festa. O Colégio Sobralense recebeu um telegrama
do governo: “As forças armadas brasileiras, mobilizadas por terra e ar, não
permitirão a realização desta festa”.
Vieram as perseguições. Tivemos que debandar.
Foram assim os últimos dias do Seminário da Betânia.
Tempos
depois, os relatórios dos órgãos da ditadura foram disponibilizados na Internet
e deles consta que o nosso Seminário era um foco de subversão.
O que queríamos era liberdade e paz para o Brasil -- uma nova terra
segundo a profecia apocalíptica.
]
João Ribeiro Paiva, de Groaíras, bancário, Professor, integrante da
Imprensa Universitária, da UVA.
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