Pressionado
por protestos nas ruas e ameaças de investigação no Senado, o Supremo Tribunal
Federal (STF) julga nesta quarta-feira (20/11) se órgãos de fiscalização como a
Receita Federal, o antigo Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras)
e o Banco Central podem repassar informações sigilosas para o Ministério
Público sem prévia autorização judicial.
Desde julho, centenas de investigações e processos
criminais estão parados por decisão individual do presidente do STF, Dias
Toffoli, após um pedido do senador Flávio Bolsonaro (PSL-RJ), filho do
presidente Jair
Bolsonaro.
O hoje parlamentar federal passou a ser investigado
pelo Ministério Público do Rio de Janeiro no ano passado por suposto desvio de
recursos do seu gabinete de deputado estadual fluminense depois que um
relatório do Coaf — órgão renomeado para Unidade de Inteligência Financeira
(UIF) — identificou movimentações suspeitas em sua conta bancária.
A defesa do senador argumentou que a investigação é
ilegal porque os procuradores teriam realizado uma "devassa de mais de uma
década" nas suas movimentações bancárias e financeiras ao solicitar mais
informações ao Coaf sem pedir autorização da Justiça.
Agora, os onze ministros do STF julgarão se a Constituição exige uma decisão
judicial para o compartilhamento de dados protegidos por sigilo fiscal e
bancário e se devem ou não ser anuladas as investigações e processos em que as
informações foram passadas ao Ministério Público sem a autorização de um
magistrado.
Decisões prévias de ministro do Supremo sobre esse
tema indicam que se trata de mais uma matéria em que a Corte está bastante
dividida. Entenda melhor a seguir o que está em jogo no julgamento.
1. O julgamento não trata
apenas de Flávio Bolsonaro
O recurso que será julgado
pelo plenário tem origem em um processo que corre em sigilo sobre sonegação
fiscal. Neste caso, donos de uma posto de combustíveis no interior em São Paulo
conseguiram anular o processo contra eles no Tribunal Regional Federal da 3ª
Região sob o argumento de que a Receita Federal enviou seus dados fiscais ao
Ministério Público sem autorização judicial.
O Ministério Público Federal
então recorreu contra a decisão ao STF,
que reconheceu a repercussão geral do caso (ou seja, o julgamento afetará todos
os casos semelhantes no país). O recurso, que foi distribuído para relatoria de
Toffoli, quase foi julgado em março neste ano, mas acabou adiado por atraso na
pauta da Corte.
Em julho, a defesa de Flávio Bolsonaro peticionou o
STF pedindo que as investigações contra o senador fossem suspensas até que
recurso do caso do posto de gasolina fosse julgado.
A decisão gerou controvérsia, já que foi a partir do
pedido do filho do presidente que Toffoli suspendeu centenas de investigações e
processos no país, muito embora fosse relator do caso desde 2016.
De acordo a Procuradoria-Geral da República, a decisão
do presidente do STF paralisou "935 Inquéritos Policiais, Procedimentos
Investigatórios Criminais e Ações Penais que tramitam com a atuação do
Ministério Público Federal". O levantamento não alcança casos parados nas
esferas estaduais, como o de Flávio Bolsonaro.
Desses 935, quase metade (446) trata de crimes
tributários, como sonegação fiscal, e outros 193 apuram a ocorrência de lavagem
de dinheiro. Algumas dezenas de casos de corrupção também tiveram a
investigação ou processo paralisados.
Outra decisão de Toffoli revelada na semana passada
pelo jornal Folha de S.Paulo atraiu novas críticas a sua atuação no caso: em
outubro, o presidente do STF solicitou à UIF (ex-Coaf) acesso a dados sigilosos
de cerca de 600 mil pessoas e empresas sob a justificativa de que queria
entender a produção dos relatórios.
No entanto, após a reação negativa, o ministro revogou
sua decisão na noite desta segunda-feira. Ele havia recebido uma senha para
acessar o sistema, mas não chegou a utilizá-la.
"Trata-se de medida desproporcional que põe em
risco a integridade do sistema de inteligência financeira, podendo afetar o
livre exercício de direitos fundamentais", havia criticado na semana
passada o procuradora-geral da República, Augusto Aras.
Defesa de Flávio Bolsonaro pediu que investigações contra o senador
fossem suspensas até que recurso sobre outro processo fosse julgado
2. Violação à privacidade?
Juristas que defendem a necessidade de autorização
judicial antes do envio de dados fiscais e bancários ao Ministério Público
argumentam que isso busca evitar abusos do Estado em investigações. Eles
ressaltam que o Artigo 5 da Constituição estabelece que "são invioláveis"
a intimidade e a vida privada das pessoas.
"O juiz só pode autorizar o conhecimento de
sigilo fiscal de alguém se houver fundada suspeita da prática de um crime. O
que está havendo é uma inversão de ordem", crítica o advogado criminalista
Maurício Dieter, professor de direito penal na Universidade de São Paulo (USP)
e integrante do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM), que foi
aceito para participar no julgamento como amicus curiae (amigo da
corte).
"Ao juiz cabe avaliar se existe ou não uma base
suficiente de informações que autorize violar sua privacidade, sua vida
privada. O controle do juiz é para garantir que não vão devassar seu Imposto de
Renda a não ser que haja a suspeita de prática de crime", reforça.
No caso de Flávio Bolsonaro, sua defesa disse ao STF
que "bastou um singelo e-mail para que o sigilo bancário e de dados de uma
DÉCADA do Requerente e dos demais investigados fosse quebrado".
Augusto Aras, por sua vez, refutou em manifestação ao
STF que o compartilhamento de informação de órgão de fiscalização represente
uma "devassa" na vida dos investigados.
No caso da UIF (ex-Coaf), por exemplo, o
procurador-geral destacou que o órgão não tem acesso a todas as transações
financeiras de uma pessoa investigada, produzindo relatórios a partir das
informações sobre operações consideradas suspeitas (como transações elevadas em
dinheiro vivo ou operações sequenciadas em valores menores) que lhe são
automaticamente enviadas por bancos, joalherias e outras instituições, conforme
estabelecido em lei e normas federais.
"É tecnicamente impossível ao órgão realizar
qualquer tipo de 'devassa' em movimentações bancárias alheias, até porque
sequer possui acesso a essas informações", pontua em um dos trechos.
Aras informou ainda ao STF que o Ministério Público
Federal recebeu da UIF nos últimos três anos 972 relatórios de inteligência
financeira, enviados pelo órgão espontaneamente, sem requisição dos
procuradores.
Ele argumentou também que o órgão segue as orientações
do Grupo de Ação Financeira contra a Lavagem de Dinheiro e o Financiamento do
Terrorismo (Gafi), instituição internacional da qual o país faz parte.
Após a decisão de Toffoli, o Gafi e a OCDE
(Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico) manifestaram
preocupação com a suspensão das investigações.
"Esperamos que o Supremo entenda que essa liminar
(de Toffoli suspendendo as investigações) não segue os padrões internacionais
de luta contra a lavagem de dinheiro", afirmou na semana passada o
presidente do Grupo de Trabalho sobre Suborno da OCDE, Drago Kos, durante
visita ao Brasil.
3. A divisão no STF
Assim como ocorreu há duas
semanas, quando o STF decidiu, por 6 votos a 5, proibir a prisão já após
condenação em segunda instância, o julgamento sobre compartilhamento de
informações sigilosas deve ter placar apertado.
No STF, julgamento sobre compartilhamento de informações sigilosas deve ter placar apertado
Nos últimos dois anos, as
duas turmas do Supremo, composta cada uma por cinco ministros, já deu decisões
a favor e contra a possibilidade de envio desses dados ao Ministério Público
sem decisão judicial, ao analisar casos específicos.
Esses julgamentos dão um indicativo de como os
ministros devem se manifestar nesta quarta, mas há também a possibilidade de
que mudem seus votos, já que se trata de um julgamento com repercussão ampla.
Em maio desse ano, por exemplo, a Segunda Turma
derrubou uma decisão individual do ministro Edson Fachin que considerou
constitucional o compartilhamento das informações sem autorização prévia.
Em seu voto, Fachin citou uma decisão do STF de 2016
que autorizou a Receita Federal a acessar dados bancários de contribuintes. Na
ocasião, ampla maioria da Corte considerou que não havia quebra de sigilo
nessas operações, mas transferência do sigilo bancário para fiscal.
"Com efeito, uma vez declarada lícita a obtenção
dos dados na esfera administrativa, há que se reconhecer também a sua licitude
para fins de persecução penal", argumentou Fachin.
Votaram contra esse entendimento Gilmar Mendes,
Ricardo Lewandowski e Celso de Mello. Cármen Lúcia não participou desse
julgamento, mas apoiou a tese de Fachin em outro julgamento da Segunda Turma no
ano passado.
Já a Primeira Turma considerou legal o
compartilhamento direto de informações da Receita com o Ministério Público ao
julgar um caso em dezembro de 2017. Votaram nesse sentido Luís Roberto Barroso,
Rosa Weber e Alexandre de Moraes. Luiz Fux estava ausente e não se manifestou.
Já Marco Aurélio ficou vencido ao decidir contra o
compartilhamento sem manifestação de um juiz. Em entrevista à BBC News Brasil
em julho, ele disse ser uma "promiscuidade" a troca direta de dados.
"É só recorrer ao Judiciário e pedir ao
Judiciário que ele afaste o sigilo. É tão fácil, o protocolo do Judiciário está
sempre aberto. Por que não recorrem? Aí partem para esses convênios esdrúxulos
de compartilhamento", criticou na ocasião.
4. Os efeitos do julgamento
Se a maioria dos ministros decidir que é ilegal o
compartilhamento de informações sem autorização judicial, o IBCCRIM solicita
que o STF determine o anulamento de todas as investigações e processos que
utilizaram esse procedimento.
"Nosso pedido é para que essa nulidade seja
retroativa porque o que é inconstitucional não pode ser inconstitucional apenas
a partir de hoje. A Constituição é de 1988", argumenta Maurício Dieter.
Já a PGR, em caso de derrota, espera que haja uma
"modulação" dos efeitos da decisão, ou seja, que ela passe a valer
apenas a partir do julgamento, tendo em vista que ministros do STF consideraram
o repasse de dados constitucional em algumas decisões individuais e nas Turmas.
Uma possibilidade é os ministros decidirem que as
informações obtidas sem autorização judicial devem ser descartadas, mas
permitir que os processos prossigam caso existam outras provas produzidas
legalmente pela investigação.
5. Tensão entre Poderes
O julgamento acontece em meio a um crescente tensão
entre STF e Congresso, onde uma parte dos senadores pressiona o presidente da
Casa, Davi Alcolumbre, a instaurar uma Comissão Parlamentar de Inquérito para
investigar ministros do Supremo, a chamada "CPI da Lava-Toga". Por
outro lado, Toffoli tem recebido apoio de Jair Bolsonaro e Flávio Bolsonaro
para tentar conter esse movimento.
Neste domingo, diversas cidades do país registraram
pequenos protestos que pediam ao Senado realizar o impeachment de Toffoli e
Gilmar Mendes.
(Fonte: BBC)
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