
"A
mulher trabalha mais. E ela dorme menos, porque acorda mais cedo para prover a
família dos recursos que ela precisa para o dia. Ela leva os filhos para a
escola. É responsável pela roupa e pelos cuidados que essa criança precisa ter.
Ela também cuida da saúde familiar, e às vezes cuida dos idosos da família. Tem
pouco tempo de se voltar para os estudos. Geralmente, se divide o trabalho,
divide com outra mulher mais do que divide com um homem. A mulher tem toda uma
jornada sobrecarregada que não cessa até a hora de dormir."
A descrição acima foi feita por Lúcia Xavier, assistente social e coordenadora da organização de mulheres negras Criola, no Rio, quando questionada sobre a desigualdade de gênero na economia e política do Brasil.
Um
relatório anual sobre igualdade de gênero no mundo do Fórum Econômico Mundial,
divulgado nesta semana, calcula que, para eliminar a desigualdade de gênero no
mundo, mantendo o ritmo atual, serão necessários 99,5 anos. Houve uma pequena
melhora: o tempo calculado anteriormente era de 108 anos.
Por causa de uma realidade como o
cenário descrito por Xavier, o estudo colocou o Brasil na 92ª posição entre 153
países analisados em relação à igualdade de gênero. Os primeiros colocados têm mais
igualdade -no caso, os nórdicos Islândia, Noruega e Finlândia- e os últimos,
menos -Paquistão, Iraque e Iêmen.
O Brasil melhorou um pouco -no ano
passado, estava na 95ª posição- e mostrou bons resultados para educação e
saúde. Mas ainda patina em participação política e econômica, que significa
presença no mercado de trabalho, igualdade salarial e renda média.
Além
disso, o texto diz que o Brasil ocupa a 22ª posição entre 25 países da América
Latina, mantendo ainda uma grande lacuna entre os gêneros.
Professora
de economia do Ibmec, Vivian Almeida explica que existe desigualdade entre
homens e mulheres na economia porque, em primeiro lugar, as mulheres são
relativamente novas no mercado de trabalho.
"Historicamente, a mulher entrou
no mercado de trabalho, em grande parte, no período de guerra, porque a força
de trabalho havia sido perdida", diz.
Em segundo lugar, diz ela, muitas vezes
essa entrada não acontece por escolha própria, com um percurso preferido por
ela -em outras palavras, a mulher não pode conduzir seus estudos pensando na
profissão específica em que acaba trabalhando.
Em terceiro lugar, enumera Almeida e
outras entrevistadas pela BBC News Brasil, está a maternidade -ou melhor, como
a sociedade lida com ela.
"Há uma espécie de penalidade ou
impacto na paridade quando a mulher tem bebê. É ela quem sai do mercado de
trabalho. E, quando ela volta, ela volta com sua trajetória no mercado de
trabalho comprometida", afirma, lembrando que mais da metade das mulheres
mães de filhos de 0 a 4 anos não trabalham e, dentre as que trabalham, muitas
só trabalham meio período.
Xavier afirma, como destacado no início
desta reportagem, que a mulher tem duplas jornadas de trabalho. Além do
trabalho formal, "ela tem que cuidar dos filhos, da casa, da alimentação
da família, dos idosos, dos doentes".
A pouca qualidade, oferta ou
inexistência de creches para seus filhos ou de serviços públicos que cuidem de
pessoas idosas também afeta a jornada da mulher e, portanto, sua presença no
mercado de trabalho.
A diferença entre mulheres e homens no
mercado de trabalho é um fenômeno global, observa Cecilia Machado, professora
da FGV-EPGE Escola Brasileira de Economia e Finanças, mas é possível destacar
algumas questões exclusivas ao Brasil. As políticas reprodutivas no país, por
exemplo.
"Ainda temos uma taxa de
fecundidade entre meninas adolescentes extremamente elevadas, em um período que
é crucial, quando as meninas ainda estão fazendo investimento em sua
educação", diz.
Em países como os Estados Unidos, por
outro lado, "a escolha do momento em que as mulheres vão ter filhos é
importante pra investimentos na educação". No Brasil, a maioria das
mulheres não tem grande poder de escolha sobre a questão da maternidade.
E também é preciso falar sobre a
situação no país da mulher negra, que dentro do grupo de mulheres é a mais
afetada.
Mulheres pretas ou pardas estão na base
da desigualdade de renda do Brasil. A pesquisa "Desigualdades Sociais por
Cor ou Raça", publicada neste ano pelo IBGE, mostrou que no ano passado
elas receberam em média menos da metade do salário (44,4%) dos homens brancos.
"Em relação ao nível de instrução,
as pessoas ocupadas de cor ou raça preta ou parda receberam rendimentos por
hora trabalhada inferiores aos das pessoas brancas, independentemente do nível
considerado", diz o estudo (considerando agora não homens e mulheres, e
sim brancos e pretos ou pardos).
Quando
uma mulher consegue estudar, fazer a faculdade de que gosta, ser produtiva e
ter uma remuneração, muitas vezes o exercício de suas escolhas é feito "em
função da renúncia de outras mulheres", segundo Almeida, do Ibmec.
"É
diretamente relacionada à capacidade de pagar uma babá, por exemplo, que em
grande parte das vezes é não branca. Para que uma economia visível possa
existir, tem mulheres tomando conta de uma economia invisível. Só é possível
porque tem alguém tomando conta da casa e dos filhos." Em outras palavras,
diz ela, "mulheres não brancas subsidiam mulheres brancas".
Participação
política
O relatório do Fórum Econômico Mundial
mostra que ainda mais que a economia, o que puxa a performance do Brasil para
baixo é a política. Aponta, por exemplo, que só duas das 22 vagas em pastas
ministeriais do país são ocupadas por mulheres.
Na opinião de Xavier, um dos motivos
pelos quais isso acontece é o fato de que "a mulher que trabalha e tem que
cuidar da casa e da família tem sua participação política prejudicada, porque
não tem tempo de participar de encontros, de debates".
"Seus momentos de folga e de lazer
são em torno da família."
Marcia Ribeiro Dias, coordenadora do
bacharelado em ciência política da Unirio, concorda que a desigualdade
socioeconômica da mulher pode impactar sua participação política. "Existem
muitas mulheres que são chefes de família e criam seus filhos sozinhas. Ela tem
que cuidar da casa, dos filhos, ela leva a renda para casa. Em função da dupla
jornada, sobra muito menos tempo de entrar na vida política."
Além disso, diz ela, o ambiente
político no Brasil é marcadamente masculino, e isso, assim como em outras
profissões, contribui para o afastamento da mulher. "Tem um ethos
masculino, com práticas políticas e comportamentos que acabam afastando a
participação das mulheres", afirma Dias.
Para ela, é um ambiente em que mulheres
são verbalmente ou moralmente atacadas e que, portanto, não estimula a
participação feminina.
Soluções
Considerando todos esses fatores e a
sombria conclusão de que, neste ritmo, só em quase cem anos haverá igualdade
entre homens e mulheres no mundo, o que a sociedade deveria fazer para
solucionar o problema?
Primeiro, sugere Machado, "talvez
as próprias empresas tenham que tentar fomentar práticas que facilitem a
inserção dos dois gêneros no mercado de trabalho".
Isso significa que as companhias
deveriam promover mais flexibilidade para as mulheres em seu dia a dia de
trabalho e em seus horários, com atitudes como agendar reuniões que atendam
seus horários, por exemplo.
A solução, diz ela, tem que passar
também pela questão de planejamento familiar. Ter poder de escolha maior sobre
a maternidade, "quando ela acontece e se acontece", observa ela, pode
diminuir essa desigualdade entre gêneros. Isso significa pensar em políticas de
prevenção, de distribuição de anticoncepcionais e aborto.
As
especialistas concordam, também, que é preciso falar em "licença
parental", e não "licença-maternidade".
"No
Brasil, falamos especificamente sobre licença-maternidade. Pouco se fala sobre
licença parental, que já é uma tendência mundial", diz Machado, apontando
que há estudos que mostram como é importante não associar essas políticas a um
gênero específico.
De acordo com ela, é preciso ainda
fomentar igualdade de gênero oferecendo opções ou incentivos para que homens
também participem das tarefas domésticas.
Uma licença "parental"
significa tempo de licença do trabalho pago para ambos pais cuidarem do filho
após seu nascimento. "Devemos olhar para a infância como um projeto
social, em que não apenas um gênero seja responsável", diz Almeida, do
Ibmec.
No Brasil, a licença-maternidade é de
quatro meses. Na terça (17), no entanto, a Comissão de Constituição, Justiça e
Cidadania da Câmara aprovou uma proposta para prolongá-la para seis meses.
Já a licença-paternidade foi aumentada
de 5 para 20 dias para empresas cadastradas no programa Empresa Cidadã.
É diferente de países como a Suécia,
por exemplo, sempre citada como referência em políticas públicas em prol da
igualdade de gênero. Ali, segundo um relatório da Unicef deste ano, mães
recebem 35 semanas de licença (quase nove meses) e pais recebem dez semanas
(dois meses e meio).
Almeida observa que, sim, talvez seja
difícil que o empregador queira pagar esse benefício. Mas é preciso considerar
não o curto prazo e situações específicas, mas a situação geral.
"A desigualdade de gênero custa
muito caro para a sociedade toda", diz ela. E explica: por causa dela, as
mulheres são colocadas em situações menos produtivas, como a do trabalho de
meio período. "Isso tudo é custo, não só um salário. É o que se retorna
para a sociedade."
Ela afirma ainda que "o
comprometimento do desenvolvimento infantil tem um custo social terrível".
E a licença parental contribuiria para um desenvolvimento infantil pleno.
"É muito difícil conseguir apelar
para quem precisa tomar decisão do dia. Mas promover um adequado
desenvolvimento infantil que inclua os pais poderem tomar conta do filho nesse
período traz benefícios sociais quase sem comparação com a situação
contrária."
Além da licença parental, as
especialistas destacam a necessidade de acesso a serviços como creche e, lembra
Xavier, oferecer serviços públicos de qualidade que garanta também o cuidado
com idosos. "São as mulheres que vão acabar cuidando desse grupo",
diz.
Por último, a maior participação da
mulher na política pode ser a solução para os problemas econômicos também, e
vice-versa.
"Se há uma representatividade
menor na política, as próprias propostas legislativas em grande medida não vão
refletir o que nós sabemos que é uma necessidade para nossa participação na
sociedade", diz Almeida. Se houvesse representação maior, talvez a
discussão por creches estivesse mais aguerrida, opina.
A própria votação da proposta de
aumentar a licença-maternidade no Brasil, por exemplo, foi aprovada em uma
Câmara mais feminina em comparação a outros anos, e o texto é de autoria de uma
mulher. Hoje, as mulheres ocupam 15% das cadeiras da Casa.
E
para aumentar a participação na política?
Se
uma maior representação política pode ajudar as mulheres em sua atividade
profissional, o contrário também é verdade: uma mulher que tem mais tempo para
trabalhar e não precisa necessariamente cuidar tanto da casa e de outros
familiares também terá mais tempo de se engajar politicamente.
Para as que querem lançar-se
candidatas, Dias, da Unirio, sugere que seja adotado um sistema de cotas.
"Constatada a subrepresentação das mulheres na política, 20%, 30% das
vagas poderiam ser reservadas para mulheres", sugere.
Hoje, o Brasil tem cotas por gênero
para candidatos (mínimo de 30% para candidaturas de cada sexo), e não cotas
para os cargos, o que significa que partidos têm a obrigação de lançar um
determinado número de candidaturas para mulheres e homens, não que haja vagas
reservadas apenas para mulheres, como Dias propõe.
Com as regras de hoje, há registros de
partidos que lançaram candidatas mulheres apenas para cumprir a cota, desviando
o dinheiro que seria investido em sua candidatura para a campanha de candidatos
homens.
"Um procedimento institucional
criaria mais representatividade de mulheres e também ajudaria a mudar a cultura
machista dentro de assembleias legislativas. A médio e longo prazo poderia
produzir uma transformação na política", afirma Dias.
E, com mais políticas públicas para
mulheres, uma maior participação da mulher na política também poderia produzir
uma transformação em sua participação econômica e para a sociedade como um
todo. (BBC)
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