Disponibilidade de novos lotes, falta de campanhas de comunicação, excesso de burocracia, baixa procura dos grupos prioritários e equívocos nos critérios das filas de espera são alguns dos fatores que ajudam a explicar a antecipação da vacinação contra a covid-19 feita por prefeituras e governos estaduais nos últimos dias.
O anúncio mais notório
aconteceu no domingo (13/06), quando o governador de São Paulo, João Doria
(PSDB), disse que o calendário de imunização do Estado seria adiantado em 30
dias.
Com isso, ele assegurou que
todos os cidadãos paulistas com mais de 18 anos receberão ao menos uma dose da
vacina contra o coronavírus até o dia 15 de setembro. "Tenho confiança que,
neste Natal, as famílias estarão reunidas, os amigos poderão se abraçar, as
pessoas poderão voltar a viver com cautela, com cuidado", discursou.
Doria não foi o único a fazer
promessas do tipo: na manhã seguinte (14/06), o prefeito do Rio de Janeiro,
Eduardo Paes (PSD), compartilhou uma mensagem no Twitter dizendo que também
acelerará a aplicação de doses em terras cariocas:
Me aguarde @jdoriajr. Você é o pai da vacina mas eu
já adotei a criança e já ganhei o coração do imunizante. Não me provoque. Estou
preparando a resposta. Bora vacinar! 💪💪💪💪 https://t.co/EilkqvlVqI
— Eduardo Paes
(@eduardopaes) June 14, 2021
Final de Twitter post, 1
Outro a se pronunciar sobre o
tema foi o governador de Goiás, Ronaldo Caiado (DEM)
Só
descansarei quando o último goiano for vacinado contra a COVID-19. Com as novas
remessas a caminho, já em setembro vamos vacinar até a faixa etária dos 18
anos! Preparem os braços, goianos e goianas! A sua hora de vacinar está
chegando! 💉💪🙏#Éporvocêqueagentefaz
— Ronaldo Caiado
(@ronaldocaiado) June 14, 2021
O final de semana mais recente
também foi marcado por dois grandes mutirões de vacinação, que aconteceram em
Manaus (AM) e nas cidades de São José de Ribamar, Paço do Lumiar, Raposa e São
Luís, todas no Maranhão.
A iniciativa maranhense, que
recebeu o nome de "Arraial da Vacinação", funcionou ininterruptamente
por 41 horas e contou até com atrações musicais típicas de festas juninas e
distribuição de mingau de milho para os participantes.
Embora todas essas declarações
e anúncios representem uma boa notícia e tragam uma perspectiva otimista para o
enfrentamento da pandemia, especialistas se questionam sobre o que elas
representam na prática e como isso pode afetar o andamento da vacinação contra
a covid-19 no país.
Maior intervalo entre as doses
permitiu acelerar
A partir do mês de maio, o
Brasil viu aumentar consideravelmente a chegada de novas doses das vacinas já
aprovadas pela Anvisa.
Nos primeiros meses do ano, o
país dependeu basicamente das remessas da CoronaVac, que são envasadas e
distribuídas pelo Instituto Butantan com insumos enviados pela farmacêutica
chinesa Sinovac.
Em março, por exemplo, quase 9
em cada 10 imunizantes entregues ao Ministério da Saúde vinham do Butantan.
Mais recentemente, porém, essa
situação se inverteu: a estabilidade na produção da AZD1222 (AstraZeneca,
Universidade de Oxford e Fundação Oswaldo Cruz) e a chegada das primeiras
remessas da Cominarty (Pfizer/BioNTech) ampliaram o leque da vacinação contra a
covid-19 no Brasil.
E há uma diferença fundamental
entre esses dois momentos: o tempo de espera entre a primeira e a segunda doses
de acordo com o produto.
A CoronaVac exige um intervalo
de 14 a 28 dias entre as aplicações. Já na AZD1222 e na Cominarty, esse período
é de quase três meses, seguindo as diretrizes adotadas no país.
Na prática, isso traz
implicações claras no planejamento das campanhas: os lotes do imunizante
produzido por Butantan e Sinovac exigem mais cautela no ritmo de uso, pois as
pessoas precisarão tomar o reforço em poucas semanas.
Os gestores de saúde,
portanto, são mais conservadores e só costumam utilizar metade das doses
disponíveis. Assim, eles garantem que a outra parcela fique estocada e seja
usada nesses mesmos indivíduos, para completar o esquema vacinal deles.
Já no caso da AZD1222 e da
Cominarty, governadores e prefeitos podem arriscar um pouquinho mais e utilizar
como primeira dose praticamente 100% das remessas que receberam.
Essa, inclusive, tem sido a
orientação do próprio Ministério da saúde: "gastar" os lotes entregues
desses dois imunizantes como primeira dose no maior número de pessoas.
Afinal, como há esse espaço de
90 dias para a segunda aplicação, dá tempo suficiente de esperar o envio de
novas remessas dos fornecedores nacionais ou estrangeiros, conforme o planejamento
estabelecido pelas autoridades federais.
"Assim que recebemos as
vacinas, nós já aplicamos. Nunca as guardamos em estoque e estamos sempre no
limite para acabar as doses", diz o médico Daniel Soranz, secretário
municipal da Saúde do Rio de Janeiro.
Vai ter segunda dose de vacina
pra todo mundo?
Atualmente, os gestores
públicos estão num dilema constante e precisam fazer muitos cálculos para
garantir o bom ritmo das campanhas de vacinação.
Afinal, a maioria dos adultos
que serão imunizados até setembro precisarão voltar ao posto de saúde para
receber a segunda dose em algum momento entre outubro e dezembro de 2021.
E aí vem a grande pergunta: se
Estados e municípios estão usando todo o estoque disponível agora, será que
teremos vacinas para completar a imunização dos brasileiros no final do ano?
A epidemiologista Regiane de
Paula, coordenadora do Programa Estadual de Imunização (PEI) contra a Covid-19
do Estado de São Paulo, admite que essa é uma preocupação, mas aponta que todo
o planejamento foi feito de acordo com as projeções de compras e entregas
divulgadas pelo Ministério da Saúde.
"Nós temos os
quantitativos que virão do Instituto Butantan e dos demais fornecedores. E
estamos trabalhando para levar os imunizantes à rede pública de saúde e
permitir que os municípios façam a vacinação", descreve.
O especialista em imunização
José Cássio de Moraes, que integra a Comissão de Epidemiologia da Associação
Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), entende que Estados e municípios
deveriam agir com mais prudência e guardar ao menos uma parcela das doses.
"O abastecimento de
vacinas ainda está muito irregular no país e já acompanhamos os atrasos por uma
série de fatores, como a demora para a liberação do insumo farmacêutico ativo,
o IFA, na China", aponta.
Um exemplo recente dessa
imprevisibilidade é a vacina da Janssen: as primeiras 3 milhões de doses
estavam programadas para chegar ao Brasil nesta terça-feira (15/06), mas isso
não vai acontecer.
O Ministério da Saúde espera
que as remessas desembarquem ainda esta semana, mas não informou uma data exata
de quando a farmacêutica irá efetivamente realizar a entrega.
Portanto, Estados e municípios
que estavam contando com essas doses da Janssen para os próximos dias terão que
esperar mais um pouco — e isso, claro, se reflete no planejamento e no
andamento das campanhas locais.
Moraes, que também é professor
da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, entende que essas
escolhas da saúde pública são realmente muito complicadas
"É um dilema difícil de
resolver: os gestores podem ampliar a cobertura e vacinar mais gente com a
primeira dose, mesmo sabendo do risco de sofrer atrasos com a segunda dose? Ou
devem segurar os lotes no depósito quando ainda temos muita gente
vulnerável?", questiona.
Até o momento, 55,7 milhões de
brasileiros, ou 26,3% da população, já tomaram a primeira dose da vacina.
Por ora, a segunda dose foi
aplicada em 23,7 milhões de indivíduos (11% do total de habitantes do país).
Baixa procura e falta de
organização
Os especialistas ouvidos pela
BBC News Brasil também chamam a atenção para os possíveis "buracos"
que estão ficando pelo caminho na campanha de vacinação contra a covid-19 no
país.
Em alguns grupos prioritários,
como os idosos, há uma parcela considerável de pessoas que não recebeu sequer a
primeira dose.
Uma reportagem da Folha de S.Paulo revelou
que, até o dia 30 de maio, 1 milhão de brasileiros com mais de 70 anos ainda
não haviam sido imunizados.
Há diversos fatores diretos e
indiretos que podem explicar esse grupo expressivo de desprotegidos.
Eles podem estar sendo
influenciados por notícias falsas, que espalham desinformação sobre supostos
efeitos colaterais graves das vacinas, por exemplo.
Não dá pra ignorar também a
acessibilidade às unidades básicas de saúde: muitas vezes, os locais ficam
longe de casa e esses indivíduos precisam do auxílio de filhos, netos e amigos,
que estão em horário de trabalho durante o período de funcionamento dos postos
de vacinação.
"Para completar, nós não
vemos uma comunicação efetiva e uma coordenação feita pelo Governo Federal.
Cada cidade ou Estado cria as próprias estratégias e fica tudo desorganizado e
sem critérios claros", critica Moraes.
E esse problema se torna ainda
mais grave em relação à segunda dose: segundo essa mesma matéria da Folha,
2,6 milhões de idosos que foram até o posto para receber a primeira vacina não
completaram o esquema no prazo estipulado.
E não faltam motivos para
explicar essa "desistência" no meio do caminho: muitos podem achar
que já têm uma proteção suficiente com uma dose (o que não é verdade), ou
simplesmente não se lembram mais da data de retorno.
Paula, que coordena o PEI de
São Paulo, revela que 300 mil paulistas não voltaram para tomar a segunda dose.
"Esse número já foi
maior. Mas estamos pensando em ações grandes para diminuir a taxa de faltosos,
como os famosos 'dias D' da vacinação", analisa.
Já na cidade do Rio de
Janeiro, Soranz aponta que 4% daqueles que receberam a primeira dose não
retornaram para o reforço
"Apesar de o número não
ser alto, consideramos essa situação preocupante. Pelo que sabemos, o principal
motivo é o esquecimento da data para a segunda aplicação", detalha.
"Nós vamos fazer a busca
ativa desses casos para lembrá-los da importância de completar o esquema
vacinal", finaliza o médico.
Se a evasão e a recusa aos
imunizantes seguir parecida ou aumentar nas demais faixas etárias que serão
contempladas a partir de agora, ao menos a estratégia de antecipação de
prefeitos e governadores permitirá que mais pessoas interessadas em receber as
doses possam fazê-lo, independentemente de serem jovens ou mais velhos.
Isso, por sua vez, ampliará a
porcentagem de vacinados no Brasil, o que certamente contribuirá para
alcançarmos futuramente a imunidade coletiva contra a covid-19, ou pelo menos
para que a situação dos hospitais e enfermarias fique um pouco mais tranquila.
Falta campanha de vacinação
Os especialistas também chamam
a atenção para a falta de campanhas públicas que conscientizem a população
sobre a necessidade de tomar a segunda dose no prazo estipulado.
"Precisamos que o governo
faça mais propagandas e leve informações claras e precisas sobre a
vacinação", pede Moraes.
Em alguns lugares do mundo,
por exemplo, os cidadãos são avisados por e-mail, mensagem de texto e telefone
quando precisam fazer o retorno — e isso já reduz o risco de esquecimentos e
confusões.
Outra boa ideia é o "Dia
D", que ficou muito famoso nas campanhas de poliomielite a partir das
décadas de 1980 e 1990: a proposta é estipular uma data de mobilização
nacional, geralmente um sábado, para as pessoas irem em massa até os postos de
saúde.
Bagunça burocrática e falta de
busca ativa
O médico Paulo Lotufo,
professor da Universidade de São Paulo, também critica as escolhas que foram
feitas para determinar a ordem da vacinação.
"Foi um equívoco total
desde o início. O Ministério da Saúde deveria ter focado nos locais com o maior
número de casos ou com grande vulnerabilidade, como Manaus. Eles poderiam ter
vacinado toda a população desses lugares que estavam com a situação mais
preocupante", raciocina.
Após avançar na proteção de
profissionais da saúde, idosos e indígenas, várias cidades e Estados partiram
para a imunização de indivíduos com comorbidades, como doenças cardíacas e
diabetes, de acordo com faixas etárias pré-determinadas.
Muitos locais exigiam não
apenas atestado médico, mas também comprovante de residência para liberar a
aplicação da vacina. E isso aumentou ainda mais a confusão.
O especialista entende que as
comorbidades configuram um critério socialmente injusto: enquanto pessoas mais
ricas podem pagar uma consulta particular para obter um atestado, os mais
pobres não conseguem esse tipo de comprovação e acabam ficando para trás.
Essa burocracia, portanto,
pode ter criado disparidades importantes e dificultado o trabalho dos
profissionais que atuam nos postos de saúde.
"Isso só retardou a
campanha. As pessoas demoraram para chegar aos postos, tinham que levar uma
série de documentos…", observa Lotufo.
Para completar, enfermeiros e
auxiliares precisaram gastar seu tempo checando e organizando toda a
documentação das pessoas, enquanto poderiam estar aplicando mais vacinas ou
realizando a busca ativa daqueles indivíduos que não retornaram para tomar a
segunda dose.
Mais recentemente,
governadores e prefeitos parecem ter abandonado essa ideia e estão estipulando
a idade como único critério para a imunização.
Já Regiane de Paula entende
que o foco inicial nas comorbidades era importante para proteger as pessoas com
mais riscos de sofrer complicações ou morrer por causa da covid-19.
"Essa determinação veio
do próprio Programa Nacional de Imunizações, do Ministério da Saúde, e os
Estados seguiram as diretrizes. Agora que cumprimos o que foi preconizado, nós
decidimos focar nas faixas etárias", conta.
Os calendários divulgados nos
últimos dias confirmam essa tendência: São Paulo, por exemplo, vai contemplar
todo mundo de 50 a 59 anos entre os dias 16 e 22 de junho, para depois partir
para a população com 43 a 49 anos nas semanas seguintes e assim por diante.
De acordo com anúncios
recentes, outros Estados devem seguir esse mesmo ritmo, com pequenas alterações
nas datas e nos recortes das faixas etárias.
Uma estratégia comunitária
Por fim, é preciso levar em
conta que o benefício da vacinação é coletivo e supera (e muito) a proteção
individual dos indivíduos que já receberam suas doses.
"Vacinação é isso: quanto
mais gente imunizada, melhor para todo mundo", resume Lotufo.
Em outras palavras, a
sociedade inteira fica mais protegida de determinada doença infecciosa quando
uma parcela considerável da população está imunizada.
Isso fica claro quando a gente
analisa o estudo de Serrana, cidade no
interior paulista em que todos os adultos tomaram duas doses da CoronaVac:
foi só quando 75% dos moradores estavam efetivamente vacinados que os casos, as
internações e as mortes por covid-19 começaram a cair por lá.
E o tempo é um fator-chave
para nos livrarmos dessa pandemia: enquanto tivermos uma parcela considerável
de pessoas vulneráveis, o risco de colapso do sistema de saúde e de surgimento
de novas variantes mais transmissíveis e letais é considerável.
O lado bom dessa história é
que o Brasil tem estrutura e capacidade para botar o pé no acelerador.
"Nós temos 36 mil postos
de vacinação e muitos profissionais capacitados, então não é exagero pensar que
conseguimos aplicar 2 milhões de doses por dia", projeta Moraes.
Por ora, o número de
brasileiros imunizados a cada 24 horas variou entre 600 e 800 mil nos últimos
meses — foram poucos os dias em que o país ultrapassou a marca de 1 milhão de
vacinas utilizadas.
Enquanto esse cenário não vira
realidade e não temos uma boa porcentagem de cidadãos devidamente resguardados
contra a covid-19, é importante que todos (vacinados ou não) continuem fazendo
a sua parte.
"Máscaras, distanciamento
social e lavagem de mãos seguem como atitudes essenciais neste momento",
resume Paula.
E, claro, quando chegar a sua
vez, vá até o posto de saúde mais próximo para tomar a sua dose — e não se
esqueça de retornar ao mesmo local na data estipulada para completar o esquema
vacinal que protege sua própria saúde e todo mundo ao redor. (BBC)
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