Em meio a uma
série de denúncias de possíveis ilegalidades envolvendo contratos para compra
de vacinas contra covid-19, tem crescido a pressão pelo impeachment do
presidente Jair Bolsonaro (sem partido), com sucessivos protestos contra seu
governo em todas as regiões do país.
Mas, apesar do aumento do desgaste de Bolsonaro e da recente apresentação por partidos de oposição do que vem sendo chamado de "superpedido de impeachment", seguem presentes fatores que dificultam a abertura de um processo para cassar o presidente no Congresso.
Para o
cientista político Antonio Lavareda, presidente do conselho científico do
Instituto de Pesquisas Sociais Políticas e Econômicas (Ipespe), os três
principais obstáculos são: a aliança de Bolsonaro com o presidente da Câmara,
Arthur Lira (PP-AL) (única autoridade que pode iniciar o procedimento), a falta
de votos suficientes entre os deputados para dar aval a um processo de cassação
no Senado, e a dimensão ainda insuficiente de atos nas ruas capazes de
pressionar os parlamentares a mudar de posição.
Somam-se a
isso fatores adicionais como a falta de provas que confirmem cabalmente as
denúncias de pedidos de propina dentro do Ministério da Saúde, a proximidade
cada vez maior das eleições de 2022, e o fato de o vice-presidente, general
Hamilton Mourão, não ser visto no Congresso como uma opção interessante para
presidir o país.
Entenda a seguir melhor esses
seis obstáculos que hoje protegem o mandato presidencial, apesar de já terem
sido apresentados 125 pedidos de impeachment.
Nessas dezenas de
solicitações, os denunciantes acusam o presidente de cometer crimes de
responsabilidade na condução da pandemia de coronavírus (ao promover
aglomerações e demorar a comprar vacinas, por exemplo), assim como por ter
participado em 2020 de atos que pediam o fechamento do Congresso e do Supremo
Tribunal Federal (STF), ou ao supostamente interferir em instituições de
investigação, como a Polícia Federal (PF).
1) O tamanho
dos protestos
Embora os
protestos de rua contra Bolsonaro tenham crescido desde maio, essas
manifestações não ganharam, até o momento, a dimensão dos atos pelo impeachment
da então presidente Dilma Rousseff em 2015 e 2016. Em um desses protestos, em
março de 2016, havia 500 mil pessoas na Avenida Paulista, em São Paulo, segundo
estimativa do Instituto Datafolha.
Pesquisas de avaliação da
popularidade do presidente também mostram que ele mantém apoio maior do que
tinha a petista quando foi iniciado o processo de impeachment. Segundo recente
pesquisa Ipec (instituto fundado por executivos que eram do Ibope), o governo
Bolsonaro contava no final de junho com 24% de avaliação bom ou ótimo. Já em
dezembro de 2015, a avaliação de positiva de Dilma era de apenas 9%, segundo
pesquisa Ibope.
Para
organizadores dos protestos contra Bolsonaro, em sua maioria partidos e
movimentos de centro-esquerda como Frente Povo Sem Medo, Frente Brasil Popular
e Coalizão Negra por Direitos, a pandemia de coronavírus acaba afastando parte
dos opositores de Bolsonaro das ruas devido ao medo de contrair a doença nos
atos - embora a convocação estimule o distanciamento entre os manifestantes e o
uso de máscaras, preferencialmente modelos mais eficazes como a PFF2.
Os atos do
último sábado contaram com a adesão de alguns setores da centro-direita, como o
diretório municipal do PSDB em São Paulo e os movimentos Livres e Agora, numa
ampliação do espectro político em relação aos protestos realizados em maio e
junho.
Por outro
lado, organizações que lideraram os atos contra o governo Dilma Rousseff, como
MBL e Vem pra Rua, continuaram sem convocar seus apoiadores para as
manifestações, embora defendam também o impeachment de Bolsonaro.
A expectativa
dos grupos que já estão nas ruas pelo impeachment é que o gradual aumento do
desgaste que vem sendo provocado pelas sucessivas suspeitas sobre contratos de
vacinas e a atuação da CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) da Covid atraia
cada vez mais pessoas aos atos.
A CPI estava
prevista originalmente para durar até o início de agosto, mas já há apoio
suficiente de senadores para que seja prorrogada por mais 90 dias. Nesta
semana, estão programados depoimentos de servidores do Ministério da Saúde para
dar explicações sobre as suspeitas de ilegalidade no contrato firmado em
fevereiro para compra de 20 milhões de doses da vacina indiana Covaxin e sobre
denúncias de pedidos de propina.
Regina Célia,
fiscal do contrato da Covaxin, será ouvida nesta terça-feira (6/7). Roberto
Ferreira Dias, ex-diretor de logística do Ministério da Saúde acusado de ter
pedido de propina numa oferta para compra de vacinas da AstraZeneca, prestará
depoimento na quarta-feira (7/7). E, no dia seguinte, é a vez da CPI receber
Carolina Palhares Lima, diretora de Integridade do Ministério da Saúde.
Além dos
trabalhos da Comissão no Senado, Bolsonaro passou a ser alvo de um inquérito da
Procuradoria-Geral da República (PGR). A investigação, aberta na sexta-feira
passada (2/7) vai apurar se o presidente deixou de tomar previdências para
apurar possíveis ilegalidades no contrato da Covaxin. Caso isso tenha ocorrido,
ele pode ter cometido o crime de de prevaricação.
As suspeitas
sobre o contrato foram levadas a ele em março pelo servidor do Ministério da
Saúde Luís Ricardo Miranda e seu irmão, o deputado Luís Cláudio Miranda
(DEM-DF).
2) Votos
insuficientes na Câmara
O instrumento
do impeachment não foi feito para ser de fácil utilização: há necessidade de
342 votos dos 513 deputados federais para que Senado seja autorizado a
processar o presidente. O objetivo é justamente trazer estabilidade ao mandato
presidencial conquistado nas urnas.
Hoje, o apoio
na Câmara ainda está distante desse patamar, o que deixa o presidente da Casa,
Arthur Lira (PP-AL), aliado de Bolsonaro, em situação confortável para não dar
andamento a pedidos de impeachment.
Na quarta-feira (30/6),
partidos e parlamentares de oposição, juntos com movimentos da sociedade civil,
protocolaram um "superpedido" de impeachment. No entanto,
contabilizando os deputados das siglas que assinaram o pedido (PT, PCdoB, PSB,
PDT, PSOL, Cidadania, Rede, PCO, UP, PSTU e PC) mais os deputados que apoiaram
a iniciativa individualmente, como Joice Hasselmann (PSL-SP), Kim Kataguiri
(DEM-SP) e Alexandre Frota (PSDB-SP), esse grupo soma pouco menos de 140
congressistas na Câmara.
O apoio que
tem hoje no Congresso começou a ser construído há cerca de um ano, quando
Bolsonaro buscou uma aliança com os partidos do Centrão por meio da
distribuição de cargos na máquina federal entre indicados de parlamentares e do
aumento da liberação de verbas para redutos eleitorais de congressistas
aliados.
A aproximação
visou a construção de uma base para aprovar pautas de interesse do governo e a
proteção contra um processo de impeachment depois da prisão de Fabrício
Queiroz, acusado de ser o operador de um esquema de rachadinha (desvio de
recursos) do antigo gabinete de deputado estadual de um de seus filhos, o hoje
senador Flávio Bolsonaro (Patriota-RJ).
"Os
principais fatores que impedem o impeachment são a inexistência de
manifestações de rua de grandes proporções, tal como se deu no impeachment de
Dilma, e falta de apoio suficiente no Congresso. A maioria parlamentar que o
presidente construiu a partir de junho do ano passado não se desestruturou
ainda", afirma o cientista político Antonio Lavareda.
3) A agenda
própria de Arthur Lira
A ampla articulação construída
por Arthur Lira para sua eleição, com apoio do Palácio do Planalto, lhe
permitiu imprimir um ritmo acelerado para a aprovação de propostas na Câmara,
incluindo pautas controversas.
Os deputados
aprovaram este ano, por exemplo, a flexibilização do licenciamento ambiental e
a revisão da lei de improbidade administrativa - as duas propostas ainda serão
analisadas no Senado. Além disso, as duas Casas do Congresso aprovaram a
privatização da Eletrobras.
Se Lira
decidisse abrir o processo de impeachment, na prática isso significaria frear
essa intensa agenda de votações para que os deputados focassem na análise das
denúncias contra o presidente.
"O
Arthur Lira está tocando sua agenda e essa situação, até agora, pareceu confortável
para ele", nota Lavareda.
Na semana
passada, o próprio presidente da Câmara enfatizou o foco na aprovação de
"reformas".
"Aqui
seguimos a pauta do Brasil, das reformas e dos avanços. Respeito a manifestação
democrática da minoria. Mas um processo de impedimento exige mais que palavras.
Exige materialidade", afirmou ao portal G1 o presidente da Câmara, após a
entrega do "superpedido" de impeachment.
4) Provas das
denúncias
Embora tenham
se acumulado nos últimas duas semanas indícios de possíveis ilegalidades nos
contratos para compra de vacinas, parlamentares consideram que não há ainda
prova cabal de corrupção nesses negócios, nem de envolvimento direto de
Bolsonaro.
O líder do
MDB na Câmara, deputado Isnaldo Bulhões Júnior (AL), disse à BBC News Brasil
que as denúncias são graves, mas considera necessário aguardar a conclusão da
investigação da CPI para avaliar se há provas de ilegalidades. Prevista para
durar até o início de agosto, a comissão deve ser prorrogada por mais 90 dias.
"Não é o
momento ainda de discutir isso (impeachment). Tem que ter um ambiente político,
de (manifestações contra Bolsonaro nas) ruas principalmente. E o ponto
principal é a comprovação de crime. Mas, pelo que me consta até agora, está em
fase de denúncia, não é uma conclusão de investigação", ressaltou.
Os defensores do impeachment,
por outro lado, consideram que já há elementos suficientes para iniciar um
processo contra Bolsonaro.
"Para o
impeachment, o presidente ter sido omisso em relação a um esquema de corrupção
que havia em seu governo já caracteriza um crime de responsabilidade",
nota Rafael Mafei, professor da Faculdade de Direito da Universidade de São
Pauo (USP) e autor do recém-lançado livro "Como Remover um Presidente:
Teoria, História e Prática do Impeachment no Brasil".
Os que pedem
sua cassação argumentam também que já há provas suficientes de outros crimes de
responsabilidade, como sua atuação na condução da pandemia, ao promover remédio
sem eficácia contra covid-19, estimular aglomerações e boicotar a vacinação da
população.
Apesar disso,
o professor da USP explica que, historicamente, escândalos de corrupção são um
fator importante para aprovação de um impeachment, o que aumenta a importância
de provas contra o governo Bolsonaro para impulsionar um processo contra ele.
No caso de Dilma Rousseff, a presidente foi cassada sob a justificativa de que
gestão ilegal das contas públicas, mas as denúncias da Operação Lava Jato de
desvios na Petrobras foram fundamentais para impulsionar sua cassação.
"Corrupção
tem peso importante, não necessariamente como fundamento jurídico, mas
seguramente como impulso político. Gera escândalo, derruba popularidade e torna
mais custoso manter-se associado ao presidente", reforça Mafei.
5) Mourão
'não enche os olhos' do Congresso
Em recente
entrevista à BBC News Brasil, o ex-presidente da Câmara, Rodrigo Maia,
ressaltou como uma das diferenças entre o contexto que levou à cassação de
Dilma Rousseff e o contexto que preserva o mandato de Bolsonaro é o perfil
bastante diverso dos seus vice-presidentes.
No caso da
petista, seu vice era Michel Temer, um homem da política, que presidia até
então o maior partido do país (MDB) e havia comandado a Câmara três vezes quando
era deputado federal. Ou seja, era uma pessoa que sabia negociar com os
parlamentares e atuou ativamente para articular o impeachment da presidente.
Já o
vice-presidente de Bolsonaro, general Hamilton Mourão, "não é uma pessoa
ligada ao Congresso Nacional", resumiu Maia.
O fato de ele
ser do Exército agrada menos ainda, disse também à BBC News Brasil o deputado
Paulinho da Força (Solidariedade-SP). Para ele, os parlamentares não tem
clareza sobre o que seria um governo Mourão.
"Oficialmente,
estaríamos pondo os militares no poder", diz, com desconfiança.
6) Eleição
cada vez mais próxima
O correr do
tempo também joga a favor de Bolsonaro. Quanto mais o país se aproxima da
eleição de 2022, menos atraente fica a ideia de iniciar um processo para alguns
parlamentares, acredita Paulinho da Força.
Na sua visão,
o melhor é uma frente ampla derrotar Bolsonaro nas urnas, para evitar também
que ele possa assumir um discurso de "vítima de golpe", caso ocorra
um impeachment.
"Acho
que no momento não há clima nem voto para aprovar impeachment no Congresso.
Estamos há um ano e três meses das eleições e impeachment não é um processo
simples. Não é uma coisa que você instala hoje e caça o cara amanhã. Então,
isso levaria a votação do impeachment lá para a véspera da eleição",
argumenta.
O partido de Paulinho da Força
ainda não decidiu quem apoiará em 2022, mas tende a se aliar ao PT, que deve
lançar o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
Nos
bastidores de Brasília, alguns questionam o real apoio do petista ao impeachment
de Bolsonaro, pois consideram que Lula estaria mais interessado em manter a
disputa de 2022 polarizada entre ele e o atual presidente. As pesquisas hoje
mostram o petista com boas chances de vitória na próxima eleição presidencial.
O
ex-presidente, porém, tem se colocado oficialmente a favor do impeachment.
"Parabenizo
as forças de oposição ao Bolsonaro e os movimentos sociais que conseguiram
unificar os mais de 120 pedidos de impeachment pra pressionar o Lira. Espero
que as manifestações de rua convençam o presidente da Câmara a colocar em
votação", disse Lula em sua conta no Twitter, após a apresentação do
"superpedido" de impeachment. (BBC)
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