Nos comentários, os internautas questionaram o topo da pirâmide ao qual o artista se referia. Se ele, dono de uma pousada na ilha de Fernando de Noronha, de restaurantes e de uma marca própria de roupas não estava no topo, quem está?
Mas não é preciso ir tão longe. A renda mensal média de quem está
entre os 5% mais ricos no Brasil é de R$ 10.313,00, conforme os dados da Pnad
Contínua - Rendimento de todas as fontes 2019, do IBGE. O corte para
estar no 1%, ou seja, com renda média superior à de 99% da população brasileira
adulta, é de R$ 28.659,00.
A base da pirâmide é relativamente homogênea — 90% dos brasileiros
têm renda inferior a R$ 3,5 mil por mês (R$ 3.422,00) e 70% ganham até dois
salários mínimos (R$ 1.871,00, para um salário mínimo de R$ 998,00 em 2019),
ainda segundo o levantamento.
Dentro do grupo dos mais ricos, contudo, o espectro é bem
diversificado.
Tomando a faixa da pesquisa do IBGE, de R$ 28 mil, o grupo dos 1%
mais ricos inclui desde alguns profissionais liberais como advogados e
engenheiros e a elite do funcionalismo público — promotores, procuradores,
auditores da Receita —, a empresários, artistas e, finalmente, os milionários e
bilionários que aparecem nas listas dos mais ricos do país.
Rico, eu?
Talvez por isso, muitos não se enxerguem como parte do topo da
pirâmide.
A pesquisa Nós e As Desigualdades, realizada pela Oxfam em
parceria com o Instituto Datafolha, pergunta desde 2017 aos brasileiros, em uma
escala de 0 a 100, se eles se acham "muito pobres ou muito ricos".
As três edições do levantamento realizadas até agora apontam na
mesma direção: quem está no topo pode ter uma visão bastante distorcida da
realidade. A pesquisa de dezembro de 2020 apontou que, entre aqueles com renda
superior a 5 salários mínimos, 75% disseram achar fazer parte da metade mais
pobre do país.
Para se estar entre os 10% mais ricos do país, contudo, a renda
média parte de três salários mínimos, de acordo com os parâmetros da pesquisa.
Isso porque o Brasil é um país em que muita gente vive com muito
pouco. Para se estar entre os "mais ricos", do ponto de vista da
distribuição de renda, não é preciso tanto.
Síndrome da classe média
Esse descolamento entre percepção e realidade, entretanto, não é
exclusividade do Brasil.
"Os estudos sobre percepção mostram que as pessoas tendem a
se classificar no meio, como classe média. Pouca gente se classifica como pobre
ou como rica", diz o professor de Princeton e pesquisador da desigualdade
Marcelo Medeiros.
Estudiosa do tema, Asli Cansunar, professora do departamento de
Ciência Política na Universidade de Washington, nos EUA, ressalta que esses
resultados são observados pelo menos desde os anos 1970.
A explicação é relativamente simples. A grande maioria das pessoas
não consome informações sobre estatísticas econômicas no dia a dia. Na falta de
dados técnicos, a maneira de colocar sentido no mundo é por meio de comparações
— é olhar em volta e se comparar aos amigos, familiares, às celebridades na TV
ou, mais recentemente, aos influencers do Instagram.
O problema, nesse caso, é que a amostra é enviesada, já que o
cotidiano está, de maneira geral, dominado por imagens que nos levam a associar
o topo da pirâmide à ostentação: alguém que dirige um carro importado, que faz
viagens internacionais, que consome produtos de luxo.
"E quando você se compara a essas pessoas, claro, vai dizer:
'Imagina, eu não sou rico, sou classe média! Sou apenas alguém que está se
esforçando para comprar um carro novo e conseguir viajar nas férias'. Na vida
real, entretanto, se você olhar as estatísticas, vai ver que está ganhando
muito mais do que muita gente no seu entorno", destaca a pesquisadora.
Mas então quem está no 'topo' é rico?
Para além das percepções individuais, a própria noção de riqueza é
subjetiva. Não há um consenso acadêmico sobre o que seria uma "linha de
riqueza", por exemplo. Ser rico é ter dinheiro suficiente para poder parar
de trabalhar? É morar em um determinado bairro da cidade? É ter um carro
importado?
"A definição do que é ser rico é uma ferramenta, depende do
que se quer fazer com ela", pontua Medeiros.
Cansunar também ressalta que a noção de riqueza é relativa - e
pode variar inclusive dentro de um mesmo país. No Reino Unido, ela exemplifica,
ganhar mais do que as 80 mil libras por ano (R$ 590 mil), que coloca alguém
entre o 1% no topo da pirâmide, não necessariamente significa uma vida
confortável em Londres para quem tem de pagar aluguel.
A própria pirâmide de rendimentos — que, aliás, não contabiliza a
riqueza estocada em patrimônio, a recebida em herança — pode variar, a depender
da metodologia. O IBGE usa suas pesquisas domiciliares, que, tradicionalmente,
acabam subestimando a renda de quem está no topo.
Seja por uma questão ligada à segurança, por constrangimento ou
porque realmente não sabem quanto ganham na ponta do lápis, os mais ricos
acabam informando valores menores aos recenseadores do instituto.
"O IBGE faz um trabalho fantástico, mas esse é um fenômeno
que acontece no mundo inteiro. Então as pesquisas do IBGE captam muito bem,
vamos dizer, os 90% mais pobres da população", pontua o sociólogo e
pesquisador do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) Pedro Ferreira
de Souza.
"Nos 10% mais ricos, quanto mais para cima, maior a
subestimação", afirma o especialista, que é autor do livro Uma História da Desigualdade,
vencedor do prêmio Jabuti em 2019.
Por isso, pesquisadores como Souza utilizam também os dados da
Receita Federal do Imposto de Renda, que captam melhor a renda que vem de
investimento e aplicações financeiras, por exemplo.
Entre os 5% mais ricos, conforme os cálculos que ele fez com dados
de 2015, a renda média apontada pelo levantamento do IBGE era 25% menor do que
usando o IRPF. Para o 1% mais rico, a linha de corte nos dados do IBGE era 45%
menor do que no IRPF — pouco menos da metade.
Ainda que a linha de corte, na prática, seja provavelmente
superior aos R$ 28 mil apontados pela Pnad Contínua, o topo da pirâmide ainda é
formado pelo grupo heterogêneo que inclui dos "super ricos" a
profissionais liberais e parte do funcionalismo público.
O teto para o salário dos servidores federais é hoje de R$ 39 mil.
Muitos, contudo, recebem valores superiores com a inclusão de benefícios como
auxílio alimentação e moradia.
"Se você ganha um salário muito alto, e em alguns casos muito
acima do teto — principalmente no poder judiciário, a gente vê que é comum —
com o tempo vai acumular renda e isso vai virar rendimento de capital",
acrescenta o sociólogo.
"O público leigo às vezes acha que todo funcionário público,
ou pelo menos todo funcionário público federal, está no 1%. Tem um exagero
grande aí, mas também não é de todo falso, certamente tem muita gente da elite
do funcionalismo e, vamos ser sinceros, da elite política [no 1%]."
Como estudioso da desigualdade, encontrada no Brasil em nível
"extremo", o pesquisador acredita que esse possa ser um bom parâmetro
para se definir riqueza no Brasil.
"Onde está a concentração de renda que torna o Brasil muitodiferente
da Europa? Bom, está no topo. É ali o 1%, os 5% mais ricos, talvez em algum
grau você possa falar que são os 10% mais ricos, alguma coisa assim. Mas a
concentração grande mesmo é bem no topo, então fazer esse recorte — falar em 1%
da população, 5% da população, acho que não tem como dizer que não é rico, né?
Isso exigiria umas cambalhotas retóricas que não são muito fáceis", avalia
Souza.
Por que isso importa?
Chamar atenção para o topo, na avaliação do sociólogo, é
importante especialmente por dois motivos.
Primeiro, por uma questão política. Quando uma fração pequena da
população concentra um percentual grande dos recursos, ela tende a "usar
todos os meios possíveis para converter o poder econômico em influência
política e, assim, conseguir enriquecer ainda mais".
"Isso não é uma questão necessariamente de caráter
individual, mas uma dinâmica social que a gente vê em diversos países — e
atrapalha o funcionamento da democracia."
Segundo, ele acrescenta, porque entender quem tem mais abre
caminho para o desenvolvimento de políticas voltadas para melhorar o bem-estar
dos mais pobres, como o financiamento de serviços públicos de transporte e
saúde para atender essa população.
"O jeito mais eficiente de fazer isso é pegar de quem tem
mais, de onde o dinheiro tá em tese sobrando — pelo menos em algum grau,
ninguém está falando em confisco, mas do padrão de Estados Unidos e Europa —,
tributar onde tem mais dinheiro concentrado e gastar onde tem mais
necessidades", avalia.
"E para isso a gente precisa conhecer os mais ricos — e aí
não adianta você também ter uma definição de riqueza que seja só o Neymar,
né?" (BBC)
Nenhum comentário:
Postar um comentário