domingo, 12 de dezembro de 2021

Quem serão os donos da água no Nordeste? (Por Gilberto Menezes Côrtes – Jornal do Brasil – 12.12.21)

Nem bem 2021 terminou - e o Congresso decide esta semana algumas questões cruciais para o ano que vem, como a votação, na Câmara, dos trechos da PEC dos Precatórios alterados no Senado, o que abriria a possibilidade de o Orçamento Geral da União de 2022, ser votado pelo Congresso antes do recesso parlamentar, marcado para 16 de dezembro, garantindo o Auxílio Emergencial de R$ 400 mensais a pelo menos 17 milhões de famílias (ainda que outras 20 milhões tenha ficado de fora, na fila) - a campanha eleitoral de 2022 ganhou as ruas (de Buenos Aires) e as vielas das redes sociais, onde duela-se abertamente. É só o aperitivo da carnificina futura.

Numa fuga à realidade, que é a nova variante da Covid-19, a ômicron, batendo às portas fechadas preventivamente por todos os países responsáveis, para resguardo de suas populações, em meio à inflação de dois dígitos, o aumento dos juros que desacelera a economia e complica a situação dramática do emprego e da miséria, o Brasil do presidente Jair Bolsonaro, “eleito” como “personalidade do ano” para a capa da revista “Time”, num arremedo de pleito dos sonhos daqueles que condenam os “riscos” da urna eletrônica, mas comemoram uma votação teleguiada e turbinada por robôs, tem o desplante de retardar em mais alguns dias a imposição de uma débil restrição a viajantes não vacinados (sujeitos a uma frágil quarentena de cinco dias).

Depois de um estranho ataque de “hackers” ao Conectsus, o sistema do Ministério da Saúde, que controlaria o ingresso dos turistas estrangeiros (e nacionais) ao território brasileiro, Bolsonaro ganhou mais um “round” no seu UFC do negacionismo à Covid-19, com foco principal na tentativa de desmoralizar a vacinação. O país não só vai perder mais uma semana para erguer barreiras e triagens à nova cepa da Covid-19, como até os brasileiros já plenamente vacinados perderam, temporariamente, o acesso à certificação eletrônica de sua imunização. Os inimigos da ciência conseguiram mais do que os inimigos da democracia nos ataques cibernéticos à principal expressão da vontade popular: o direito à livre manifestação do voto em urnas eletrônicas blindadas (ficaram apenas num ataque aos sistemas do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que não está conectado às urnas de cada seção eleitoral. O vírus agradece por mais essa ajuda de Bolsonaro. [em boa hora, depois que a coluna foi escrita, o ministro Luis Roberto Barroso, do STF, restabeleceu o bom senso e a exigência de comprovante de vacinação para a entrada de estrangeiros no Brasil].

Quem merece afinal a capa da “Time”, que será revelada amanhã, 2ª feira: Jair Bolsonaro; Trump (2º mais votado pela internet); os profissionais da saúde que se desdobram em todo o mundo para tentar conter a pandemia que ameaça a humanidade; ou o vírus, que ganhou no Brasil mais uma semana do “sagrado direito da liberdade de ir e vir”? Pela lógica do ministro da Saúde - o cardiologista paraibano Marcelo Queiroga, que faz tudo o que “seu mestre mandar”, de olho na candidatura a senador pelo PL, partido do “capo di tutti il capo”, Waldemar Costa Neto, ao qual o presidente se filiou - que repetiu a fala de Bolsonaro: “a liberdade é mais importante que a vida”. O livre arbítrio dá ao cidadão o “direito” de se suicidar. É sua escolha. Mas, numa pandemia, quando o preconceito, a teimosia e a ignorância viram aliados de um vírus que ameaça os familiares e amigos, a vizinhança, o bairro, uma cidade, nações e a própria humanidade, o direito coletivo e o bom senso devem se impor e serem acatados.

A terra e a água no Nordeste

Espero que a campanha eleitoral do próximo ano entre, de fato, em questões cruciais para a sociedade brasileira. Como a desigualdade social, suas causas e meios de encurtar a distância, que a pandemia voltou a alargar, entre os mais ricos (há décadas, os 1% mais ricos têm mais renda que os 10% mais pobres; com a pandemia, a escala passou dos 12% mais pobres). Há várias razões para isso. A história da colonização do Brasil, com uma casta que teve acesso à terra, depois da recusa dos índios de atuar como servis em sua própria terra, recorrer ao infame tráfico de escravos africanos, explica muito dessa concentração de renda. Pesquisa da Fapesp apontava no começo do século passado quase o mesmo corte da concentração de renda que há hoje no Brasil. Poucos anos haviam se passado da Abolição da Escravatura, em 13 de maio de 1988. Como não foi dado aos negros o acesso à terra (como antes já ganharam os colonos italianos, alemães, espanhóis e suíços, que vieram para cultivar o café no planalto de São Paulo, nas ricas terras roxas, em regime de parceria de meia ou terça com os senhores da terra, este contingente, apoiado na organização social da família, teve acesso ao meio de produção da época e pode evoluir na escala social brasileira) e muito menos à educação, embora sejam a maioria (53,4% dos 214 milhões de brasileiros até o Natal), os pretos e pardos estão concentrados nas faixas de menor renda na sociedade brasileira.

Numa sociedade que se urbanizou celeremente, e de forma descontrolada, na 2ª metade dos anos 70, quando a geada do café, em São Paulo e Paraná (sobre cujas ricas terras roxas também avançou o regime do colonato desde o começo do século 20) desmontou o sistema de parcerias à base da meia (50%/50%) ou terça (30%) nas quais as famílias dos colonos que cuidavam do café plantavam nas suas “ruas” (o intervalo entre as fileiras de café), milho, feijão e mandioca, com as quais ainda engordam porcos e galinhas, dividiam os ganhos com os donos das terras. Os deserdados da agricultura na enxada demoraram um tempo para se ajustar. Muitos foram engordar o exército de excluídos nas periferias das grandes cidades. O outro lado da moeda foi que a carestia dos alimentos e o abastecimento regular de gêneros alimentícios demorou uma década para sanar - os jornais tiveram de acompanhar, por alguns anos, a colheita de feijão em Irecê (BA), quando a produção minguou no Paraná e em São Paulo) - até a progressiva mecanização das lavouras nas terras do Sul e do Sudeste substituir a mão-de-obra que trocou o campo pela cidade. Os donos da terra se livraram dos encargos sociais (no Sul, Sudeste, Norte e Nordeste - o Centro-Oeste estava sendo conquistado como nova fronteira agrícola) inscrevendo, a partir de 1976, as famílias no Funrural. Mário Henrique Simonsen, que era ministro da Fazenda, foi contra a ideia de pendurar mais uma conta na “bolsa da viúva”. Temia estouro nas contas da Previdência com o pagamento de meio salário mínimo a quem nunca contribuiu (incluindo os patrões). O argumento é de que seriam “pouco mais de 400 mil pessoas”. Em um ano, fazendeiros de todo o país inscreveram 4,4 milhões no INSS. As contas pioraram quando a Constituinte decidiu, em 1988, que “ninguém poderia receber menos que um salário de aposentadoria”.

Já que a questão agrária perdeu a importância relativa no país com mais de 80% da população vivendo nas cidades, era o caso de uma profunda discussão sobre o regime tributário no Brasil. Perverso e extremamente regressivo - os impostos são concentrados nos bens de consumo e serviços - os pobres pagam, proporcionalmente mais impostos em relação a seus rendimentos do que os ricos. A pirâmide social concentrada no Brasil tem muito a ver com a escravidão, a falta do acesso à terra (o meio de produção nos séculos 19 e até mais da metade do século 20), à educação, e com a pirâmide tributária invertida: no Brasil, é o inverso da Europa, por exemplo; lá, com sistemas tributários mais transparentes, mais da metade dos impostos é proveniente dos tributos sobre a renda (incluindo dividendos) e o patrimônio; aqui, mais de 70% dos impostos vem do consumo (combustíveis, energia, telecomunicações, bens de consumo e alimentos, além de serviços). O Congresso, nas mãos do Centrão, aliado do governo Bolsonaro, em vez de aprofundar a progressividade dos impostos sobre os mais ricos para o Estado aplicar os recursos serem em políticas sociais permanentes de transferência de renda e promoção social, preferiu passar ao largo e usar paliativos como o Auxílio Emergencial e o Auxílio Brasil (que substitui o Bolsa Família), bem mais magro que o AE.

Mas o calendário de 2022 reserva um campo de batalha particular: a conquista dos corações e mentes dos nove estados do Nordeste, que concentram 27 de população e dos eleitores brasileiros. Lá, sem dúvida, a candidatura do ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva, nascido em Caruaru (PE) e que migrou jovem com a mãe e irmãos para São Paulo, onde trabalhou como metalúrgica e iniciou a carreira de sindicalista em São Bernardo do Campo, até a fundação do PT e a eleição, afinal, em 2022, na 4ª tentativa para presidente (1989, 1994 e 1998). Jair Bolsonaro conta com o redirecionamento dos benefícios do Auxílio Brasil para o Norte e Nordeste e com a chegada ao sertão semiárido do Nordeste das águas da transposição do São Francisco em seu governo. A transposição do São Francisco foi lançada em 2007 pelo presidente Lula, já depois da reeleição. Sucessivamente, foi usada nos palanques eleitorais seguintes para eleger, em 2010m sua sucessora, Dilma Roussef, que era chefe da Casa Civil. Eleita, Dilma tocou as obras prometendo inaugurar em seu 2º governo, a partir de 2015. Afastada por “Impeachment”, em maio de 2016, coube ao vice, Michel Temer, continuar as obras. Até o momento, em cinco administrações de quatro governantes, foram aplicados R$ 12,5 bilhões de recursos retirados do povo brasileiro sob a forma de impostos (o dinheiro do governo é sempre “o seu, o meu, o nosso dinheiro”). Caberá a Jair Bolsonaro (se as contas não estourarem - a transposição tinha custo inicial R$ 4,7 bilhões) aplicar cerca de R$ 2,5 bilhões, ou 20% da obra e abrir as torneiras.

É uma redenção? É. Mas será pouco se não for garantido o acesso máximo da água não só aos agricultores do semiárido, mas também aos importantes polos industriais nos estados mais populosos da região. São eles, o polo de Camaçari (BA), próximo a Salvador, capital do estado com a maior população - 15 milhões e mais de 10,8 milhões de eleitores; o polo de Suape, próximo a Recife (PE); e o polo de Pecém (CE). A transformação da população do Nordeste, concentrada nas grandes cidades, tem de passar pelo avanço da industrialização e das atividades de serviço. É a melhor forma da região aproveitar o trunfo da autossuficiência energética, com o avanço da energia eólica e solar que tornou a região potencial exportadora de energia. A racionalidade pede que a energia gere empregos e renda na própria região, mas o governo Bolsonaro pouco fez para impedir que a saída da Ford do Brasil fechasse sua moderna fábrica em Camaçari e outra unidade no Ceará. Nos anos 50 e começo dos anos 60, quando a expansão da adutora do Guandu não tinha ainda resolvido o problema do abastecimento de água no município do Rio de Janeiro, que depois da transferência da capital para Brasília, em 21 de abril de 1960, virou o Estado da Guanabara, fez carreira política pelo PTB o vereador e depois deputado Amando da Fonseca. Seu cartão de visita era a “inauguração de uma bica d’água” nas favelas mais populosas de então. Ele era aclamado na Rocinha, na antiga favela da Catacumba (removida no fim dos anos 60, no governo Negrão de Lima), Mangueira e Salgueiro, entre outros redutos. Quando a Cedag (que virou Cedae após a fusão, em 1975) ampliou a oferta de água, “a fonte secou” para o político populista.

Espera-se que a simples chegada da água aos rincões do Nordeste não revitalize os “velhos coronéis” da terra em “senhores da água”. Para que a água mude estruturalmente a região e traga novas perspectivas de vida e segurança alimentar e de renda mais permanente, e tem de vir acompanhada de uma política para melhor distribuição da estrutura fundiária. Em outras palavras, deveria ter sido precedida da desapropriação de terras em terminadas regiões para a implantação, ao largo dos novos canais de irrigação de eixos agrícolas aglutinando cooperativas de agricultores. O sucesso de algumas cidades, às margens do São Francisco, em Pernambuco, Bahia e Minas Gerais, claro, na produção agrícola merece ser ampliado de modo a oferecer a verdadeira redenção a milhares de irmãos nordestinos. O sonho de assistência nacional à região, estudado por Pedro II, em 1847, para levar água do São Francisco, a partir de bombeamento de Cabrobó (PE), até Crato, no semiárido do Ceará, pede ousadia e rompimento com os arranjos seculares que atrasam a região. Lula tem ideias próprias para o NE. Bolsonaro podia usar os exemplos dos "kibutz" de Israel, que tanto admira, para, com a orientação técnica da Embrapa aos agricultores cooperados, fazer com que o dinheiro da pátria de todos tenha impacto na redistribuição de oportunidades e renda no Brasil. O mais perverso seria o oportunismo de não contrariar os caciques políticos locais e o país perder uma enorme oportunidade de virar a página.

(Fonte: JB)

Nenhum comentário:

Postar um comentário