Antes da forte queda no número de inscritos que marcou o Enem (Exame Nacional do
Entre 2010 e 2016, a proporção de pretos e pardos — grupos que juntos formam a população negra brasileira — entre os candidatos saltou de 51% para 60%, enquanto a parcela de brancos diminuiu de 43% para 35%.
Intrigado
com a mudança, num período marcado pela adoção das cotas sociais e raciais nas
universidades públicas, mas também pelo avanço do orgulho de ser negro no país,
o pesquisador Adriano Senkevics decidiu investigar os motivos por trás dessa
tendência.
Seria o
forte aumento no número de candidatos — que saltou de 4,6 milhões para 8,6
milhões em apenas seis anos — que estaria ampliando o acesso de grupos antes
excluídos?
Ou,
diante da alta concorrência, candidatos negros teriam de fazer a prova mais
vezes até serem aprovados?
E qual
o peso nessa mudança de pessoas que antes se consideravam brancas mas, ao
tentar a prova mais de uma vez, passavam a se autodefinir como pardas?
Ou
então, que passavam de pardas a pretas, num processo de
"escurecimento" da população também identificado em outras pesquisas
demográficas, como a Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) e o
Censo do IBGE, que nenhuma relação têm com o acesso ao ensino superior.
Doutor
em educação pela USP (Universidade de São Paulo) e pesquisador do Inep, órgão responsável
pela realização do Enem, Senkevics descobriu que cada um desses três fatores
contribuíram para a mudança, ainda que com pesos distintos.
Em artigo publicado neste mês pela Dados Revista de
Ciências Sociais, periódico científico mantido pelo Instituto de
Estudos Sociais e Políticos da UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro),
o pesquisador se debruçou sobre o tema.
A BBC
News Brasil conversou com ele para entender melhor os principais resultados
desse estudo, que é o primeiro a investigar o fenômeno da "reclassificação
racial" — isto é, das pessoas que mudam sua autodefinição de raça ou cor —
no Enem.
Uma
mudança cultural no Brasil
Senkevics
conta que muita gente pensa que ele decidiu olhar para o aumento da proporção
de negros no Enem e o fenômeno da reclassificação racial dos candidatos
pensando em captar fraudes nas cotas, mas ele deixa bem claro que essa não é a
intenção do estudo.
"O
que me motivou foi uma curiosidade científica com relação a esse movimento de
as pessoas se classificarem cada vez mais como negras", diz o pesquisador.
"Trata-se
de um fenômeno cultural brasileiro, que é a assunção cada vez maior da
identidade e do pertencimento negro, num país historicamente racista e cujo
racismo foi apoiado num processo de 'embraquecimento' histórico, de negação de
identidades raciais negras e indígenas e desvalorização da história e cultura
dessas parcelas da população", acrescenta.
O
estudo é dividido em três partes.
Na
primeira delas, o pesquisador do Inep olha para os novos inscritos, ou seja, as
pessoas que estão prestando o Enem pela primeira vez. Nesse grupo, o percentual
de negros passou de 51,5% para 57% nos seis anos analisados.
Para
Senkevics, a mudança no perfil racial aqui reflete alterações no cenário
educacional brasileiro. A primeira dessas mudanças é o aumento na proporção de
jovens que concluem o ensino médio, com redução da repetência e da evasão
escolar nessa fase do ensino.
Como
resultado desse processo, mais jovens de baixa renda, negros e estudantes
vindos de famílias menos privilegiadas se tornaram aptos a tentar uma vaga no
ensino superior.
"O
perfil de quem termina o ensino médio foi se tornando cada vez mais heterogêneo
e representativo da população", observa o especialista em educação.
"O jovem de classe alta, de família mais escolarizada, já fazia o Enem. A
novidade é que vai entrando um perfil novo, que vai aumentando sua presença
cada vez mais nesse período."
Além
disso, políticas de ampliação do acesso às universidades geraram um incentivo
para estudantes que antes talvez não acreditassem na possibilidade de ingressar
numa faculdade passarem a ter mais esperança com relação ao processo seletivo.
Entre
essas políticas, o pesquisador cita o programa de bolsas de estudo Prouni, o
programa de financiamento estudantil Fies, o sistema único de oferta de vagas
Sisu e a lei de cotas.
Por
fim, Senkevics destaca que esses novos inscritos estão sujeitos às mesmas
mudanças culturais e demográficas identificadas na população brasileira em
geral e, portanto, mais jovens talvez estejam se percebendo como negros mesmo
antes de se inscreverem no Enem, contribuindo para a mudança no perfil racial
dos novos inscritos.
Negros
são maioria entre inscritos reincidentes
Na
segunda parte do estudo, o pesquisador olha para os estudantes que prestam o
Enem mais de uma vez. Em 2011, os inscritos reincidentes eram 36% do total,
chegando a 65% em 2016.
Entre
os estudantes que prestam o Enem uma ou duas vezes, há pouca diferença no
perfil racial, com brancos superando pardos em cerca de 1 ponto percentual.
Mas, a
partir da terceira tentativa, a parcela de pardos passa a superar a de brancos,
chegando a 48% de pardos para 30% de brancos entre aqueles que se inscreveram
sete vezes, uma diferença significativa, de 18 pontos percentuais.
"A
pessoa pode fazer o Enem quantas vezes ela quiser; como o ensino superior é
muito disputado e o processo seletivo é muito afunilado, uma pequena parte dos
inscritos vai ter sucesso", observa Senkevics.
"Candidatos
menos preparados, com origens menos privilegiadas, como boa parte da população
negra, podem ser obrigados a fazer o exame mais de uma vez."
O
pesquisador destaca alguns indicadores que mostram as dificuldades dos
candidatos negros no Enem: pretos e pardos têm taxas de abstenção maiores nos
dias de provas (quando a pessoa se inscreve mas não consegue comparecer no dia
do exame) e médias de desempenho menores, em relação aos brancos.
Essas
dificuldades podem levar um candidato a se inscrever novamente na prova. Quando
isso acontece, surge a possibilidade de reclassificação racial, que ocupa a
terceira parte do estudo.
Os
candidatos que 'mudam de raça'
Na
pesquisa, Senkevics buscou analisar como se dão esses movimentos de
reclassificação entre brancos, pardos e pretos.
E o que
ele encontra é que, apesar de as alterações acontecerem em todas as direções, o
saldo líquido das mudanças resulta em uma redução de 5% no número de brancos,
aumento de 1% no de pardos e ganho de 13,7% na quantidade de pretos.
O
pesquisador observa que vários dados sugerem que essa reclassificação tem pouca
relação com possíveis tentativas de fraude.
Uma
evidência disso, segundo Senkevics, é o fato de que mudanças semelhantes
acontecem em diversas outras bases de dados que não têm qualquer incentivo para
que as pessoas "se escureçam", como a Pnad, o Censo e a antiga
Pesquisa Mensal de Emprego do IBGE.
Outro
ponto é a reclassificação de pardos para pretos, uma mudança que não dá
vantagem nenhuma na política de cotas, que é voltada para negros de maneira
geral.
"A
pessoa que é parda já é beneficiária da política afirmativa racial",
observa Senkevics.
"Então
o que eu entendo que explica essa grande migração de pardos para pretos é que
não há outra motivação que não a questão cultural, porque a categoria 'preto' é
muito mais alvo do processo de ressignificação do que 'pardo'", acrescenta
o pesquisador.
"O
pardo não é sequer uma categoria nativa, não é usada pelas pessoas nos seus
processos de autoidentificação, é uma categoria mais demográfica do que
exatamente sociológica", observa o analista.
"Enquanto
isso, toda a questão da valorização da negritude vem muito em cima da ideia de
ser preto. Então é uma categoria que tem uma militância maior, em torno da qual
a conscientização racial se construiu e que marca mais uma diferença com
relação ao branco."
O
especialista destaca ainda estudos do pesquisador David De Micheli que mostram
que a autoidentificação como preto é maior entre os mais escolarizados, o que
estaria ligado à maior exposição dessa parcela da população ao debate
antirracista, ao resgate da história afro-brasileira e de seus elementos
culturais e à militância negra por direitos.
Queda
no percentual de negros no Enem de 2021
Apesar
do processo social de empoderamento da população negra em curso, o Enem mudou
bastante desde o período estudado por Senkevics.
Desde
2016, o número de inscritos na prova tem caído ano após ano, recuando de 8,6
milhões naquele ano, para apenas 3,4 milhões em 2021.
A
proporção de pessoas pretas, pardas e indígenas também diminuiu no ano passado,
de 62,3% em 2020, para 55,7% em 2021.
Segundo
analistas, diversos fatores explicam a redução no interesse pelo Enem. Um deles
é que, desde 2017, a prova deixou de servir como certificação para o Ensino
Médio.
A
partir daquele ano, candidatos que não se formaram na idade usual e buscavam o
diploma passaram a prestar o Encceja (Exame Nacional para Certificação de
Competências de Jovens e Adultos), que havia deixado de ser aplicado em 2009.
Os
especialistas também apontam uma piora nas perspectivas de acesso ao ensino
superior, com redução nas bolsas oferecidas pelo Prouni, queda acentuada nos
contratos de financiamento firmados através do Fies e estagnação no processo de
ampliação das vagas em universidades públicas.
A esse
cenário, somou-se a pandemia, que afetou de forma muito desigual ricos e
pobres, reduzindo a taxa de conclusão do ensino médio e fazendo com que muitos
estudantes negros e de baixa renda não se sentissem preparados para tentar uma
vaga no ensino superior.
Será
preciso acompanhar nos próximos anos se o Brasil vai retomar sua trajetória de
gradual inclusão de negros e filhos de famílias pobres nas universidades ou se
serão duradouros os impactos causados pela pandemia e pelo desmonte das
políticas públicas de educação apontado por especialistas. (BBC)
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