Silveira
dirigia a seção de terapia ocupacional da instituição desde 1946 — cargo que
ela conservaria até 1974. Sua bandeira, desde o início, primava pelo combate a
técnicas agressivas no tratamento de pessoas com doenças mentais, como o uso
inadequado de eletroconvulsoterapia (conhecida popularmente como eletrochoque),
camisas de força, lobotomia, insulinoterapia e confinamento.
Em
lugar desses métodos, então praxe na época, ela preconizava um tratamento
baseado na arte. A médica reinventou o próprio departamento de terapia
ocupacional, antes um espaço que servia para delegar aos pacientes tarefas de
limpeza e manutenção da instituição. Sob o comando dela, foram criados ateliês
de pintura e modelagem.
"A
Nise foi uma pessoa extremamente importante na psiquiatria. Foi aluna do
[psiquiatra suíço] Carl Jung, teve contato com ele e foi pioneira daquilo que a
gente poderia chamar hoje de luta antimanicomial, na época não existia esse
termo", avalia à BBC News Brasil o psicólogo e psicoterapeuta Ari Rehfeld,
professor na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). "Ela
fez um trabalho maravilhoso e pioneiro na terapia ocupacional e sua influência
está hoje tanto na psiquiatria como na psicologia."
"Seu
trabalho mudou os tratamentos psiquiátricos, substituindo métodos pouco
eficientes e extremamente agressivos para os pacientes com transtornos
mentais", prossegue Rehfeld.
O
psiquiatra Paulo Amarante, presidente honorário da Associação Brasileira de
Saúde Mental e pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), ressalta que
"Nise foi uma psiquiatra que questionou os métodos invasivos, violentos e
ineficazes da psiquiatria". "Ao se recusar aplicar a
eletroconvulsoterapia [ECT], abriu um precedente singular na psiquiatria ortodoxa",
diz ele, à BBC News Brasil.
Tratamento pela arte
A
psiquiatra acreditava que a arte servia para que os doentes conseguissem
ressignificar suas conexões com a realidade. Ela defendia que isso era possível
por meio de suas expressões criativas e simbólicas.
Ferreira
Gullar nunca deixou de acompanhar, com fascínio, a trajetória da médica, que
acabou se convertendo em amiga. Em 1996 ele publicou, em livro, uma longa
conversa com ela. A obra se chama Nise da Silveira - Uma Psiquiatra
Rebelde. O poeta também dedicou ao tema algumas de suas colunas no jornal
Folha de S. Paulo.
Em
outubro de 2006, por exemplo, ele contou a história de um "paciente
magrinho chamado Emydgio" que, no ateliê de pintura do manicômio,
destacou-se pela produção. "Um dia, próximo ao Natal, Nise perguntou a
Emygdio que presente gostaria de ganhar e ele respondeu: 'Um guarda-chuva'. Ela
concluiu que ele desejava ir embora", narrou Gullar.
A
psiquiatra, que respeitava as liberdades dos seus pacientes, ajudou a organizar
uma exposição para venda dos quadros do então artista. Ele se mudou para a casa
de parentes. "Muitos anos se passaram até que, certa tarde, Emygdio
reapareceu, no Centro Psiquiátrico Nacional, de maleta e guarda-chuva, e
informou a dra. Nise que queria reinternar-se para voltar a pintar",
prossegue o texto. "E ali ficou, pintando, até completar 80 anos, quando,
por lei, teve que deixar o hospital. A dra. Nise conseguiu interná-lo num asilo
de velhos, onde concluiu sua existência vivida fora da História. É certo,
porém, que graças a ele, há hoje no universo, além de planetas e galáxias,
alguns quadros e guaches de espantosa beleza."
"Ela
foi uma das pioneiras na utilização da arte como terapia e estratégia de
emancipação da pessoa em sofrimento psíquico e foi fundamental na criação de um
movimento crítico no campo da saúde mental", complementa Amarante.
O
legado de Nise da Silveira, a médica que teve a homenagem nacional vetada pelo
presidente Jair Bolsonaro, pode ser dividido em duas partes: a importância para
o atendimento psiquiátrico; e a importância para as artes.
Militância comunista
Nascida
em Maceió, Silveira tinha um pai professor de matemática e jornalista e uma mãe
pianista. Estudou em um colégio de freiras exclusivo para meninas e, nos anos
1920, graduou-se na Faculdade de Medicina da Bahia. Era a única mulher em uma
turma de mais de 150 homens.
Já
casada com o médico sanitarista Mário Magalhães da Silveira (1905-1986),
mudou-se para o Rio em 1927.
Nos
anos 1930 começou a estudar psiquiatria. Depois de especializar-se em saúde
mental, passou em concurso público e começou a trabalhar no Serviço de
Assistência a Psicopatas e Profilaxia Mental do Hospital da Praia Vermelha.
Mas
esse começo de carreira na área sofreu uma interrupção. Porque foi na mesma
época que ela passou a se interessar por arte e literatura e, simultaneamente,
engajar-se politicamente. Tornou-se militante do Partido Comunista Brasileiro
e, denunciada por uma enfermeira, acabou presa por "posse de livros
marxistas". Foram 18 meses no presídio Frei Caneca, onde conviveu com o
escritor Graciliano Ramos (1892-1953) — também detido ali — e isso acabou
fazendo dela uma personagem do livro Memórias do Cárcere.
"A
figura de Nise entrara-me fundo no espírito. Apesar de havermos ficado momentos
difíceis um diante do outro, confusos, aturdidos, em vão buscando uma palavra,
aquela fisionomia doce e triste, a revelar inteligência e bondade,
impressionava-me", diz um dos trechos do livro. "Não me arriscaria a
dirigir-me a ela. Se isto acontecesse, emudeceríamos outra vez, permaneceríamos
no constrangimento horrível, a catar ideias incompletas e espalhadas.
Contentava-me perceber-lhe à distância a palidez, o sossego fatigado, a viveza
dos enormes bugalhos."
No
livro, há 41 menções ao nome dela.
Pintura e modelagem
O
retorno ao serviço público só se daria nos anos 1940. Em 1944, ela assumiu a
coordenação dos trabalhos de terapia ocupacional do Centro Psiquiátrico
Nacional Pedro II. E sua atividade acabou revolucionando a maneira como esses
pacientes são tratados no mundo.
"O
exercício de múltiplas atividades ocupacionais revelava, por inumeráveis
indícios, que o mundo interno do psicótico encerra insuspeitadas riquezas e as
conserva mesmo depois de longos anos de doença, contrariando conceitos
estabelecidos", escreveu ela, sobre esse trabalho, no livro 'Imagens do
Inconsciente'. "E, dentre as diversas atividades praticadas na nossa
terapêutica ocupacional, aquelas que permitiam menos difícil acesso aos
enigmáticos fenômenos internos eram desenho, pintura, modelagem, feitos
livremente."
Rehfeld
explica que era um trabalho "muito ligado à costura e à pintura", que
resultava também em exposições. "Não foi coisa de um, dois, três anos. Foi
uma vida inteira dedicada a esse tipo de trabalho que se mostrou efetivamente
muito eficiente como expressão no tratamento de saúde mental", explica o
professor.
Sua
atuação terapêutica não ficou circunscrita ao Centro Psiquiátrico Nacional.
Em
1956, ela fundou a Casa das Palmeiras, uma clínica destinada a reabilitar
antigos pacientes de instituições psiquiátricas — muitas vezes com sequelas
devido aos maus tratos recebidos. Sua ideia era reabilitá-los para que eles
fizessem uma transição entre o período de internação e a reintegração social.
Nise
da Silveira também foi uma pioneira no uso de animais para tratamento de
doentes mentais, encarando os bichos como fundamentais para o reforço das
relações emocionais e também para fortalecer senso de responsabilidade.
Sobre
isso, ela escreveu o livro 'Gatos: A Emoção de Lidar'.
"Ela
possuía uma série de animais e os deixava sempre em contato com os pacientes,
que podiam se relacionar e cuidar deles", completa Rehfeld.
A
psiquiatra foi uma das pioneiras na difusão da psicologia junguiana no Brasil —
ela chegou a estudar no instituto fundado pelo psiquiatra suíço Carl Gustav
Jung (1875-1961) em dois períodos. A partir dos anos 1950, correspondeu-se
intensamente com Jung e foi à convite dele que realizou uma mostra com as obras
feitas por seus pacientes em um congresso internacional realizado em Zurique,
na Suíça, em 1957.
Até
mesmo os edifícios dos hospitais psiquiátricos foram alvo de preocupações da
médica. "A ausência de interesse da psiquiatria pelos problemas do espaço
revela-se na arquitetura hospitalar. É uma arquitetura fria, rígida",
argumentou, também no livro 'Imagens do Inconsciente'. "Dá suporte e
reforço ao medo, ao sentimento de estar isolado de tudo."
Importância para a arte
Seu
legado artístico é um efeito colateral da medicina psiquiátrica por ela
aplicada. Em 1952, Nise da Silveira fundou no Rio de Janeiro o Museu de Imagens
do Inconsciente, uma instituição dedicada a estudos, pesquisa e preservação dos
trabalhos produzidos nos ateliês frequentados por seus pacientes.
A
instituição abriga hoje um acervo de cerca de 350 mil obras produzidas por
artistas-pacientes. Entre os principais nomes estão Emygdio de Barros (o
Emygdio citado por Ferreira Gullar), Octávio Inácio, Adelina Gomes e Carlos
Pertuis.
Em seu
livro Imagens do Inconsciente, a própria Silveira analisa
detidamente 272 ilustrações produzidas por seus pacientes.
Homenagens
Apesar
de ter tido a inscrição de seu nome no livro dos Heróis e Heroínas da Pátria
vetada pelo presidente Jair Bolsonaro, não faltam reconhecimentos nacionais e
internacionais à carreira de Nise da Silveira.
O
centro psiquiátrico onde ela trabalhou, por exemplo, hoje é chamado de
Instituto Municipal de Assistência à Saúde Nise da Silveira. Há instituições
inspiradas no trabalho dela — algumas nomeadas em homenagem a ela — em
Portugal, na França e na Itália, além de cidades brasileiras como Juiz de Fora,
Recife, Porto Alegre e Salvador, entre outros.
Em
1987 ela foi reconhecida com o grau de oficial da Ordem de Rio Branco.
Em
1992, a Associação Brasileira de Críticos de Arte concedeu a ela o título de
personalidade do ano. Ela também recebeu a Medalha Chico Mendes do grupo
Tortura Nunca Mais e a Ordem Nacional do Mérito Educativo, do Ministério da
Educação, em 1993.
Sobre
o veto de Bolsonaro, Rehfeld afirma ser "lamentável" que sejam
"detratadas com muita facilidade personagens muito importantes".
"A gente perde um pouco da nossa história. O trabalho de Nise é
reconhecido mundialmente, aí uma ignorância e um partidarismo pouco defensável,
porque ela militou na esquerda, fazem tirar dela a possibilidade de receber um
prêmio", pontua.
"É
um absurdo. Mostra uma tendência de termos muito pouco apreço à nossa história
e não cuidarmos de grandes exemplos que temos e que poderiam continuar a
influenciar o país", conclui o professor. (BBC)
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