Trata-se de uma emenda, entre mais de mil, incluída no projeto de Orçamento americano, que, se aprovada, prevê a suspensão de parcerias e corte de recursos americanos destinados às Forças Armadas brasileiras, caso elas abandonem a neutralidade política nos próximos meses.
A motivação, segundo apurou a BBC News
Brasil, teria sido "sinais preocupantes" observados pelos
parlamentares americanos de que os militares brasileiros estariam dispostos a
participar do processo político-eleitoral, o que, argumentam os deputados
americanos, seria um fator de instabilidade para a América Latina e para os
interesses de segurança nacional dos EUA.
Bancada por seis deputados da ala mais
à esquerda do partido Democrata, é possível que a emenda nem chegue a ser
apreciada no plenário. Se for votada, não o será antes de dezembro, dois meses
depois da eleição brasileira. E sua chance de aprovação é hoje minoritária.
Ainda assim, a manobra foi vista como
uma mensagem importante. Ela seria menos uma peça legislativa e mais um recado
de que os desdobramentos eleitorais no Brasil seguem sendo analisados de perto
pelos americanos.
A administração Biden e boa parte do partido democrata, no entanto, tenta se equilibrar na linha tênue entre demonstrar atenção a um pleito que tem sido descrito por eles como "contencioso" e deixar claro que não estão dispostos a intervir de nenhuma maneira no processo eleitoral, que deve "ser feito por brasileiros, para os brasileiros" e seguir seu curso programado.
Recado da CIA
A proposta de emenda se junta a uma
lista de ao menos outras quatro manifestações públicas feitas nos últimos dois
meses que indicam uma atenção próxima de autoridades americanas ao processo
eleitoral brasileiro.
Primeiro, houve a revelação, pela
Reuters, de uma conversa entre o chefe da CIA (agência de inteligência dos
EUA), William Burns, e auxiliares de Jair Bolsonaro (PL) em que Burns
recomendava que o mandatário brasileiro deixasse de questionar as eleições
brasileiras. A conversa, a portas fechadas, teria acontecido em outubro de
2021.
Bolsonaro e seus ministros negaram que
ela tenha acontecido e disseram que seria "extremamente deselegante"
que o chefe da CIA viesse dar "recado" no Brasil. A própria CIA não
comentou o assunto.
EUA querem eleições
livres e justas no Brasil
Uma semana depois, em entrevista à
BBC News Brasil a subsecretária de Estado dos EUA, Victoria
Nuland, afirmou que "o que precisa acontecer são eleições livres e justas,
usando as estruturas institucionais que já serviram bem a vocês (brasileiros)
no passado".
Com isso, ela explicitava a posição dos
americanos contrária a qualquer tipo de intervenção das Forças Armadas no
processo eleitoral, como defende o presidente Bolsonaro.
"Foi a declaração mais forte do
governo americano sobre como se preocupa e avalia a situação", afirma o
brasilianista Brian Winter, editor-chefe da revista Americas Quarterly.
"Líder que
mina a democracia"
Ainda em maio, senadores americanos descreveram Bolsonaro como um "líder que tenta minar a democracia" apontaram "retrocessos democráticos no país", durante a sabatina da apontada por Biden para assumir a embaixada americana no Brasil, Elizabeth Bagley.
"Você está indo para um país onde
o retrocesso democrático é uma preocupação real. Estamos preocupados com o
atual líder do Brasil, que tem tentado minar a essência do processo
eleitoral", afirmou o senador democrata Bob Menendez, de New Jersey, e
presidente da Comissão de Relações Exteriores do Senado.
Em outra intervenção, Menendez citou o
presidente pelo nome: "Bolsonaro tem tentado enfraquecer o processo
eleitoral. Que medidas podemos tomar para apoiar a integridade e o resultado
democrático das eleições?".
Bagley, escolha política de Biden que
falhou em ser chancelada pela Comissão e pode ter sua indicação retirada pelo
governo, criticou diretamente o presidente brasileiro, embora tenha feito
ressalvas sobre a qualidade das instituições do país.
"Bolsonaro tem dito muitas coisas,
mas o Brasil tem sido uma democracia, tem instituições democráticas, Judiciário
e Legislativo independentes, liberdade de expressão. Eles têm todas as
instituições democráticas para realizar eleições livres e justas. Eu sei que
não será um processo fácil, por todos os comentários dele (Bolsonaro), mas, a
despeito disso, temos todas essas instituições e continuaremos expressando
confiança e expectativa de uma eleição justa", disse Bagley.
Maravilhado x Satisfeito
Em junho, Biden e Bolsonaro se
encontraram pela primeira vez e, nas poucas palavras que disse diante do colega
na presença da imprensa, Biden reafirmou confiança nas instituições eleitorais
brasileiras.
Após o encontro, Bolsonaro se disse
"maravilhado" com o líder americano. Já Biden teria se sentido,
segundo o Departamento de Estado, "satisfeito" — e teria levado a
sério supostas garantias dadas por Bolsonaro de respeito ao processo eleitoral.
Dias mais tarde, a agência de notícias
financeiras Bloomberg noticiou que durante o encontro Bolsonaro teria pedido a
Biden que o ajudasse a vencer Lula nas urnas em outubro.
A BBC News Brasil questionou a Casa
Branca sobre o assunto. Sem negar, nem confirmar o teor da reportagem, a
administração Biden respondeu que "falando amplamente, temos total
confiança no sistema eleitoral do Brasil. Em uma democracia consolidada como a
brasileira, esperamos que os candidatos
respeitem o resultado constitucional do processo
eleitoral".
A palavra em Washington é "preocupação"
"A palavra em voga sobre Brasil em
Washington é preocupação. Não é à toa que temos visto esses vazamentos e
declarações. A administração Biden tem deixado clara as suas preocupações
publicamente", diz à BBC News Brasil Nick Zimmerman, consultor sênior do
Brazil Institute, do Wilson Center, e ex-auxiliar da Casa Branca para política
externa na gestão de Barack Obama (2009-2017).
Zimmerman foi anfitrião do ministro do
Supremo Tribunal Federal (STF) Edson Fachin que, na semana passada, deu uma
palestra em Washington na qual disse que "nós poderemos ter um episódio
ainda mais agravado do 6 de janeiro daqui do Capitólio".
Em transmissão ao vivo nas suas redes
sociais, em 8 de julho, Bolsonaro atacou o sistema eleitoral de urnas
eletrônicas e declarou que os eleitores "sabem como se preparar"
antes das eleições.
"Não preciso dizer o que estou
pensando, mas você sabe o que está em jogo. Você sabe como você deve se
preparar, não para o novo Capitólio, ninguém quer invadir nada, mas sabemos o
que temos que fazer antes das eleições", disse o presidente aos apoiadores
durante a live.
A declaração gerou preocupação entre os
que temem atos antidemocráticos antes ou depois da eleição, embora o presidente
não tenha especificado a que ele se refere quando diz que os eleitores
"sabem o que têm que fazer" antes do pleito.
"O governo Biden está preocupado
com a possibilidade de uma ruptura institucional e vê com clareza a
possibilidade de um 6 de janeiro no Brasil, que poderia acontecer até mesmo
antes das eleições de outubro", afirma Winter. Segundo ele, a
possibilidade de que Bolsonaro tente adiar o pleito de outubro está no radar
das autoridades em Washington.
"Se Bolsonaro se convencer de que
não tem como ganhar nas urnas, vai tentar paralisar o processo", diz
Winter. As atuais pesquisas eleitorais mostram o presidente em segundo lugar,
cerca de dez pontos percentuais atrás do primeiro colocado, o petista Luiz
Inácio Lula da Silva.
Tanto as acusações de falta de
transparência das urnas eletrônicas quanto o cenário de tensão e violência —
maximizados pelo caso do assassinato de um dirigente local do PT em Foz do
Iguaçu (PR) por um apoiador de Bolsonaro no último fim de semana — poderiam ser
levantados como justificativas pelo governo para tentar impedir a realização do
pleito, em menos de três meses. A possibilidade tem sido ventilada também em
Brasília, como afirmou Elio Gaspari, colunista dos jornais Folha de S. Paulo e
de O Globo.
Para o ex-embaixador americano no
Brasil Thomas Shannon, o adiamento das eleições parece um risco bastante
palpável.
"Se isso fosse feito, os EUA e
outros países da região teriam reações bastante dramáticas. Bolsonaro estaria
arriscando a própria relação Brasil-EUA, não só em termos políticos, mas
econômicos também. O Brasil ficaria isolado", antevê Shannon.
Para o diplomata americano, o caso de 6
de janeiro nos EUA foi instrutivo para os brasileiros.
"Brasil e EUA são como dois
espelhos que refletem um ao outro nesse momento, em sua polarização política,
sua sociedade dividida", afirma Shannon.
Ele argumenta que tanto Bolsonaro
quanto seu entorno, especialmente seu filho, o deputado federal Eduardo
Bolsonaro (PL-SP), estudaram detidamente os eventos de 6 de janeiro, quando uma
massa de apoiadores do então presidente Donald Trump, derrotado nas eleições,
invadiu o Congresso para tentar impedir a certificação da vitória de Biden.
Eduardo estava nos EUA na ocasião e havia se encontrado com o núcleo trumpista
um dia antes do episódio.
"Acredito que ele (Eduardo) chegou
à conclusão de que o erro de Trump foi confiar na multidão de apoiadores, sem
conseguir se apoiar nas forças de segurança, sem trazer consigo esse suporte
institucional. Esse é um erro que eles tentam não repetir", diz o
diplomata, que morou por sete anos no Brasil.
Embora admita que militares tenham se
envolvido de modo "inusual" na gestão de Bolsonaro, Shannon duvida
que as Forças Armadas brasileiras, como instituição, estariam dispostas a
patrocinar qualquer possível tentativa de ruptura institucional proposta por
ele. Mas vê nas ações do presidente, de dragar os militares para dentro do
processo de apuração de votos, uma tentativa de provocar esse efeito.
Apoio ou intervenção?
"Quando os deputados propõem a
emenda ao orçamento sobre Forças Armadas do Brasil, estão mandando um claro
recado de que estão atentos a esses movimentos. Esse tipo de mensagem, no
entanto, é uma faca de dois gumes: se por um lado, mostra apoio à democracia
brasileira, por outro, irrita o sentimento nacionalista do Brasil, pode soar
como intromissão", diz Shannon.
A diplomacia americana estuda com
cuidado seus movimentos justamente porque, há pouco mais de dois anos, se viu
no lado oposto do cenário. Em 2020, era Bolsonaro quem fazia comentários sobre
o processo eleitoral americano — indicando possibilidade de fraude, como
defendia Trump, sem provas. À época, tais declarações geraram insatisfação em Washington,
especialmente entre os democratas.
"Os EUA hoje se debatem entre
expressar essa preocupação e ser cautelosos para não forçar demais a mão no
assunto, o que poderia gerar efeitos negativos e levantar questionamentos dado
o histórico de envolvimento dos americanos em episódios trágicos da América
Latina no século 20", diz Zimmerman, em referência às ditaduras militares
na região, que contaram com o apoio dos americanos.
Segundo Zimmerman, a Casa Branca não
quer gerar qualquer espaço para que se diga que os EUA favorecem um dos lados.
Até porque, qualquer um deles pode compor o próximo governo com quem Biden terá
que negociar em pautas que lhes são caras, como o meio ambiente.
Esse seria inclusive, segundo fontes
ouvidas reservadamente pela BBC News Brasil, um dos motivos pelos quais o
ex-presidente Lula acabou não visitando os EUA no primeiro semestre de 2022. A
campanha petista queria tentar repetir em território americano o tour que ele
deu na Europa, com bons resultados políticos. A administração Biden, no
entanto, sinalizou aos emissários do ex-presidente que esse não seria um
momento conveniente para isso.
Para Winter, além de pouca vontade, o
governo Biden tem poucas condições de mensagens mais fortes nesse momento,
porque "têm muitos problemas a administrar e tem perdido poder".
Impopular, o presidente americano deve
sofrer derrota nas eleições de meio de mandato no Congresso. Por mais que possa
se preocupar com o Brasil, por falta de apoio parlamentar, ele sequer
conseguiu, até o momento, enviar ao país um embaixador de sua confiança. O mais
provável é que Washington não tenha nenhum observador diplomático do mais alto
nível em Brasília durante as eleições brasileiras de 2022.
(BBC)
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