E não é preciso entrar na deepweb ou procurar extensivamente. Não se trata de um submundo oculto, mas de um conteúdo acessível, inclusive para adolescentes, em grandes plataformas de compartilhamento de conteúdo da internet, como Twitter e Tiktok.
Para especialistas ouvidos pela reportagem, esses conteúdos abertos na
internet também são formas de cooptar jovens que tenham algum mínimo interesse
no tema. E, a partir disso, esses pré-adolescentes ou adolescentes são
convidados para fóruns específicos – muitos deles fechados para evitar que
sejam rastreados.
A reportagem entrou em contato com o Twitter, mas a rede social, que
relaxou seu controle após ser comprada por Elon Musk, não responde mais a
questionamentos da imprensa. O TikTok afirma que tem mecanismos para receber
denúncias sobre possíveis casos de incitação a ataques e que trabalha
continuamente para remover esse tipo de conteúdo.
O ataque a uma
creche de Blumenau (SC) na quarta-feira (5/4), segundo
apurações iniciais da polícia, é um caso isolado e sem relação com a onda de
massacres em unidades de ensino no país na última década e não tem vínculo com
as redes sociais.
Porém, o caso do adolescente 13 anos que invadiu uma escola em 27 de março na Zona Oeste de São Paulo, matou uma professora e feriu cinco pessoas, fazia referências a um dos autores do massacre em Suzano (SP) em 2019.
Em seu perfil no Twitter, o adolescente de 13 anos adotava o mesmo
sobrenome do autor do ataque em Suzano.
As postagens nas redes
Basta uma busca no Twitter ou no TikTok para encontrar publicações que
exaltam atiradores que invadiram unidades de ensino.
Boa parte desse conteúdo é encontrada com uma hashtag específica que
costuma ser usada por adoradores desses indivíduos. Em muitos desses casos,
segundo especialistas, esses “fãs” são crianças ou adolescentes, que acabam
compartilhando conteúdos favoráveis a essas pessoas.
Por exemplo, um perfil no Twittter compartilhou recentemente uma
mensagem que definia alguém que comete um massacre como uma pessoa “com
coragem”. E esse mesmo perfil deu a entender que um dia fará algo semelhante e
vai “mandar aquela gente do inferno de volta”. Na foto desse perfil, há uma
pessoa com uma máscara de caveira.
Essa máscara, muitas vezes impressa em uma bandana, é a mesma usada por
muitos perfis que cultuam esses assassinos na internet. O autor do massacre em
Suzano, que se matou após o ataque, usava essa máscara – que também foi usada
pelo jovem de 13 anos que atacou uma escola no início da semana passada.
Segundo pesquisadores, é um símbolo da supremacia americana.
Muitas das contas que exaltam responsáveis por massacres cultuam solidão
e sofrimento, declarando “ódio ao mundo”. São, como definem especialistas,
“lobos solitários”. Em muitos desses perfis, há conteúdos de misoginia ou
racismo.
Em um desses perfis, há um vídeo com montagem de fotos de cenas de
horror nas escolas – incluindo os casos de Suzano e o ataque da semana passada.
Esse material é acompanhado de uma música animada, típica de cenas de ação.
Em outro perfil, um jovem com a foto de um atirador retratado em uma
série da Netflix compartilha uma foto de sua carteira na escola e escreve que
está “de volta ao inferno”.
Após o ataque a faca em São Paulo em 27 de março, os próprios usuários
do Twitter perceberam que buscar pelo nome do autor do crime de Suzano e por
algumas hashtags específicas levava a um conteúdo perturbador. Em razão disso,
começaram a denunciar em massa esses perfis. No entanto, a maioria deles segue
ativa na rede social.
A política de combate ao discurso de ódio da plataforma, que já era
muito questionada, mudou totalmente depois da aquisição da empresa por Elon
Musk, que fez demissões em massa e defende publicamente manter perfis problemáticos
em nome da liberdade de expressão.
A BBC News Brasil procurou oficialmente o Twitter para questionar sobre
o incentivo ao homicídio de crianças e adolescentes em escolas na plataforma e
a resposta foi um e-mail com um emoji de fezes – prática que se tornou habitual
a qualquer questionamento da imprensa.
No TikTok, também chama a atenção o conteúdo voltado a esses perfis que cultuam responsáveis por massacres em escolas.
Na plataforma de vídeos, há muitas imagens e textos que demonstram admiração aos agressores, inclusive ao adolescente de 13 anos que matou a professora em março. Um vídeo com uma foto dele é acompanhado da frase “espero que você esteja bem”. É apenas um exemplo em meio a tantas outras homenagens compartilhadas na plataforma.
E no TikTok há também inúmeros vídeos que homenageiam o autor do massacre
de Suzano. Em um deles, por exemplo, a foto dele é acompanhada da frase “ele
parece um sonho, o garoto mais bonito que eu já vi”.
Essas publicações costumam ter centenas de curtidas e comentários
elogiosos. Na imensa maioria, os perfis que interagem com esses vídeos dizem
ser pré-adolescentes ou adolescentes – faixa etária de grande parte dos
usuários da plataforma.
Em nota à BBC News Brasil, o TikTok afirma que esse tipo de conteúdo é
proibido na plataforma e diz que tem diversos mecanismos para que os usuários
denunciem.
“Não há espaço para extremismo violento no TikTok e trabalhamos
continuamente para remover qualquer conteúdo e indivíduos que prejudiquem a
experiência criativa e alegre que as pessoas esperam em nossa plataforma”, diz
a empresa.
O TikTok também afirma que está analisando as postagens encontradas pela
BBC News Brasil e que tomará providências em relação a elas.
A plataforma diz, ainda, que a publicação do vídeo não significa que ele
será sugerido pelo algoritmo para outros usuários.
Essa espécie de idolatria aos responsáveis por massacres, segundo
especialistas, é justamente o que muitos desses grupos buscam. Esses indivíduos
podem enxergar as notícias e divulgação de seus nomes como algo que faz com que
se tornem relevantes. E, assim, são reconhecidos nesse meio extremista.
Para Letícia Oliveira, que há 11 anos monitora a extrema direita
brasileira na internet, o fato de o atirador de Suzano ter morrido após o
ataque e a intensa divulgação do nome e do rosto dele estão entre os principais
motivos para que ele tenha se tornado um ídolo nesse meio.
“É a pessoa que conseguiu passar por tudo aquilo que eles gostariam de
passar. É a intenção de matar e aquele que entra em confronto com a polícia e
morre ou se suicida vira ‘sancto’ pra eles, ou seja, é cultuado como um santo”,
explica.
Em dezembro de 2021, a idolatria ao atirador de Suzano foi apontada pelo
Ministério Público do Rio de Janeiro (MP-RJ) durante uma operação que
investigou grupos neonazistas no país.
Na época, o promotor Bruno Gaspar, do MP-RJ, passou meses apurando o
funcionamento de grupos neonazistas no país. Em entrevista à BBC News Brasil no
período, Gaspar lamentou a constatação de que o responsável pelo crime era
reverenciado.
"A gente tá falando de uma pessoa que matou alunos, estudantes e funcionários de uma escola e se tornou ídolo para essas pessoas", disse Gaspar em dezembro de 2021.
O massacre de Suzano ocorreu em 13 de março de 2019, na Escola Estadual
Raul Brasil. Ao todo, 10 pessoas morreram. Além do adolescente reverenciado nas
redes, um colega dele, de 25 anos, também participou do ato.
Segundo a investigação, eles teriam se inspirado no massacre da escola
de Columbine, no Estado americano do Colorado, em 1999, quando dois alunos
assassinaram 13 pessoas e feriram 24.
Essa idolatria a responsáveis por ataques, apontam especialistas, pode
ser um importante alerta sobre os riscos de um possível massacre.
No caso do ataque em São Paulo na semana passada, por exemplo, o
adolescente de 13 anos disse à polícia que se inspirou nos massacres de Suzano
e de Columbine.
A pesquisadora Michele Prado, do Monitor do Debate Político no Meio
Digital da USP (Universidade de São Paulo), afirma que uma pessoa que
compartilha esse tipo de conteúdo ou idolatra responsáveis por massacres “não é
um criminoso em potencial, mas é alguém que acredita que a violência é uma
solução legítima para as suas demandas”.
“Quando alguém começa a reproduzir esses conteúdos, é um sinal vermelho
de que a pessoa acredita que a violência é a única solução para a sua demanda,
para a sua queixa”, comenta.
Um dos riscos, apontam pesquisadores sobre o tema, é que esse indivíduo passe
a frequentar grupos que apontam para ele que a violência é a principal solução
para queixas que pode possuir, como bullying, violência ou qualquer tipo de
inadequação social.
“Nesse caso pode ocorrer uma radicalização tamanha que faz a pessoa
acreditar que matar outras pessoas é a solução para as suas queixas. E
disseminar esses conteúdos (favoráveis a responsáveis por massacres) pode
significar que ele tem a sua visão fortalecida e há potencial para chegar ao
extremo da ação violenta”, pontua.
“Todos que compartilham esses conteúdos vão executar? Não. Provavelmente
é uma minoria que vai chegar ao extremo. Mas não há dúvidas de que isso é um
sinal vermelho”, diz Prado.
Recrutados pelas redes
Esses espaços nas redes sociais acabam sendo ambientes onde os
agressores se articulam, segundo o trabalho da pesquisadora Telma Vinha, do
grupo de estudos “Ética, diversidade e democracia na escola pública”, da
Unicamp. Os métodos dos ataques são aprendidos na internet, disse ela em uma
palestra logo após o ataque em São Paulo, onde muitos jovens são aliciados e
apresentados a conteúdo de extrema direita.
O grupo de estudo de Vinha mapeou 22 ataques a escolas no Brasil nas
duas últimas décadas.
Nos últimos anos, houve uma explosão de conteúdos extremistas compartilhados
abertamente nas redes sociais, aponta Thiago Tavares, presidente da SaferNet
Brasil, ONG que atua desde 2006 na promoção e defesa dos direitos humanos na
internet e recebe denúncias anônimas sobre crimes.
“O que a gente tem visto é um recrudescimento da radicalização entre
jovens, que são muitas vezes recrutados pelas redes, como por meio de fóruns de
games, em plataformas específicas ou em redes sociais como o Twitter. Já a
DeepWeb é usada quando já existe um certo nível de radicalização instaurado”, diz
Tavares.
Ele acredita que isso se deve, principalmente, a situações como a
polarização política dos últimos anos e o avanço de muitos movimentos
associados à extrema direita no país. "São grupos que alimentam ódio
contra diferentes, minorias historicamente discriminadas no paíos, como LGBT,
mulheres e negros", afirma.
A pesquisadora Letícia Oliveira, que monitora a extrema direita há mais de uma década, ressalta que os jovens são cooptados em locais virtuais como chats de jogos online ou plataformas como o TikTok ou o Twitter. “Também usam muito o WhatsApp”, diz.
O WhatsApp informa, em nota, que usa criptografia de ponta a ponta como
padrão, o que, segundo o aplicativo, não permite que tenha acesso ao conteúdo
das mensagens trocadas entre usuários e, por isso, não realiza moderação de
conteúdo.
Apesar disso, o WhatsApp afirma que não permite o uso do seu serviço
"para fins ilícitos ou que instigue ou encoraje condutas que sejam
ilícitas ou inadequadas. Nos casos de violação destes termos, o WhatsApp toma
medidas em relação às contas como desativá-las ou suspendê-las."
"O aplicativo encoraja que as pessoas reportem condutas
inapropriadas diretamente nas conversas, por meio da opção “denunciar”
disponível no menu do aplicativo (menu > mais > denunciar) ou
simplesmente pressionando uma mensagem por mais tempo e acessando menu >
denunciar. Os usuários também podem enviar denúncias para o email
support@whatsapp.com, detalhando o ocorrido com o máximo de informações
possível e até anexando uma captura de tela”, diz o WhatsApp.
“Quando uma pessoa envia uma denúncia, o WhatsApp recebe as últimas
cinco mensagens, ou a mensagem especificamente reportada daquela conversa. O
usuário ou grupo denunciado não recebe nenhuma notificação sobre essa ação”,
acrescenta a nota da plataforma.
A reportagem também procurou a Meta, responsável pelo Instagram e pelo
Facebook, para saber quais medidas são tomadas nessas redes em relação ao tema.
Em nota, a empresa afirmou que não permite que organizações ou
indivíduos "que anunciem uma missão violenta ou que estejam envolvidos em
violência tenham presença nas plataformas da Meta. Isso inclui organizações ou
indivíduos envolvidos nas seguintes atividades: atividade terrorista, ódio
organizado, assassinato em massa (incluindo tentativas) ou chacinas, tráfico
humano e violência organizada ou atividade criminosa. Também removemos conteúdo
que expresse apoio ou exalte grupos, líderes ou indivíduos envolvidos nessas
atividades.”
“Além disso, disponibilizamos ferramentas para apoiar pais e
responsáveis a supervisionar e guiar a experiência de seus filhos adolescentes
em nossos aplicativos, disponíveis na Central da Família. Os recursos ajudam os
pais no controle parental para que possam conversar com os jovens sobre o que
estão consumindo online”, acrescenta a Meta.
Ainda em nota, a Meta pede que as pessoas denunciem conteúdos que violem
suas regras e afirma que "colabora com as autoridades locais, respondendo
às solicitações governamentais de dados nos termos da lei".


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