A ideia acabou barrada pela Justiça, impedindo o que teria sido o segundo maior experimento de tarifa zero no país em menos de um ano.
A tarifa zero ou passe livre é uma política pública
que prevê o uso do transporte público sem cobrança de tarifa do usuário final.
Nesse modelo, o sistema é financiado pelo orçamento do município, com fontes de
recursos que variam, a partir do desenho adotado por cada cidade.
O primeiro teste em grande escala da proposta no
país aconteceu no segundo turno das eleições presidenciais, em outubro de 2022.
Naquele dia, centenas de cidades brasileiras deixaram de cobrar passagem nos
ônibus e trens, para facilitar o acesso dos eleitores às urnas.
Na Grande Recife, a demanda aumentou 115% em
relação aos domingos comuns e 59% na comparação com o primeiro turno. Em Belo
Horizonte, o aumento foi de 60% e 23% nas mesmas bases de comparação, conforme
balanços divulgados à época.
Os números revelam a imensa demanda reprimida pelo transporte urbano e o fato de que, atualmente, milhões de brasileiros não usam ônibus, metrôs e trens por falta de dinheiro.
Mas essa realidade está mudando em um número
crescente de cidades e projetos em discussão na Câmara dos Deputados querem
tornar a tarifa zero uma política nacional – embora financiá-la em grandes
centros urbanos ainda seja um imenso desafio.
67 cidades brasileiras com tarifa zero
Ao menos 67 cidades brasileiras já adotam a tarifa
zero em todo o seu sistema de transporte, durante todos os dias da semana,
conforme levantamento da NTU (Associação Nacional das Empresas de Transportes
Urbanos), atualizado em março de 2023.
São cidades pequenas e médias, com populações que
variam de 3 mil a mais de 300 mil habitantes.
Outros sete municípios adotam a política de forma
parcial: em dias específicos da semana, em parte do sistema ou apenas para um
grupo limitado de usuários, segundo os dados da NTU.
E ao menos quatro capitais estudam neste momento a
possibilidade de adotar a tarifa zero em seus sistemas de transporte: São
Paulo, Cuiabá, Fortaleza e Palmas, de acordo com levantamento da área de
mobilidade urbana do Idec (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor).
No Brasil, a tarifa zero foi proposta pela primeira
vez durante o mandato da então petista Luiza Erundina à frente da Prefeitura de
São Paulo (1989-1992). Mas, naquela ocasião, a proposta não avançou.
A política voltou ao debate público nos anos 2000,
com o surgimento do Movimento Passe Livre (MPL).
O movimento social ganhou notoriedade em junho de
2013, ao liderar a maior onda de protestos da história recente, deflagrada por
um aumento das tarifas de ônibus em São Paulo.
Os números da NTU mostram que junho de 2013 teve efeitos concretos: das 67 cidades com tarifa zero no país, 51 adotaram a política após aquele ano.
A pandemia deu impulso adicional ao avanço do
modelo no Brasil: desde 2021, foram 37 cidades a adotar a tarifa zero – 13 em
2021, 16 em 2022 e outras oito só neste início de 2023.
O tema foi discutido pela equipe de transição do
governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e está no centro de um projeto de lei e
uma PEC (Proposta de Emenda à Constituição) na Câmara, o primeiro da autoria de
Jilmar Tatto (PT-SP) e a segunda, de Luiza Erundina (Psol-SP).
A PEC de Erundina pretende criar um Sistema Único
de Mobilidade (SUM), a exemplo do Sistema Único de Saúde (SUS). O objetivo é
garantir a gratuidade nos transportes, por meio de um modelo de
responsabilidade compartilhada entre governo federal, Estados e municípios.
A seguir, conheça a experiência de cidades que já
adotam a tarifa zero e os desafios para implementação da política em municípios
de grande porte, como São Paulo.
Maricá (RJ): demanda aumentou mais de 6 vezes
Maricá, no Rio de Janeiro, iniciou seu projeto de
tarifa zero ainda em 2014, durante o mandato de Washington Quaquá (PT) na
prefeitura do município.
Com uma população de 167 mil habitantes, a cidade
da Região Metropolitana do Rio de Janeiro, conta com um orçamento turbinado por
royalties do petróleo – uma espécie de compensação recebida por municípios pela
exploração do óleo em suas águas.
Foi com esse dinheiro em caixa que Maricá
viabilizou uma política de renda básica que atualmente beneficia 42,5 mil
moradores e também os ônibus gratuitos para a população.
Para dar início à política de tarifa zero, a prefeitura de Maricá criou uma autarquia, a EPT.
Com frota e motoristas próprios, a empresa operava
a princípio um número reduzido de ônibus gratuitos, que circulavam ao mesmo
tempo que linhas pagas, operadas por duas empresas privadas que tinham o
direito de concessão no município. Essa operação concomitante levou a embates
na Justiça, encerrados apenas com o fim das concessões.
Foi apenas em março de 2021 que a EPT passou a
operar todas as linhas do município com tarifa zero, por meio de ônibus
próprios e outros alugados de empresas privadas através de processos de
licitação.
Atualmente com 120 ônibus e 3,5 milhões de
passageiros por mês, o custo mensal do sistema varia de R$ 10 milhões a R$ 12
milhões.
"Em 2022, foram R$ 160 milhões que as famílias
deixaram de gastar com transporte, o que é injetado diretamente na economia da
cidade", diz Celso Haddad, presidente da EPT de Maricá.
O município enfrentou, no entanto, um desafio comum
a todas as cidades que implantam a tarifa zero: explosão de demanda e,
consequentemente, dos custos de operação.
"Aqui em Maricá, [a demanda] cresceu mais de
seis vezes. Tínhamos em torno de 15 mil a 20 mil pessoas transportadas
diariamente e hoje transportamos mais de 120 mil. A tarifa zero é um propulsor
do direito de ir e vir, é muito avassaladora a diferença", afirma o
gestor.
Vargem Grande Paulista (SP): taxa paga por empresas
locais
O avanço da tarifa zero no período recente deixou
de ser identificado com um espectro político específico. Prefeitos de esquerda
e direita têm implementado o modelo em seus municípios.
Josué Ramos, prefeito de Vargem Grande Paulista,
por exemplo, é filiado ao PL do ex-presidente Jair Bolsonaro.
O prefeito conta que a motivação que o levou a implementar em 2019 a tarifa zero no município foi a necessidade crescente de subsídios – a remuneração do serviço de transporte público é geralmente composta por uma parcela financiada via tarifa e outra via subsídio, com recursos que vêm do orçamento da prefeitura, a partir da arrecadação de impostos.
"Assim que eu assumi, em 2017, a empresa de
ônibus veio pressionar para aumentar a tarifa ou ampliar o subsídio ao
transporte da cidade, e eu não tinha previsão orçamentária para isso", diz
Ramos.
"Eles, do dia para a noite, retiraram todos os
ônibus das linhas e eu tive que, em 12 horas, buscar um transporte alternativo,
e coloquei vans operando de forma gratuita. Isso me despertou o interesse em
estudar melhor o caso [da tarifa zero]."
Ramos conta que estudou exemplos europeus, como
Luxemburgo – país que adota a gratuidade em todo seu sistema de transporte,
incluindo ônibus, trens e metrôs –, e brasileiros, como os de Maricá e Agudos,
no interior de São Paulo.
Assim, a prefeitura chegou a um modelo em que a
gratuidade é financiada através de um fundo de transporte, cujas principais
receitas são uma taxa paga pelas empresas locais no lugar do vale-transporte
(de R$ 39,20 mensais por funcionário), além de publicidade nos ônibus, locação
de lojas nos terminais e 30% do valor das multas de trânsito.
Empresas locais chegaram a ir à Justiça contra a
cobrança da taxa, mas Ramos afirma que algumas desistiram após entenderem
melhor a proposta, restando uma ação pendente.
Com a tarifa zero, a demanda aumentou de 40 mil
para 110 mil usuários mensais, exigindo a ampliação da frota de ônibus.
Atualmente, são 15 ônibus, em sete linhas, e o custo do sistema é de R$ 600 mil
mensais.
"É uma questão muito maior do que a de
mobilidade. Existe a questão social, a de geração de recursos, porque na hora
que eu implantei a tarifa zero, aumentou o gasto no comércio, a arrecadação de
ICMS, de ISS", relata Ramos.
"Existe também a questão da saúde: tínhamos
30% de pessoas que faltavam à consulta médica e esse índice reduziu, porque as
pessoas não tinham dinheiro para ir à consulta. Então ajudou em todas as áreas.
A tarifa zero, ao ser debatida, precisa levar em conta tudo isso."
Caucaia (CE): tarifa zero no segundo maior
município do Ceará
Caucaia, segundo município mais populoso do Ceará,
com 369 mil habitantes, é um exemplo do avanço da tarifa zero nos municípios
após a pandemia.
Com a crise sanitária, os sistemas de transportes
públicos perderam passageiros e os custos aumentaram com a alta do diesel e da
mão de obra.
Isso fez crescer a pressão por subsídios, num
momento em que as famílias, com a renda pressionada, teriam dificuldade para
arcar com um aumento da tarifa.
"Tínhamos que fazer alguma coisa para diminuir
a perda [de renda] das famílias, elas precisavam ser socorridas de alguma forma
na esfera municipal, para além do auxílio emergencial", diz Vitor Valim,
prefeito de Caucaia, eleito pelo PROS e atualmente sem partido.
Diferentemente de Maricá, que conta com royalties
do petróleo, e de Vargem Grande Paulista, que criou uma taxa sobre as empresas
locais, Caucaia decidiu arcar com a tarifa zero com recursos do orçamento
regular da prefeitura.
O programa, que recebeu o nome de Bora de Graça, foi implementado em setembro de 2021.
A iniciativa consome atualmente cerca de 3% do orçamento
municipal e a remuneração à empresa prestadora do serviço é por quilômetro
rodado, não por passagem.
"É tão exequível que o modelo de Caucaia será
estendido para toda a região metropolitana", diz Valim.
A gratuidade no transporte público intermunicipal
na Região Metropolitana de Fortaleza foi promessa de campanha do governador
Elmano de Freitas (PT) e um projeto sobre o tema tramita na Assembleia
Legislativa do Ceará.
Além de Caucaia, já adotam a tarifa zero na Região
Metropolitana de Fortaleza os municípios de Eusébio, Aquiraz e Maracanaú. A
capital estuda adotar a gratuidade para estudantes.
A repercussão local é outra característica do
avanço recente da tarifa zero: a adoção da política por um município influencia
as cidades do entorno.
Em Caucaia, com a tarifa zero, a demanda passou de
505 mil passageiros por mês para 2,2 milhões.
"Tivemos um aumento de custo de mais 30% com
reforço da frota, o que era previsível", relata o prefeito. "Esse foi
um desafio em termos de gestão, mas a dificuldade maior foi vencer a descrença
da população, que temia ser taxada. Teve uma desconfiança muito grande do
povo."
O desafio das grandes cidades
Com a tarifa zero avançando nas pequenas e médias
cidades, diversas capitais do país estudam caminhos para adotar a política.
Desde outubro de 2021, São Luís (MA) testa um
projeto-piloto chamado Expresso do Trabalhador, oferecendo a gratuidade para
uma região específica da cidade e para trabalhadores do comércio após às 21h.
Florianópolis (SC) tem ônibus de graça no último
domingo de cada mês – em dezembro e janeiro, a gratuidade foi estendida a todos
os fins de semana.
Em São Paulo, uma subcomissão na Câmara Municipal
estuda desde março a viabilidade da tarifa zero na capital de mais de 12
milhões de habitantes.
Atualmente, as 74 cidades brasileiras com tarifa
zero total ou parcial somam juntas 3,8 milhões de habitantes, segundo a NTU, o
que dá uma ideia do tamanho do desafio paulistano.
"Em São Paulo, o custo hoje de operação [do sistema de ônibus municipais] passa de R$ 12 bilhões e o município coloca mais de R$ 5 bilhões em subsídios", afirma o vereador Paulo Fringe (PTB), presidente da Subcomissão da Tarifa Zero da Câmara Municipal de São Paulo
"A tarifa na capital está atualmente em R$
4,40 – o valor real dela é de R$ 7,10, portanto o município está subsidiando
grande parte desse custo. [Na subcomissão da Tarifa Zero] temos 120 dias,
renováveis, para estabelecer um diagnóstico de quais são as eventuais fontes de
receita, sem aumento de imposto, para que possamos subsidiar a parte que falta
para ter a tarifa zero."
Rafael Calabria, coordenador de mobilidade urbana
do Idec, afirma que o custo de financiamento não é o único desafio para a
implantação da tarifa zero em grandes cidades.
Uma segunda dificuldade, segundo o especialista, é
conseguir atender o esperado aumento de demanda, o que exige investimento não
apenas no aumento de frota, mas em infraestrutura urbana – incluindo faixas
exclusivas, eliminação de vagas de estacionamento em vias onde passam ônibus, criação
de sistemas de integração e transferência, e assim por diante.
Outro desafio é a integração com o sistema de
transporte sobre trilhos, já que metrôs e trens operam em muitas capitais no
limite de sua capacidade, o que gera uma dificuldade para acomodar os novos
fluxos que seriam gerados pela gratuidade.
Por fim, um último desafio nas grandes cidades é a
questão metropolitana, pois eventuais disputas fiscais entre cidades com
políticas diferentes poderiam desequilibrar o sistema.
O que pensam as operadoras de ônibus
Francisco Christovam, presidente-executivo da NTU,
associação que congrega as empresas de transporte por ônibus, acrescenta que há
também um desafio jurídico-legal, que diz respeito aos contratos de concessão
ou permissão entre operadoras e prefeituras.
"Esses contratos precisarão ser revistos, mas
as prefeituras não podem ver essa mudança como uma oportunidade de rasgar
contratos", diz Christovam.
As empresas avaliam, porém, que a tarifa zero pode
ser uma solução para voltar a atrair a população para o transporte público –
até fevereiro de 2023, a demanda nos ônibus urbanos do país ainda era
equivalente a 82,8% do período anterior à pandemia.
Também pode ser uma alternativa para o reequilíbrio financeiro dos sistemas, num momento em que crescem os subsídios, em meio à alta de custos.
Segundo levantamento da NTU, antes da covid-19,
apenas São Paulo, Curitiba e Brasília subsidiavam pesadamente seus sistemas de
transporte. Atualmente, são mais de 200 cidades subsidiando seus sistemas de
transporte.
"Para nós operadores, o importante é a
garantia da remuneração justa e adequada pelo serviço prestado. Se o dinheiro
veio do passageiro ou do orçamento municipal, para nós não tem importância
nenhuma, desde que o valor seja suficiente para pagar o custo do serviço."
Sistema Unificado de Mobilidade
Na Câmara dos Deputados, ao menos dois projetos
tentam fazer da tarifa zero um programa nacional.
O projeto de Jilmar Tatto (PL 1280/2023) propõe a
criação do Programa Tarifa Zero, com modelo de financiamento similar ao de
Vargem Grande Paulista.
Pelo projeto, as cidades poderiam aderir ao
programa de forma voluntária. Os empresários locais então trocariam o pagamento
do vale-transporte pela contribuição a um fundo municipal para subsidiar a
gratuidade no transporte – que seria, no entanto, limitada aos trabalhadores.
Mais abrangente, a PEC de Luiza Erundina propõe a
criação de um Sistema Único de Mobilidade, universal e gratuito ao usuário, a
exemplo do SUS, na saúde.
A PEC está em fase de coleta de assinaturas – são necessárias 171 para que a proposta possa tramitar na Câmara e o mandato já havia recolhido 32 até o início desta semana.
Pela proposta, o financiamento ao sistema seria
viabilizado pela instituição de uma contribuição pelo uso do sistema viário e
por recursos da arrecadação de impostos de União, Estados e municípios.
Erundina explica que o objetivo da proposta é
concretizar a Emenda Constitucional 90 de 2015, que naquele ano garantiu o
transporte como um direito social, inscrito no artigo 6º da Constituição.
Pioneira a propor a tarifa zero, ainda em 1989, a
deputada vê com satisfação o avanço da política pública nas cidades brasileiras
e se diz otimista com as perspectivas para a PEC.
"Quando uma proposta tem coerência, tem
consistência, é inteligente para resolver os problemas da coletividade, ela não
morre na ideia do povo, ela segue viva. O Movimento Passe Livre sustentou a
defesa dessa proposta e hoje já são diversas instituições defendendo essa ideia
e vários municípios operando essa política na prática, com grande
sucesso", diz Erundina. "Vejo isso com muita esperança."
(BBC)



Nenhum comentário:
Postar um comentário