Após seguidas catástrofes socioambientais causadas pela ação do homem na natureza, a busca por conhecimentos que possam orientar a humanidade na relação com o meio ambiente tem sido cada vez mais presente nas pesquisas científicas. Em muitas delas, o conhecimento indígena, enterrado pela cultura colonizadora, volta à tona na forma de escavações arqueológicas.
Um
exemplo é o estudo Tropical forests as key sites of the Anthropocene: past and
present perspectives (em livre tradução As florestas tropicais como
locais-chave da cena humana: perspectivas passadas e presentes) realizado na
Amazônia peruana e publicado, em 2021, na revista científica Proceedings of the
National Academy of Sciences.
Ao
investigar as mudanças causadas pelos habitantes da maior floresta tropical do
planeta, os pesquisadores concluíram que ao longo de 5.000 anos, incluindo o
período após o contato europeu, as florestas não foram periodicamente
desmatadas para a agricultura ou significativamente modificadas pelas
populações indígenas.
A
vivência harmônica dessas populações com a floresta, revelado por camadas
profundas no solo, demonstraram “como as sociedades indígenas foram, e ainda
são, forças positivas na integridade e na biodiversidade do seu ecossistema, e
como o conhecimento indígena deve ser utilizado nos esforços de conservação e
sustentabilidade”, avalia o estudo.
Esse
conhecimento permanece perpetuado nas muitas comunidades indígenas ainda
existentes no Brasil, mas não consegue ultrapassar as barreiras da educação
formal ofertada à maior parte da população no país, diz o antropólogo da
Universidade de Brasília (UnB) Gersem Baniwa.
“Não se
reconhece essa história milenar, que a arqueologia moderna na Amazônia já
provou existir há mais de 15 mil anos, de verdadeiras civilizações que
produziram muita ciência, muita política, muita economia, muito comércio, muita
cultura, aritmética. Houve, inclusive, modelos de política, de cacicados na
Amazônia, com extensas redes de relações comerciais, culturais e políticas”,
diz o professor.
Todo esse
conhecimento foi perdido em um processo de desconstrução da história imposto
por colonizadores e perpetuado na educação até os dias de hoje, afirma o
historiador da Universidade Federal do Pará (Ufpa) Márcio Couto. “Quando a
gente estuda na educação básica, a contribuição dos indígenas é associada a
questões folclóricas. Eles contribuíram com a rede, com o hábito de tomar banho
e, por outro lado, as populações brancas, europeias, contribuíram com a
formação de um estado nacional, por exemplo. Vemos aí uma hierarquização das
contribuições, colocando no primeiro plano as contribuições das populações
brancas, em seguida as populações africanas e em último lugar as populações
indígenas”, observa.
Não
enxergar os povos indígenas como sujeitos de conhecimento fez com que o Brasil,
na sua construção sociocultural, não apenas ignorasse essa contribuição, mas
também deixasse de usufruir desse conhecimento em grande parte de seu
território. “Se a gente pega as áreas de preservação ambiental no Brasil, ou
mesmo na América, as áreas onde têm mais verde, onde têm mais mata preservada,
essas áreas coincidem com os mapas das terras indígenas”, reforça Couto.
Outra
consequência, para Baniwa, é o surgimento de gerações que perderam a capacidade
de se relacionar com o que está ao seu redor. “Uma parcela da ciência moderna
já começa a compreender esse mundo, no sentido da natureza, do universo, do
cosmo, como agentes vivos, mas os povos indígenas já têm isso milenarmente.”,
destaca.
A própria
arqueologia tem se revelado uma das principais ferramentas na retomada desse
conhecimento e também para transpor as barreiras que o mantém fora das salas de
aula. O arqueólogo da Universidade de São Paulo (USP) Eduardo Góes Neves, que
pesquisa a Amazônia há mais de 30 anos, ressalta que o crescimento da
arqueologia no Brasil tem estimulado uma busca maior das pessoas por essa etapa
da história do Brasil.
“As
pessoas têm um interesse, mesmo fora da Amazônia, em entender melhor quem nós
somos, o que o Brasil é. O Brasil se formou como essa imagem de uma parte das
elites intelectuais aqui do nosso país, que se viam com europeus transplantados
para o novo mundo. Essa visão é totalmente equivocada, é uma construção, que,
na verdade, só prejudica o nosso país”, explica.
Em meio à catástrofe do Rio Grande do Sul, o próprio uso de expressões como “crise climática” é questionado pelo antropólogo indígena, que a considera uma leitura equivocada do problema, causada pela falta de acesso a esses conhecimentos. “Não é uma crise climática, não é o clima que está em crise, não é a natureza que está em crise, é a humanidade e a civilização humana que está em crise. A gente prefere se enganar, transferir a nossa responsabilidade, dizendo que é o ambiente que está em crise, para não dizer que é uma crise civilizatória da humanidade”, conclui.
(JB/Ag. Brasil)
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