Pela
primeira vez, moradias construídas especificamente para os Jogos Olímpicos forneceriam
acomodações, leitos e alimentação para os atletas. Até então, os competidores
se hospedavam em hotéis, hospedarias, escolas, quartéis e nos próprios navios
que os levavam para as cidades anfitriãs.
Coubertin
era pragmático e tinha espírito público. Ele percebeu que era mais barato
abrigar os atletas em novas estruturas temporárias do que em hotéis. E as Vilas
Olímpicas poderiam ainda inspirar um senso de comunidade entre os competidores
internacionais.
Um
avanço fundamental para o desenvolvimento das Vilas Olímpicas veio quando elas
começaram a ser projetadas para serem usadas também após o término dos Jogos. A
ideia surgiu nos Jogos Olímpicos de 1952, em Helsinque, na Finlândia, que
contaram com duas Vilas Olímpicas.
Desde
então, outras cidades-sede adotaram largamente este sistema, ou pelo menos
tentaram, especialmente nas últimas duas décadas.
E,
embora a Vila Olímpica dos Jogos de Paris em 1924 fosse transitória (ela foi
demolida depois da Olimpíada), as Vilas dos Jogos deste ano na capital francesa
foram projetadas para serem ocupadas muito depois que os atletas voltarem para
casa.
Em
comparação com as instalações esportivas, as Vilas Olímpicas também se tornaram
espaços cada vez mais privados durante o período de realização dos Jogos. Elas
são relativamente separadas da esfera pública.
Esta
medida foi tomada depois do ataque terrorista ocorrido durante os Jogos
Olímpicos de 1972 em Munique, na então denominada Alemanha Ocidental. Membros
da organização militante palestina Setembro Negro invadiram a Vila Olímpica e
mataram atletas e técnicos israelenses, além de um policial alemão.
Atualmente,
além dos atletas e da sua comitiva, poucos visitantes podem entrar nas Vilas
Olímpicas. Os próprios familiares dos competidores precisam seguir rígidos
controles de segurança.
Ao
longo das décadas, as Vilas Olímpicas refletiram a ideologia política, os
valores sociais e as preferências arquitetônicas das cidades-sede. E sua
qualidade também reflete a riqueza econômica de cada país.
Nos
últimos cerca de 20 anos, as cidades anfitriãs dos Jogos Olímpicos vêm
dedicando cada vez mais atenção às preocupações universais, como a
sustentabilidade, a revitalização urbana e o legado dos Jogos Olímpicos. Este
último conceito indica os benefícios de longo prazo oferecidos aos moradores da
cidade-sede, depois do término dos Jogos.
As
novas Vilas Olímpicas e outras instalações e serviços dos Jogos são muito úteis
para revitalizar áreas degradadas. Elas oferecem, por exemplo, moradia social,
novas oportunidades de emprego, melhorias da infraestrutura e ligações de
transporte.
Mas,
na prática, esses planos, muitas vezes, não cumprem suas promessas — e já foram
alvo de muitas controvérsias.
O
caso de Paris 2024
As
três Vilas Olímpicas dos Jogos de Paris deste ano vêm sendo objeto de
questionamento.
Elas
estão espalhadas pelos subúrbios de Saint-Denis, Saint Ouen e
L'Île-Saint-Denis, ao norte de Paris. Os três fazem parte do departamento de
Seine-Saint-Denis e irão abrigar 4.250 atletas durante os Jogos Olímpicos e
outros 8 mil atletas durante as Paralimpíadas.
Paris
trabalhou muito para tornar as Vilas sustentáveis, transformando antigas
construções industriais degradadas em comodidades e acomodações para os
atletas.
Mas
este processo de revitalização urbana forçou muitos moradores já estabelecidos
a deixar o local – como imigrantes, que precisaram encontrar lares temporários
ou ocupar escritórios ou armazéns abandonados, muitos deles degradados.
Esta
situação vem chamando a atenção internacional. Na semana de abertura dos Jogos,
o jornal The New York Times destacou os acontecimentos em Seine-Saint-Denis,
enquanto os defensores dos direitos humanos acusaram as autoridades francesas
de praticarem "limpeza social".
"Um
dos benefícios das Olimpíadas bem planejadas é sua capacidade de recuperar
rapidamente uma área", afirma Dan Epstein, diretor consultivo da
consultoria de sustentabilidade e inovação Useful Projects. A empresa tem
experiência em desenvolvimento urbano e eventos globais e Epstein foi chefe de
legado e sustentabilidade da Autoridade Olímpica, durante os Jogos Olímpicos de
2012, em Londres.
"Mas,
com a recuperação, vem a gentrificação, que pode levar ao desalojamento forçado
das pessoas mais vulneráveis da região", explica ele.
"Políticas
como o fornecimento de moradia social e trabalho para os moradores locais são
fundamentais e devem ser integradas adequadamente ao projeto, planejamento e
modelo econômico de desenvolvimento das Vilas Olímpicas", diz Epstein.
As
cidades candidatas a sediar os Jogos Olímpicos precisam convencer o COI de que
seu projeto é sustentável e que seus planos de revitalização urbana são bem
fundamentados.
"Atualmente,
para as cidades-sede, fornecer evidências das suas credenciais de
sustentabilidade, que incluem a redução da pegada de carbono [todo o CO2
emitido durante a construção] e do carbono operacional [liberado pelo consumo
permanente de energia pela construção, como a iluminação elétrica e
aquecimento] é uma condição básica", afirma Ashley Munday, diretor e chefe
de design da empresa de arquitetura Hassell, que participou do projeto da Vila
Olímpica de Londres em 2012.
"Um
critério fundamental é o valor do legado de 3 a 5 mil novas casas [criadas
pelas Vilas Olímpicas] — uma ótima forma de ampliar a oferta de moradia
social", explica ele.
As
primeiras Vilas Olímpicas
A
evolução das Vilas Olímpicas no último século certamente foi impressionante.
A
Vila precursora, de Coubertin, nos Jogos de Paris de 1924 era rudimentar.
Localizada perto do Estádio Olímpico, ela compreendia cabines espartanas de
madeira, cada uma com três camas.
Outras
comodidades incluíam uma casa de câmbio, serviço telefônico, lavanderia a seco,
cabeleireiro, uma banca de jornais e uma agência de correio.
A
Vila dos Jogos Olímpicos de 1932, em Los Angeles (Estados Unidos), ficava em
Baldwin Hills, a 10 minutos de carro do Estádio Olímpico.
Naqueles
primórdios, havia separação. As mulheres se hospedavam em um hotel e os homens,
em estruturas leves temporárias de baixo custo, condizentes com os tempos de
restrição econômica causados pela Grande Depressão (1929-1939).
Mesmo
assim, a Vila incluía salas de jantar, casas de banho, um hospital, corpo de
bombeiros, rede telefônica e um anfiteatro para 2 mil espectadores.
Foi
apenas nos Jogos Olímpicos de Los Angeles em 1984 que homens e mulheres se
hospedaram juntos na Vila Olímpica, pela primeira vez.
Naquele
ano, 14 países do bloco oriental boicotaram os Jogos. Foi a resposta do bloco
ao boicote liderado pelos Estados Unidos em 1980 às Olimpíadas de Moscou, na
União Soviética, em protesto contra a invasão soviética do Afeganistão.
No
entanto, o estilo das Vilas Olímpicas de Los Angeles era de comemoração.
O
arquiteto Jon Jerde (1940-2015) projetou torres alegres policromáticas em tons
populares, que refletiam a moda da arquitetura divertida, pós-moderna e de alta
tecnologia dos anos 1980.
De
Berlim a Helsinque
Adolf
Hitler (1889-1945) aproveitou os Jogos Olímpicos de 1936, em Berlim, na
Alemanha, como poderosa ferramenta de propaganda. Foram os primeiros Jogos
televisionados da história.
Sua
Vila Olímpica incluiu dormitórios de dois andares, um refeitório, sala de
ginástica e instalações de treinamento. Ela era aberta ao público e atraiu 370
mil visitantes, um reflexo dos sentimentos nacionalistas do país na época.
Após
o término dos Jogos, a Vila Olímpica foi transformada em hospital e escola da
infantaria do exército. A construção que recebeu o atleta americano Jesse Owens
(1913-1980) foi posteriormente restaurada.
Londres
foi a cidade-sede dos Jogos Olímpicos de 1948. Ainda com as cicatrizes deixadas
pelos bombardeios da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), o orçamento da cidade
era restrito.
Estruturas
já existentes foram reutilizadas para servir de Vila Olímpica – um antigo
acampamento militar em recuperação, com cabanas de madeira no Richmond Park.
As
instalações da Vila acomodaram os homens, enquanto as mulheres se hospedaram
principalmente em estabelecimentos de ensino, como o Southlands College, na
Universidade de Roehampton, em Wandsworth, na região sul da capital britânica.
A
equipe finlandesa trouxe consigo uma sauna de madeira pré-fabricada, que também
incluía um banheiro, sala de massagens e cozinha. Ela foi doada ao Reino Unido
após os Jogos e depois levada para o Cobdown Park, em Maidstone, no sudeste da
Inglaterra. Lá, permaneceu em uso até 2020.
Já
as Vilas dos Jogos Olímpicos de Helsinque eram idílicas. Foram concebidas para
ajudar a preservar um espaço verde fundamental no norte da cidade. Sem isso, a
área teria sido invadida e engolida por um distrito comercial próximo.
O
cenário das Vilas de Helsinque era um bosque em declive com grandes espaços ao
ar livre, formando forte conexão com a natureza. A capital finlandesa se
expandiu desde 1952 e, agora, as Vilas ficam no centro da cidade. Mas elas
mantêm o charme da antiga zona rural.
Sua
construção foi projetada em estilo modernista por arquitetos de vanguarda da
época, como Alvar Aalto (1898-1976).
"As
Vilas de Helsinque mantiveram sua popularidade", afirma o editor-chefe da
publicação Finnish Architectural Review, Kristo Vesikansa.
"Para
muitos moradores de Helsinque, as Vilas representam um bairro residencial
ideal, com seus apartamentos compactos e funcionais, além de grandes jardins.
Uma piscina, originalmente construída para os atletas, também é popular",
segundo ele.
Roma,
Munique e Barcelona
A
Vila dos Jogos Olímpicos de Roma, na Itália, em 1960, foi um exemplo de
revitalização.
Os
organizadores dos Jogos recuperaram um bairro degradado chamado Campo Parioli,
construindo moradias públicas em estilo moderno. Foram 1.348 apartamentos,
projetados para uso após os Jogos. Eles existem até hoje.
Uma
das principais atrações dos Jogos Olímpicos de Munique, em 1972, foi sua
arquitetura avant-garde, refletindo a filosofia futurista dos Jogos. Mas a
Vila, acima de tudo, é lembrada hoje em dia como o local da horrível tragédia
conhecida como o massacre de Munique.
Projetada
em 1969 pelo arquiteto Günther Eckert (1927-2001), a Vila Olímpica compreendia
um bloco de concreto com 801 apartamentos espaçosos. As ruas da Vila ficavam em
nível separado do tráfego de veículos – uma ideia profeticamente ecológica.
Os
Jogos de Munique foram pioneiros na crença do legado. Por isso, as construções
da Vila Olímpica foram projetadas para serem reutilizadas depois dos Jogos.
Seus apartamentos foram vendidos como residências e as casas de dois andares
foram transformadas em acomodações para estudantes (embora elas tenham sido
parcialmente destruídas por um levante estudantil e reconstruídas
posteriormente).
Atualmente,
segundo Hassell, a Vila permanece "com alta procura, devido à qualidade da
sua arquitetura e às suas áreas verdes".
A
revitalização urbana foi um ponto central dos Jogos Olímpicos de 1992, em
Barcelona, na Espanha, e sua Vila Olímpica.
Foi
criada uma área residencial chamada La Vila Olímpica no distrito de Poble Nou,
uma antiga e poluída zona industrial.
Uma
equipe de arquitetos – Josep Martorell (1925-2017), Oriol Bohigas (1925-2021),
David Mackay (1933-2014) e Albert Puigdomènech (1944-2004) – projetou a Vila
Olímpica, oferecendo uma variedade de estilos. Mas sua disposição era ordenada,
seguindo o modelo da famosa e elegante grade do bairro central Eixample, em
Barcelona.
"Barcelona
é possivelmente o melhor exemplo que observamos de uma Vila Olímpica
transformada em um bem sucedido bairro urbano, que também trouxe melhorias para
a zona portuária", destaca Epstein.
A
vez de Londres
Os
Jogos Olímpicos de Londres, em 2012, trouxeram a renovação de um ponto
industrial poluído na região de Stratford, no leste da capital britânica.
"As
Olimpíadas de Londres se propuseram a ser os Jogos mais sustentáveis da
história", relembra Epstein.
"A
ideia era usar os Jogos Olímpicos para catalisar a revitalização do Lower Lea
Valley e transformá-lo em uma comunidade vibrante, socialmente inclusiva, com
baixo uso de carbono e transporte público excepcional. Muitos parques olímpicos
e suas instalações foram frequentemente abandonados no passado, após o término
dos Jogos."
"Como
primeiro prefeito eleito de Londres, Ken Livingstone abraçou os Jogos
Olímpicos", conta Dave Hill, autor do livro Olympic Park: When
Britain Built Something Big ("Parque Olímpico: quando o Reino
Unido construiu algo grande", em tradução livre). Hill também é o criador
do site onlondon.co.uk, que apresenta notícias e análises sobre a cultura e a
política londrina.
Livingstone
supervisionou a proposta de Londres para receber os Jogos de 2012. Segundo
Hill, "Livingstone conseguiu ver que os Jogos poderiam trazer enormes
investimentos para o Lower Lea Valley."
Os
Jogos Olímpicos também receberam total apoio de Boris Johnson, sucessor de
Livingstone na prefeitura londrina, embora seu gosto arquitetônico fosse
clássico e conservador.
"Johnson
tinha uma visão para o Parque Olímpico como um todo, com praças e casas
familiares com terraços em estilo vitoriano, inspiradas pelas grandes
propriedades de Grosvenor e Bedford, em Londres", diz Hill.
Por
isso, os arquitetos do escritório Fletcher Priest, em conjunto com os
engenheiros estruturais da Arup e os arquitetos paisagistas da West 8 e Vogt
Landscape, foram convocados para projetar um distrito em forma de vila, com
jardins que lembrassem a disposição das ruas vitorianas em regiões do oeste de
Londres, como Maida Vale. O projeto incorporou 69 blocos residenciais, praças
comunitárias, fontes e jardins.
As
críticas ao legado
Em
2013, as pessoas começaram a ocupar parte dos blocos da Vila Olímpica de
Londres, agora transformados em apartamentos residenciais para aluguel, na área
rebatizada como East Village. Ela fica ao lado do também rebatizado Parque
Olímpico Rainha Elizabeth.
Mas
o bairro foi amplamente criticado, devido ao alto valor dos aluguéis. Em 2022,
um apartamento de dois quartos nos antigos blocos dos atletas custava mais de
2,3 mil libras esterlinas (cerca de R$ 16,8 mil) por mês e os apartamentos de
três quartos custavam cerca de 2,7 mil libras (cerca de R$ 19,7 mil) mensais.
E,
embora o comitê organizador dos Jogos de Londres tenha prometido que a
revitalização do leste de Londres criaria 30 mil a 40 mil novas residências, o
jornal The Guardian divulgou em 2022 que a remodelação havia resultado em
apenas 13 mil novas casas.
Enquanto
isso, nos bairros de Newham, Tower Hamlets, Hackney e Waltham Forest, onde
foram realizados os Jogos Olímpicos, havia quase 75 mil famílias na lista de
espera por habitação social.
Outras
cidades-sede também receberam fortes críticas em relação ao seu legado.
"A
Vila Olímpica dos Jogos de Verão de 2004 em Atenas [na Grécia] compreendia 21
torres residenciais", segundo Epstein.
"Depois
dos Jogos, a intenção é que ela se tornasse uma nova zona residencial, com suas
acomodações sendo vendidas ou alugadas para a população local. Mas apenas a
metade dos apartamentos está ocupada hoje em dia."
"E,
quando o Rio de Janeiro promoveu os Jogos em 2016, a cidade quis imitar
Londres", acrescenta ele.
"Mas
o legado da sua Vila Olímpica e suas 31 torres não foi bem-sucedido, pelo menos
no curto prazo".
Muitas
pessoas ficaram irritadas com os desalojamentos em Seine-Saint-Denis e outras
regiões de Paris, nos preparativos para os Jogos Olímpicos deste ano.
Mas
seus organizadores demonstram forte compromisso com a sustentabilidade. Existem
fortes evidências de preparação das Vilas para o futuro, deixando-as prontas
para seu novo uso após os Jogos.
Três
blocos de apartamentos criados para os atletas em St. Ouen, por exemplo, serão
reutilizados como moradia e escritórios depois das Olimpíadas.
Muitos
edifícios existentes, como uma fábrica e um estúdio cinematográfico, foram
reformulados. Telhados receberam painéis solares e os amplos espaços entre as
construções oferecem túneis de vento para levar ar fresco do rio Sena para as
Vilas Olímpicas.
"Os
Jogos de Paris trouxeram muitas promessas", afirma Dan Epstein. "Eles
realmente se concentram na reutilização das instalações existentes." Mas
ele acrescenta uma nota com tom de cautela:
"Você
só pode realmente dizer qual é o legado de uma cidade-sede e o grau de
sustentabilidade que ela irá atingir no longo prazo, em 10 a 20 anos depois do
término dos Jogos."
(Fonte:
BBC)
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