Em 2007, a escritora Doris Lessing ganhou o Prêmio Nobel de Literatura, aos 87 anos, consagrando-se como a escritora mais velha a receber o mais prestigiado prêmio da literatura mundial.
Ao longo de sua carreira, a atriz Ingrid Bergman recebeu quatro Óscar por suas atuações.
O
que essas três mulheres têm em comum, além do sucesso profissional, é a
ausência dos filhos. Ao menos ao lado delas, já que as três pariram, e,
igualmente, deixaram
as proles para trás.
"Que
tipo de mãe abandona seu filho?". A pergunta foi o que motivou a
jornalista e escritora catalã Begoña Gómez Urzaiz a escrever o livro As
Abandonadoras (Zahar), lançado recentemente no Brasil.
Para
tentar responder ao seu questionamento, a própria autora, mãe de duas crianças,
teve que cometer “microabandonos” como ela mesma classifica sua ausência nos
fins de semana e outros momentos com a família.
“A
primeira coisa que meus filhos aprenderam foi a puxar o cabo de alimentação do
meu Mac”, contou ela à BBC News Brasil em uma rápida passagem pelo Brasil em
junho. “Para eles, meu computador era um inimigo”.
Para
escrever seu livro — longe dos filhos — Begoña fez uma pesquisa profunda pelas
histórias dessas famosas mulheres e suas motivações. “Percebi que na minha
cabeça já havia uma espécie de lista de mulheres abandonadoras, com as quais eu
me sentia desconfortável”, conta ela. “Foi então que comecei a me questionar
por que isso me incomodava tanto”.
A
partir de então, ela tenta responder à própria pergunta jogando luz sobre uma
parte da história dessas mulheres que, normalmente, não costuma ser revelada.
“Eu
conto sobre a vida dessas mulheres por meio de suas maternidades e o que isso
significou para elas”, afirma. “E normalmente não estamos acostumados a contar
sobre essas vidas assim, ainda mais sobre mulheres que fizeram coisas
importantes”.
No
filme Que horas ela volta? (2015), a diretora Anna Muylaert
conta a história de Val (Regina Casé), uma pernambucana que vai para São Paulo
para trabalhar em uma casa de família com o intuito de proporcionar melhores
condições de vida para a filha Jéssica, que fica em Pernambuco.
Passado
um tempo, Jéssica pede para ir morar com a mãe e a trama fica mais intensa. A
relação da empregada com os filhos da patroa, a crítica social ao tratamento
corriqueiro dado a funcionários domésticos como se fossem “da família” estão
presentes no filme, cujo título em inglês é The second mother (A
segunda mãe).
Durante
sua pesquisa, Begoña encontrou casos parecidos com o da personagem vivida por
Regina Casé. Especialmente de mulheres latinas que foram para a Europa em busca
de trabalho, que, em muitos casos, consistia em cuidar dos filhos de outras
mulheres.
Por
isso, o livro de Begoña não se debruça somente sobre histórias de mulheres
famosas, que deixam seus filhos em busca de uma carreira de sucesso. Há uma
nuance econômica e social quando se fala em abandono materno e esse tema também
é delicadamente tratado em As Abandonadoras.
Ela
conta que quando passou a buscar mães anônimas e suas histórias, teve que
tocar, obrigatoriamente, no tema da migração. Há um capítulo somente sobre
essas histórias, de mães que mudaram de país, sozinhas, em busca de melhores
oportunidades. “99% dessas mulheres abandonaram seus filhos por falta de
dinheiro e oportunidades em seus países de origem”, conta a escritora.
"DNA do abandono"
Até
mais ou menos a metade do século passado, para abandonar uma criança era
necessário apenas um recurso: um cilindro giratório de madeira, normalmente
instalado nas portas de instituições como as Santas Casas.
A
roda dos expostos, ou dos enjeitados, foi uma prática iniciada na Idade Média e
que atravessou séculos e continentes.
Recentemente,
a Europa fez ressurgir o mecanismo, mas com uma nova roupagem. Os bebês são
deixados em
uma escotilha chamada “Babywiege” (berço, em português). O local é
seguro e com uma temperatura ideal para os bebês.
No
Brasil, a questão passou a ser tratada de forma mais humana a partir da criação
do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que prevê o direito da mulher
realizar a entrega do bebê para a adoção, preservando sua identidade.
A
psicóloga Carolina Santos Soejima realizou um estudo com algumas dessas
mulheres para saber se havia histórico comum na dinâmica familiar durante a
infância delas.
A
pesquisa foi realizada para a sua tese de mestrado pela Universidade Federal do
Paraná (UFPR) em 2004, intitulada "o que leva uma mãe a abandonar um
filho?". Para tentar responder a essa pergunta, ela conseguiu reunir uma
amostra de 21 mulheres que entregaram bebês para a adoção. Cada uma delas
indicou outra mulher, do mesmo círculo social, com filhos, para que pudesse ser
feito um comparativo.
A
pesquisadora avaliou então a qualidade das interações familiares a partir de
indicativos como envolvimento dos pais na infância, regras, comunicação, clima
conjugal, punições, dentre outros.
"A
conclusão foi que havia diferença na qualidade da interação familiar entre
esses dois grupos", conta a psicóloga. As mulheres que, independentemente
da razão, entregaram os bebês para a adoção, não vivenciaram "relações
afetivas, envolvimento parental e não receberam reforços positivos,
influenciando diretamente em sua auto-estima e afeto", diz o estudo de
Carolina.
Com
todas essas nuances, a pergunta feita pela psicóloga, muito parecida com a que
Begoña fez a si mesma para escrever o livro, não tem uma resposta simples. Para
Carolina, são comportamentos que se repetem.
Para
Begoña, são circunstâncias. “Qualquer tipo de mãe é capaz de abandonar seus
filhos nas circunstâncias que a levam a fazê-lo”, diz. “Não há um gene, não há
um DNA de uma mulher abandonadora. O que existem são circunstâncias”.
Enquanto
o abandono materno é tema de teses acadêmicas, livros, filmes e toda a sorte de
conteúdo, o mesmo não ocorre quando se trata do pai, cuja ausência sempre foi
naturalizada.
Pablo
Neruda, como lembra a escritora no início do livro, abandonou sua única filha, Malva
Marina, aos dois anos. A menina tinha hidrocefalia, uma doença congênita, e
ficou aos cuidados da mãe até falecer, aos oito anos.
O
poeta chileno ignorou pedidos de ajuda, inclusive financeira, da ex-mulher e
mãe da menina, Maria Antonieta Hagenaar.
No
Brasil, somente no ano passado, 172 mil crianças foram registradas sem o nome
do pai na certidão de nascimento.
“A
lista é infinita”, diz a escritora sobre os pais que abandonam seus filhos.
“Até porque não sabemos sobre aqueles pais que não vão embora, mas que não
praticam uma paternidade responsável”. Para os pais, é possível ser ausente
mesmo sem que haja o abandono físico, uma opção que só cabe a mulheres mais
abastadas, defende a autora.
“Para
uma mulher, é impossível desistir [da maternidade] estando presente”, afirma.
“A não ser que você seja muito rica e tenha muitos empregados”, diz ela.
"Mas, neste caso, também não há um desejo ou um tabu de ter que fugir para
poder ser [alguém], porque elas já poderiam ser, graças a essa rede de apoio
paga”.
Qual é o custo de ser mãe?
O
livro de Begoña toca bastante nos custos emocionais, tanto de permanecer,
quanto de abandonar um filho.
Mas
a maternidade tem outros custos. Alguns, inclusive, mais palpáveis.
Em
maio deste ano, as pesquisadoras do Centro de Pesquisa em Macroeconomia das
Desigualdades (Made), da USP, Amanda Resende, Tainari Taioka, Clara Saliba e
Luiza Nassif tentaram calcular o custo de ser mãe no Brasil. Para isso, elas
traçaram alguns perfis, com base nos números da Pesquisa Nacional por Amostra
de Domicílios Contínua (Pnad) de 2022, feita pelo Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE).
“O
que mais nos chamou a atenção foi a desigualdade entre mulheres casadas e mães
solo”, afirmou Amanda Resende. “Existe um diferencial significativo de pobreza
e de tempo entre elas”. Ela explica que mães solo muitas vezes deixam o
trabalho porque os custos de terceirizar os serviços de cuidado doméstico não
compensam.
“Já
as mulheres casadas escolhem continuar no mercado quando elas têm uma renda
alta suficiente”, explica Amanda. “No caso de mães com filhos com até dois anos
de idade, mulheres casadas chegam a ganhar até o dobro em relação às mães
solo”.
De
acordo com ela, conforme a criança vai crescendo, essa diferença vai
diminuindo. “O que nos faz pensar que existe um custo da maternidade,
especialmente para as mães solo”.
Na
pesquisa, o recorte racial também ficou evidente: a maior parcela de famílias
monoparentais são negras. “E mães solo negras são as que mais se aproximam da
linha da pobreza. Isso em qualquer idade dos filhos”, diz a pesquisadora.
(Fonte:
BBC)
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