A
lei, que atinge agora a maioridade, prevê a adoção de medidas protetivas de
urgência para romper o ciclo de violência contra a mulher e impedir que o
agressor cometa novas formas de violência doméstica, seja ela física, moral,
psicológica, sexual ou patrimonial.
Antes
da lei, este tipo de violência era tratado como crime de menor potencial
ofensivo. A diretora de Conteúdo do Instituto Patrícia Galvão, Marisa
Sanematsu, aponta que muitas mulheres foram agredidas e assassinadas em razão
da leniência contra esses crimes, que ficavam impunes ou sujeitos a penas
leves, chamadas de pecuniárias, como o pagamento de multas e de cestas básicas,
suavizadas por argumentos como o da legítima defesa da honra de homens.
“As
agressões contra mulheres eram tratadas como uma questão menor, um assunto
privado, a ser resolvido entre quatro paredes. Quando a justiça era acionada, a
violência doméstica era equiparada a uma briga entre vizinhos a ser resolvida
com o pagamento de multa ou cesta básica”, relembrou Marisa Sanematsu.
A
ministra das Mulheres, Cida Gonçalves, avalia que a lei trouxe ganhos para a
sociedade brasileira. “Primeiro, ela tipifica o crime existente: a violência
física, a violência psicológica, a violência patrimonial, a violência moral e a
violência sexual. E organiza o Estado brasileiro para garantir o atendimento às
mulheres”, disse à Agência Brasil.
Como
parte das celebrações do aniversário da Lei Maria da Penha, o governo federal
estabeleceu o Agosto Lilás como mês de conscientização e combate à violência
contra a mulher no Brasil.
Avanços
Para
especialistas, entre as principais inovações trazidas pela Lei Maria da Penha
estão as medidas protetivas de urgência para as vítimas da violência doméstica
e familiar, como afastamento do agressor do lar ou local de convivência,
distanciamento da vítima, monitoramento por tornozeleira eletrônica de acusados
de violência doméstica, a suspensão do porte de armas do agressor, dentre
outras.
Adicionalmente,
a lei estabeleceu mecanismos mais rigorosos para coibir este tipo de violência
contra a mulher e também previu a criação de equipamentos públicos que permitam
dar efetividade à lei, como delegacias especializadas de atendimento à mulher, casas-abrigo,
centros de referência multidisciplinares da mulher e juizados especiais de
violência doméstica e familiar contra a mulher, com competência cível e
criminal, entre outros equipamentos.
A
advogada especialista na defesa de mulheres, conselheira do Centro Feminista de
Estudos e Assessoria (CFemea) e representante dessa organização no Consórcio de
Monitoramento da Lei Maria da Penha, Lisandra Arantes, considera a Lei 11.340
como o principal avanço na legislação brasileira para a proteção das mulheres
da sociedade brasileira e pela primeira vez, reconhece que a violência motivada
pela misoginia, pelo ódio às mulheres, pelas questões de gênero.
“A
lei Maria da Penha foi o principal avanço que nós tivemos em termos de proteção
à mulher contra a violência. O que não significa que ainda não tenhamos muito
pra avançar.”
Números
O
avanço na legislação não tem evitado, no entanto, a alta de números de
violência contra a mulher. Dados do Conselho Nacional de Justiça sobre a
atuação do poder judiciário na aplicação da Lei Maria da Penha revelam que
640.867 mil processos de violência doméstica e familiar e/ou feminicídio
ingressaram nos tribunais brasileiros em 2022.
Dados
do último Anuário Brasileiro de Segurança Pública mostram que todos os
registros de crimes com vítimas mulheres cresceram em 2023 na comparação com
2022: homicídio e feminicídio (tentados e consumados), agressões em contexto de
violência doméstica, ameaças, perseguição (stalking), violência
psicológica e estupro.
Ao
longo do ano passado, 258.941 mulheres foram agredidas, o que indica alta de
9,8% em relação a 2022. Já o número de mulheres que sofreram ameaça subiu 16,5%
(para 778.921 casos), e os registros de violência psicológica aumentaram 33,8%,
totalizando 38.507.
Os
dados do anuário são extraídos dos boletins de ocorrência policiais, compilados
pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). Outro levantamento de fórum
aponta que ao menos 10.655 mulheres foram vítimas de feminicídio no
Brasil de 2015 a 2023.
De
acordo com o relatório, o número de feminicídios cresceu 1,4% em 2023 na
comparação com o ano anterior e atingiu a marca de 1.463 vítimas no ano
passado, indicando que mais de quatro mulheres foram mortas por dia.
O
número é o maior número da série histórica iniciada pelo FBSP em 2015, quando
entrou em vigor a Lei 3.104/2015 , que prevê o feminicídio como
circunstância qualificadora do crime de homicídio e inclui o feminicídio no rol
dos crimes hediondos.
A
diretora do Instituto Patrícia Galvão sugere ações de enfrentamento mais
contundentes. “Os números alarmantes de agressões e feminicídios comprovam a
urgência de um pacto de tolerância zero contra a violência doméstica”, diz
Marisa Sanematsu.
“Todo
feminicídio é uma morte evitável, se o Estado e a sociedade se unirem para
enfrentar e denunciar todas as formas de violência que vêm sendo praticadas
contra as mulheres.”
Desafios
Apesar
de reconhecer os avanços da legislação nestes 18 anos, a ministra das Mulheres,
Cida Gonçalves, analisa que entre as dificuldades enfrentadas para
implementação efetiva da lei estão a oferta de serviços especializados e
profissionais preparados para lidar com novos métodos de violência contra as
mulheres.
“Para
garantir que ela saia do papel e de fato aconteça, precisamos ter serviços
especializados e que o todo do sistema – composto pelo judiciário brasileiro,
pela OAB, etc – dê conta de avançar na análise das violências para darmos a
garantia do combate à impunidade de agressores, porque isso tem feito com que
muitos casos [de violência] retornem.
Em
atendimento à lei Maria da Penha, o Ministério das Mulheres planeja colocar em
funcionamento 40 casas da Mulher Brasileira, em todos os estados e no Distrito
Federal. As unidades oferecem atendimento humanizado e multidisciplinar às
mulheres em situação de violência. Atualmente, dez casas estão em operação.
O
Conselho Nacional de Justiça (CNJ) aponta no Painel de Monitoramento da
Política de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres que, em todo o
Brasil, existem apenas 171 varas especializadas e exclusivas para atendimento
de mulheres vítima de violência doméstica e familiar.
A
conselheira do CFemea Lisandra Arantes aponta que muitos casos de violência
doméstica sequer são denunciados e, por isso, a possibilidade de proteção não
consegue alcançar as mulheres que não romperam ainda o ciclo de violência.
“Muitas
vezes, [a violência] ocorre porque elas têm uma dependência financeira do seu
agressor ou estão em uma situação de submissão, não necessariamente relacionada
à questão financeira, mas por conta dessa construção patriarcal da sociedade
que a gente vive. E elas voltam a viver com seus agressores, nessas situações
em que não há medida protetiva, porque não houve uma denúncia, não se buscou a
proteção, infelizmente”, lamentou.
Outro
fator negativo é a desinformação. Apenas duas, em cada dez mulheres, se
sentem bem informadas em relação à Lei Maria da Penha. Os dados são da 10ª
edição da Pesquisa Nacional de Violência Contra a Mulher, realizada pelo
Observatório da Mulher Contra a Violência (OMV) e o Instituto DataSenado, ambos
do Senado.
A
radialista Mara Régia, que apresenta o programa Viva Maria,
na Rádio Nacional da EBC desde 1981, celebra a luta de
Maria da Penha e reconhece os desafios em torno da lei.
“A
Lei Maria da Penha é específica para o âmbito doméstico, aquela violência que
acontece, em geral, do marido contra a mulher. Sabemos que as resistências à
lei são muitas e que, apesar de ter chegado à maioridade, a própria Maria da
Penha tem sido muito atacada [nas redes sociais]. Hoje, é um dia de
solidariedade a essa mulher que pagou com muita dor e violência sofrida
domesticamente. E lembro que uma grande parte das mulheres do Brasil sofre essa
violência em casa, todos os dias.”
Futuro
Dezoito
anos após a sanção da lei Maria da Penha, organizações feministas, ativistas,
parlamentares e pensadoras destacam a importância de uma lei integral de
proteção às mulheres em situação de violência de gênero, que inclua novos
crimes contra a mulher que surgem, por exemplo, com inovações tecnológicas,
como crimes no ambiente virtual.
Desde
2022, o Consórcio Lei Maria da Penha, em parceria com várias organizações de
mulheres e feministas, tem debatido a criação de uma lei geral que reconheça e
responda a todas as formas de violência contra mulher. Sobre o tema, o
consórcio lançou o livro A Importância de uma Lei Integral de Proteção
às Mulheres em Situação de Violência de Gênero, disponível na versão online.
A
coautora é a advogada feminista Myllena Calasans de Matos, integrante do
consórcio e do Comitê Latino Americano e do Caribe para Defesa dos Direitos da
Mulher (Cladem) do Brasil. Em entrevista à Agência Brasil, ela disse que o
consórcio tem debatido com organizações de mulheres mecanismos mais eficazes de
prevenção e de melhor acesso à justiça para as mulheres.
“Tem
sido feita uma reflexão a respeito de uma lei mais ampla, que abarque todas as
formas de violência que existiam e outras que têm surgido e, por isso,
necessitam também de uma regulação. Uma lei integral de enfrentamento à
violência de gênero contra as mulheres, onde vamos buscar diretrizes,
objetivos, as responsabilidades dos estados, dos municípios, dos poderes
judiciário e legislativo, pensar também em um aparato de mecanismos no âmbito
da justiça.”
(Ag.
Brasil)
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