"Você
vai virar maconheira depois de velha?", perguntou a mãe de Luísa.
"Foi
um grito ao céu", conta Luísa à BBC News Brasil.
Ela, no entanto, não estava "virando maconheira". Estava entrando no lucrativo mercado legal da cannabis na Colômbia.
A
Colômbia ficou conhecida desde os anos 1980 por ser a maior produtora de cocaína do
mundo e berço de cartéis de drogas e traficantes famosos internacionalmente
como Pablo Escobar.
Mas,
nos últimos anos, uma série de mudanças legais criou as bases da indústria
movida à maconha.
A
partir de 2015, o governo passou a emitir licenças para a plantação e
comercialização de cannabis para fins medicinais e terapêuticos.
Nove
anos depois, produtores locais apontam o país como um dos mais promissores do
mundo neste lucrativo mercado que, segundo a consultoria especializada BDSA,
pode atingir US$ 58 bilhões (R$ 325 bilhões) em todo o mundo em 2028.
Em
maio deste ano, antes de o Supremo Tribunal
Federal (STF) descriminalizar a posse e o porte de maconha para uso pessoal,
a BBC News Brasil foi à Colômbia para mostrar como funciona o mercado legal de
cannabis medicinal no país.
Lá,
advogados, produtores rurais e empreendedores contaram como enxergaram esse
novo nicho e mostraram como o Brasil - que, na avaliação de especialistas,
ainda engatinha nesse mercado - já se tornou o maior destino das exportações de
produtos colombianos à base de cannabis medicinal.
Do
crime à indústria
A
história da cannabis na Colômbia é antiga. Entre os anos 1970 e 1980, foi
marcada por um período conhecido como "Bonanza
marimbera".
Milhares
de hectares de maconha foram plantados no país, especialmente na faixa
litorânea do país no Caribe. Marimba é um termo local para
maconha.
Nesta
época, traficantes cultivavam a planta para vendê-la nos mercados
internacionais, como os Estados Unidos.
Regiões
como Santa Marta receberam um grande fluxo de dólares oriundos dessa atividade.
Mas
com o passar dos anos, a economia da maconha foi perdendo força por conta do
auge da cocaína e pelas plantações caseiras de maconha nos Estados Unidos.
Em
meio a esse contexto, começam a surgir os primeiros movimentos para legalizar a
cannabis na Colômbia.
"O
avanço legislativo começa com a 'Bonanza Marimbera', nos anos 1970",
explica à BBC News Brasil o empreendedor Ivan Bravo, dono de um clube de
usuários e entusiastas da cannabis na capital, Bogotá.
"É
neste momento que a Colômbia se torna uma exportadora de maconha para o resto
do mundo e isso cria conflito para as autoridades. É aí que começam as
primeiras regulamentações sobre o consumo e cultivo de maconha."
Em
1986, o Congresso colombiano aprovou uma lei permitindo a produção, fabricação,
exportação, importação, distribuição, comércio, uso e posse de substâncias
psicoativas, incluindo a maconha, desde que para fins científicos ou
medicinais.
Essa
lei marcou o primeiro passo em direção à regulamentação do uso da cannabis no
país.
Em
1994, a Corte Constitucional da Colômbia despenalizou o consumo e a posse de
uma quantidade para uso pessoal de maconha e outras drogas.
Atualmente,
o limite permitido é de até 20 gramas de maconha, 5 gramas de haxixe (resina de
maconha) e 1 grama de cocaína.
Mais
recentemente, a Justiça colombiana tem permitido quantidades um pouco acima de
20 gramas, desde que fique claro que se trata de uso pessoal. Essa margem é
chamada de "dose de aprovisionamento".
Em
2015, o governo regulamentou a emissão de licenças para a produção e
comercialização da planta com fins medicinais ou terapêuticos.
Aquele
ano foi considerado o pontapé inicial do mercado legal de cannabis no país, com
a estruturação da base legal necessária para sua expansão.
Nos
anos seguintes, foram emitidas as primeiras licenças de cultivo e
comercialização da planta. Começaram, então, a produção em larga escala e a
exportação tanto da planta quanto de produtos à base de cannabis.
De
acordo com o Ministério da Justiça e do Direito da Colômbia, atualmente, já
foram emitidas mais de 3 mil licenças para cultivo e produção de cannabis no
país.
A
estimativa é que haja pelo menos 864 hectares de cannabis legalizada plantada,
e calcula-se uma área potencial de cultivo de pelo menos 57 mil hectares.
Apesar
desses avanços, a produção e o comércio de maconha para fins recreativos
continuam proibidos.
Neste
quesito, o cenário é semelhante ao do Brasil após a decisão do STF do mês
passado: pode-se usar, possuir e até portar determinadas quantidades de
maconha, mas comprar ou vendê-la com o objetivo recreativo não é permitido.
Dos
seguros e batatas à maconha medicinal
Sebastian
Emilio Mateus é um dos rostos da nova indústria colombiana da maconha legal.
Ele e dois irmãos são donos da Cannabis House, uma rede especializada na venda
de produtos medicinais e terapêuticos à base de cannabis.
"Entrei
no mundo da cannabis medicinal em 2016", diz Sebastian.
"Estávamos
começando a escutar os ventos da legalização e começamos a estudar as
oportunidades que estavam acontecendo em outros países. Nossa ideia sempre foi
atuar com cannabis 100% medicinal."
Nas
prateleiras de uma de suas lojas, há loções, pomadas, frascos com extrato de
CBD (um dos princípios ativos da cannabis) e até mesmo lubrificantes íntimos
feitos com a planta.
Um
frasco de 30 ml de óleo de cannabis custa em torno de R$ 144. Uma loção para as
pernas, R$ 118. Um protetor solar, R$ 156.
Atualmente,
a Cannabis House tem 12 pontos de venda em diferentes partes da Colômbia e um
plantio no Departamento de Cundinamarca, onde fica Bogotá, e de onde sai a
matéria-prima para a maior parte dos produtos vendidos pela empresa.
O
negócio também atua como uma espécie de farmácia de manipulação, em que
pacientes solicitam a formulação de produtos específicos à base de cannabis
mediante prescrição médica.
Sebastian
afirma que, há alguns anos, dificilmente imaginaria que ele e sua família
estariam ganhando a vida com cannabis medicinal. Para ele, foi uma mudança
profissional significativa.
"Eu
estudei direito, trabalhei numa companhia de seguros e depois em uma factoring antes
de entrar no mundo da cannabis", conta Sebastian à BBC News Brasil.
Luísa
Fernanda Gaitán também teve de mudar de rumos para entrar no mercado canábico
colombiano.
Há
pelo menos duas gerações, sua família vive do setor agropecuário, com
propriedades espalhadas pelo país onde prosperavam culturas agrícolas mais
convencionais.
"Quando
chegaram para a gente com a proposta de plantar maconha, nós dissemos:
'Definitivamente, não'", lembra Gaitán à BBC News Brasil em seu escritório
localizado a pouco mais de 80 km de Bogotá.
"Começamos
então a falar com especialistas, químicos, pesquisadores e eles nos explicaram
onde é que o mercado desta planta está focado."
A
empresa da família, a Purple Dragon, é dedicada à plantação e exportação de
cannabis medicinal.
Enquanto
o país começava a viver o que hoje ficou conhecida como "boom da
cannabis", Gaitán e sua família decidiram que era hora promover algumas
mudanças nas terras da família.
"Deixamos
de lado o cultivo de milho, batata, arroz e mamão e começamos a nos
especializar em maconha", conta a empresária.
Impressões
digitais, máscaras e foco internacional
Fernanda
levou a BBC News Brasil para conhecer as estufas onde são plantados os pés de
maconha da empresa.
O
local fica em um vale no Departamento de Cundinamarca repleto de pequenas
plantações de diferentes culturas à beira da estrada.
As
estufas foram instaladas para serem ambientes praticamente vedados ao ambiente
externo. Parte da água utilizada no local é captada da chuva e tratada em
tanques próprios.
A
ideia é evitar a propagação de fungos ou pragas que possam comprometer a
qualidade das flores de cannabis produzidas ali.
Para
entrar nas estufas, é preciso usar roupas especiais esterilizadas, toucas e
máscaras. O controle de entrada e saída é feito por meio de um leitor de
impressão digital.
As
mudas sequer são plantadas no solo para evitar o risco de contaminação. Os pés
ficam em vasos plásticos durante todo o ciclo produtivo.
"Quando
você tem um cultivo para exportação e para a produção medicinal, é preciso
estar consciente e capacitado desde o primeiro momento de que se trata de um
produto farmacêutico", explica Fernanda.
Na
Purple Dragon, a maior parte da produção é de flores de cannabis. Depois de
colhidas, elas são selecionadas e inspecionadas antes de serem embaladas.
O
grosso da plantação é exportado para a Suíça e para a Alemanha, onde as flores
serão vendidas em farmácias e estabelecimentos médicos para o tratamento de
doenças como reumatismos, dores crônicas, complicações derivadas do câncer,
ansiedade, entre outras.
Outra
parte é usada para a extração do CBD, um dos princípios ativos da cannabis
medicinal. Com esse óleo, a empresa fabrica produtos como protetores solares e
hidratantes.
Fernanda
explica que os governo colombiano estabeleceu um rígido sistema de controle
sobre as plantações licenciadas para evitar que elas possam vir a abastecer o
mercado ilegal da planta.
De
tempos em tempos, ela diz, a empresa passa por inspeções em que os inventários
das plantações são checados.
Estigma
mesmo após avanços
Apesar
de a maconha vir passando por um processo de regulamentação e despenalização ao
longo dos últimos 40 anos na Colômbia, o tema também divide o espectro político
local, assim como no Brasil.
O
atual presidente, Gustavo Petro, que é de esquerda, já se manifestou de forma
favorável à ampliação do uso da maconha no país.
"A
cannabis é um mercado lícito no mundo. Tem múltiplas possibilidades, não apenas
a recreativa. É quase como se fosse o cacau", disse Petro em março deste
ano.
"Uma
parte não quer passar do ilícito para o lícito e resolver um dos nossos
problemas. Estamos perdendo uma oportunidade porque em uma grande parte dos
Estados Unidos, poderíamos estar aproveitando mercados e gerando mercado lícito
na Colômbia."
A
divisão política em torno do tema ficou ainda mais evidente no final do ano
passado, quando uma proposta para regulamentar o uso recreativo da maconha foi
derrotada no Senado colombiano.
Parte
da esquerda apoiava o projeto, enquanto líderes da direita como os
ex-presidentes Alvaro Uribe e Ivan Duque comemoraram a não aprovação da medida.
"Parabéns
aos 45 senadores que com seus votos impediram a legalização do consumo
recreativo da maconha", disse Uribe em seu perfil no X (antigo Twitter).
Os
empresários Sebastian Emilio Mateus, Ivan Bravo e Fernanda Gaitán relatam que
tiveram que enfrentar algum preconceito ao entrarem no mercado de cannabis.
Fernanda
diz que ela e sua família eram "declaradamente ignorantes" sobre a
cannabis medicinal.
"Pensávamos
que a cannabis era algo que só funcionava no nível recreativo, ligada a
desordem, sujeira. Não sabíamos que funcionava como algo para doenças como
câncer e epilepsia", conta ela.
Ivan
acredita que há muito preconceito em relação à maconha na Colômbia porque o
país "ainda é bastante atrasado".
"A
verdade é que é muito normal beber álcool com seus pais desde os 14 anos de
idade, mas quando você fala sobre maconha, é como se estivesse falando do
demônio", diz ele.
Ivan
acredita que foi este estigma que fez com que, em 2023, uma proposta que visava
a legalização do consumo recreativo da maconha fosse barrada pelo Senado
colombiano.
Um
dos argumentos usados por políticos contrários à proposta é semelhante ao usado
no Brasil: o de que a maconha seria uma porta de entrada para outras drogas.
Para
o vice-ministro de política criminal e justiça restaurativa da Colômbia, Camilo
Umana, os dados de pesquisas recentes desmentiram esta tese.
"Os
estudos que temos mostram que não há um padrão segundo o qual as pessoas mudam
de substância, passando de algumas menos pesadas para outras mais
pesadas", diz Umana à BBC News Brasil.
O
vice-ministro citou ainda uma pesquisa realizada pelo governo em que, segundo
ele, foi constatada uma redução no consumo de cannabis entre os anos de 2013 e
2019.
Umana,
no entanto, reconhece que o fato de o país permitir a dose para uso pessoal,
mas impedir a compra e a venda da maconha para fins recreativos gera riscos.
"Temos
insistido no ministério de que devemos avançar em direção a marcos regulatórios
neste assunto, mas entendemos — e isso é evidente — que esta posição pode gerar
uma distorção", afirma o vice-ministro.
Brasil:
destino da maconha colombiana
Enquanto
a Colômbia desponta como um dos principais produtores de cannabis legal no
mundo, o Brasil aparece como o principal destino das exportações de produtos do
país derivados da planta.
Os
dados, obtidos pela BBC News Brasil, foram fornecidos pela ProColombia, uma
agência de promoção de exportações do país.
Segundo
a ProColombia, o país exportou US$ 10,8 milhões (R$ 60,5 milhões) em produtos à
base de cannabis em 2023. Desse total, US$ 3,4 milhões (R$ 19 milhões), o
equivalente a 32% do total, foi para o Brasil.
O
segundo maior mercado consumidor dos produtos colombianos é a Austrália (25%),
seguido da Alemanha (14%).
Esse
volume e o tamanho potencial do mercado brasileiro fez com que autoridades do
governo colombiano enviassem, neste ano, uma proposta para que o Brasil
facilitasse a entrada de produtos colombianos derivados de cannabis.
Segundo
o presidente da Associação Brasileira das Indústrias de Cannabis (Abicann),
Thiago Hermano, a presença de produtos colombianos no Brasil é resultado de uma
política governamental.
"O
presidente da Colômbia, Gustavo Petro, diz planejar aumentar a exportação de
produtos à base de cannabis para o Brasil, estimando que os produtos
colombianos têm potencial para alcançar (exportações de) US$ 123 milhões (R$
689 milhões), até 2025", disse Hermano à BBC News Brasil.
Segundo
ele, empreendedores colombianos já estão chegando ao Brasil de olho em
oportunidades.
"Empresas
colombianas têm se instalado no Brasil, a fim de conhecer mais o mercado de
saúde nacional e tendo presença em investimentos em fornecimento de produtos de
Cannabis e na atual científica, mesmo que ainda muito limitada aqui no
país", afirmou.
Para
o empresário Sebastian Emilio Mateus, o Brasil deveria avançar em relação ao
desenvolvimento de produtos à base de cannabis.
"Sem
dúvida, o caminho que o Brasil deve traçar é baseado em pesquisa sobre a planta
e sobre o comportamento social [...], o ser humano adotou esta planta e não se
pode caminhar para trás. É uma mudança social que não vai parar", afirmou.
Luisa
Fernanda Gaitán diz pensar de forma semelhante.
"Os
países, antes de aprovar ou não o cultivo de uma substância, têm que investir
em pesquisa para saber se essa indústria é conveniente ou não", defende a
empresária.
"O
que não se pode é satanizar uma planta pelo seu consumo recreacional quando ela
tem tantos benefícios medicinais."
(Fonte: BBC)
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