As investigações sobre o pior acidente aéreo no Brasil desde 2007 ainda estão em fase inicial e, segundo o Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos (Cenipa), "tudo ainda é prematuro".
Logo
após a queda do avião em Vinhedo (SP) e diante de especulações nas redes
sociais, especialistas em segurança de voo apontaram que a formação de gelo
sobre as asas pode ser uma das hipóteses a ser investigada como causa
do acidente.
Segundo
analistas, essa é uma ocorrência rara, especialmente porque a maioria das
aeronaves possui sistemas eficazes para evitar que o acúmulo de água congelada
afete a capacidade de sustentação.
A
aeronáutica informou que as caixas-pretas da aeronave - que guardam os
registros do voo - já estão em Brasília para averiguação.
Mas,
num cenário mais amplo da aviação global, o que ainda tem causado os acidentes
com vítimas fatais no mundo?
A Boeing, uma das maiores fabricantes de aeronaves, publica regularmente um relatório global a respeito dos acidentes envolvendo aviões a jato comerciais - o que não é o caso especifico do avião da Voepass, um ATR turboélice.
Os
jatos, em geral, são os aviões que transportam mais passageiros e fazem as
viagens de distâncias mais longas.
Entre
2013 e 2022, segundo a Boeing, o maior número de mortes aconteceu em acidentes
causados por "perda de controle em voo" (757) , "falha ou mau
funcionamento do sistema, não relacionado ao motor" (158), "saídas da
pista na decolagem ou pouso" (134) e por problemas "relacionados ao
combustível" (71).
"No
caso da perda de controle, por exemplo, pode acontecer por uma infinidade de
razões, seja humana ou não. A gente tem que entender que é multifatorial e há
múltiplas possibilidades", diz Maurício Pontes, investigador de acidentes
aeronáuticos e assessor executivo da Associação Brasileira de Pilotos da
Aviação Civil (Abrapac).
Pontes
usa como exemplo um recente incidente
com um voo da Latam entre Sydney (Austrália) e Santiago (Chile), que
deixou 13 feridos após a aeronave ter uma perda brusca de altitude.
Investigações
mostraram que o esbarrão de uma aeromoça num botão mal posicionado no assento
do piloto pode ter acionado os controles que lançaram o nariz do avião para
baixo. Ou seja, uma falha "humana", mas também dos equipamentos da
aeronave.
A
Flight Safety Foundation, organização sem fins lucrativos com foco em
discussões sobre segurança de acidentes aéreos, também mantém um banco de
dados a respeito de quedas e incidentes com aeronaves no mundo.
Entre
os acidentes envolvendo vítimas fatais em aeronaves comerciais e jatos
corporativos, as causas mais comuns entre 2017 e 2023 foram "perda de
controle em voo", o "voo controlado contra o terreno" (quando
uma aeronave em condições de voo e sob controle total do piloto é conduzida
para a terra ou água), "causas desconhecidas" e “saída da pista, na
decolagem ou pouso”.
Mas
o que leva a esses problemas mais comuns?
Justamente
por serem investigações complexas e "multifatoriais", é difícil se
chegar uma conclusão, segundo especialistas consultados pela BBC News Brasil.
Mas
o banco de dados online Plane
Crash Info, que, apesar de não ser oficial, reúne algumas estatísticas
sobre acidentes aéreos no mundo, aponta a falha humana como responsável por 49%
dos seus registros entre 1950 e 2019. Em seguida, vem a falha mecânica (23%) e
fatores climáticos (10%).
Fator
humano
Em artigo
no site The Conversation, Simon Ashley Bennett, diretor da Unidade de
Segurança e Proteção Civil da Universidade de Leicester, no Reino Unido, aponta
que "à medida que as aeronaves se tornaram mais confiáveis, e modernas, a
proporção de acidentes causados por erro do piloto aumentou".
Atenção
para a palavra "proporção", já que o número de acidentes de uma forma
geral tem diminuído.
"As
aeronaves são máquinas complexas que requerem muita gestão. Como os pilotos
interagem ativamente com a aeronave em cada fase de um voo, há inúmeras
oportunidades para algo dar errado", escreveu Bennett no artigo.
Para
Celso Faria de Souza, perito criminal especializado em acidentes aeronáuticos e
diretor da Associação Brasileira de Segurança de Voo (Abravoo), este é um
assunto muito delicado, já que os dados não são muito bem recebidos entre os
profissionais da aviação.
Um estudo
norueguês, por exemplo, estimou que entre 70 e 80% dos acidentes são
causados por erro humano (não só dos pilotos) - desses, 4,7% estariam
relacionados a problemas de saúde dos profissionais.
"A
fadiga dos profissionais, por exemplo, só começou a ser estudada há pouco
tempo. Até 3 anos atrás, ninguém dava atenção para a saúde mental", diz
Faria de Souza.
No
entanto, em entrevista à BBC News Brasil, Bennett afirmou que muitos dos erros
humanos são induzidos por outros fatores.
"É
importante notar que o erro humano pode ser induzido por fatores além do
controle do piloto, como um instrumento colocado em um local mal projetado, uma
escala de trabalho cansativa demais ou um procedimento de companhia aérea mal
planejado", afirmou Bennett.
Segundo
ele, muitos pilotos levam a culpa porque "é fácil e conveniente para a
companhia aérea, autoridades e fabricantes culparem os pilotos".
"É
ainda mais fácil se eles estiverem mortos. Culpar os pilotos — muitas vezes
vítimas da falta de cuidado de outras coisas — livra o fabricante, a companhia
aérea e as autoridades da responsabilização. É um mundo desagradável e
egoísta."
Falhas
humanas também podem estar relacionadas a profissionais como controladores de
tráfego aéreo, reabastecedores ou engenheiros de manutenção.
"O
ser humano está em todas as etapas da operação, e o ser humano é exatamente o
elemento mais complexo da operação", avalia Maurício Pontes, da Abrapac.
"O
fator humano ele envolve fadiga, as condições de saúde mental em que pessoas se
encontram naquele momento. O ser humano é muito eficaz, eficiente e
insubstituível, mas, como as máquinas , também falhamos", completa.
Em
seu artigo, Bennett ressalta ainda que o piloto também é "a última linha
de defesa quando as coisas dão errado".
Ou
seja, são os humanos que muitas vezes conseguem reverter problemas na máquina.
Um dos casos mais emblemáticos é a do capitão Chesley
Sullenberger, que conduzia o voo 1549 da US Airways, e conseguiu aterrissar
no rio Hudson, em Nova York, em 2009, após ambos motores serem atingidos por
pássaros.
Todos
sobreviveram, e a história virou até o filme Sully - O Herói do Rio
Hudson, com Tom Hanks.
Bennett
disse à BBC News Brasil que justamente pelo fato dos pilotos serem a última
linha de defesa, é perigoso depender demais da tecnologia.
"A
tecnologia pode reduzir a carga de trabalho, mas cria novos problemas para os
pilotos. Por exemplo, quanto mais automatizado um convés de voo se torna, mais
difícil é para os pilotos identificarem rapidamente uma falha quando algo dá
errado", explica.
O
especialista afirma que os pilotos ainda precisam monitorar os sistemas,
porque, "apesar das alegações dos fabricantes e das companhias aéreas, a
tecnologia não é 100% confiável".
"A
aviação é tecnófila — como o resto da sociedade. A suposição inicial em uma
sociedade tecnófila como a nossa é que toda tecnologia é benéfica. Mas nem
sempre é. Ela às vezes funciona mal. Ela tem bugs (erros)."
Fator
mecânico
As
falhas nos equipamentos da aeronave também podem representar parte importante
dos acidentes.
"Embora
os motores sejam significativamente mais confiáveis hoje do que há meio século,
eles ainda ocasionalmente sofrem falhas ", escreveu Simon Ashley Bennett.
Para
Celso Farias de Souza, da Abravoo, os problemas mecânicos hoje são "quase
zero". "O que você tem são problemas eletrônicos, de software",
avalia.
Maurício
Pontes, da Abrapac, ressalta que a tendência é que esse tipo de problema vá
diminuindo cada vez mais.
"Não
existe atividade mais regulada que as indústrias aeroespacial e nuclear. A
tendencia é ter cada vez mais segurança em relação ao fator material, até pelas
tecnologias que estão sendo desenvolvidas. Mas acontece", diz.
As
medidas de mitigação desse problema também são mais "simples",
segundo Pontes.
"O
fator humano tem muita psicologia envolvida, que é algo complexo. Já o fator
material pode muitas vezes estar relacionado à engenharia de projetos ou ao
envelhecimento de equipamentos, e aprendemos com isso. O que nos conforta
minimamente é que as tragédias não são em vão. Sempre vamos ter um relatório no
fim com recomendações", completa.
Às
vezes, novas tecnologias também introduzem novos tipos de falha.
O
professor Simon Ashley Bennett dá como exemplo o avião comercial Comet,
construído na década de 1950 pela indústria aeronáutica inglesa Havilland. A
aeronave era a primeira propulsionada por motores a jato.
Após
dois acidentes fatais em 1954, todos os modelos da empresa foram proibidos de
voar.
Recentemente,
a Boeing vem enfrentando problemas a respeito do modelo 737 Max,
após acidentes fatais e o caso de um avião da Alaska Airlines, que perdeu parte
da fuselagem em pleno voo.
Fator clima
O
mau tempo representava em 2015 cerca de 10% das perdas de aeronaves, segundo o
artigo de Simon Ashley Bennett . Apesar de uma abundância de auxílios
eletrônicos, como navegação por satélite e dados meteorológicos, as aeronaves
ainda enfrentam problemas em tempestades, neve e neblina.
Celso
Faria de Souza, da Abravoo, reforça que a questão climática entra como um
desafio para a indústria na "combinação de fatores" que pode
contribuir com acidentes.
Ele
cita o exemplo do voo AF447, da
Air France, que caiu na viagem entre Rio e Paris, em que os sensores de
velocidade (as sondas Pitot) congelaram.
"O
avião teria atravessado a condição severa de tempo, porém perdeu o Pitot e
desorientou. Foi um problema no equipamento, mas o fator climático contribuiu
para o acidente", diz Souza.
Para
Maurício Pontes, é preciso ainda tocar "num outro assunto preocupante, que
é a mudança climática".
"Temos
muita segurança, os pilotos hoje contam com equipamentos cada vez mais
sofisticados de antecipação de situações climáticas adversas, que permite
desvios, que se alterne a outro aeropoto. Mas essa é uma preocupação, porque se
torna mais imprevisível."
Recentemente, cientistas da
Universidade de Reading, no Reino Unido, estudaram a chamada turbulência de
ar claro (quando a temperatura potencial aumenta com a altura), que é mais
difícil para os pilotos evitarem.
Eles
descobriram que a turbulência severa aumentou 55% entre 1979 e 2020 em uma rota
tipicamente movimentada do Atlântico Norte.
Os
pesquisadores atribuem o aumento às mudanças na velocidade do vento em grandes
altitudes ao ar mais quente resultante das emissões de carbono.
"Após
uma década de pesquisa mostrando que a mudança climática aumentará a
turbulência de ar claro no futuro, agora temos evidências sugerindo que o
aumento já começou", disse o professor Paul Williams, cientista
atmosférico da Universidade de Reading, coautor do estudo.
"Devemos
investir em sistemas aprimorados de previsão e detecção de turbulência para
evitar que o ar mais agitado se traduza em voos mais irregulares nas próximas
décadas."
Vale
salientar, porém, que as turbulências, apesar ter deixado feridos em episódios
recentes, não estão relacionadas necessariamente a acidentes fatais,
Segundo
Maurício Pontes, porém, é "importante dizer que aviação está sempre atenta
e se antecipa a algum tipo de desafio no futuro."
(Fonte:
BBC)
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