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Ele
percebeu o “limite” quando se viu de manhã até a noite nas mesas de bares
e sentindo a saúde se deteriorar. Somaram-se aí os sentimentos da esposa e dos
filhos. O aposentado procurou ajuda de profissionais de saúde e está há dois
anos longe do vício. A vida sem álcool ganhou outro sabor.
“Hoje
eu me sinto muito melhor”, afirma Bernardino. Nesta quinta (20), Dia Nacional
de Combate às Drogas e ao Alcoolismo, ele tem na rotina a
participação em grupo terapêutico, em que se identifica com outras
histórias. “Os profissionais de saúde do Caps fizeram com que eu me envolvesse
com o tratamento”.
A bebida, segundo Bernardino, ganhou importância quando se viu sem poder trabalhar como jardineiro, profissão da maior parte da vida. Uma cirurgia na coluna fez com que se aposentasse aos 45 anos. “Isso me empurrou para o vício. Eu fiz bem em pedir ajuda”.
Papel
do SUS
No
Brasil, o tratamento contra a dependência em álcool é especializado,
gratuito e universal (nas unidades básicas e nos Caps). Questionado pela Agência
Brasil, o Ministério da Saúde informou que os cuidados para
pacientes com alcoolismo e outras drogas no Sistema Único de Saúde (SUS) são
realizados pela Rede de Atenção Psicossocial (Raps), que totalizam 6.397
unidades em todo o país, entre elas 3.019 centros de Atenção Psicossocial
(Caps).
“Essa
estrutura faz do Brasil um dos países com a maior rede de saúde mental do
mundo”, acrescentou o ministério. Os serviços incluem intervenções
psicossociais para cada caso, que podem ser realizadas de forma individual ou
coletiva, o que inclui o acolhimento da família.
O
ministério disse que os Caps têm acesso livre, não precisam de agendamento
prévio para realizar o primeiro atendimento e têm equipes multiprofissionais.
Essas unidades atendem pessoas de todas as faixas etárias. Existem unidades com
essa característica que funcionam 24 horas e contam com camas para
acolhimento noturno dessas pessoas por até 15 dias no mês.
Serviço
é gratuito, mas tem desafios
Além
de a rede de serviços ser gratuita e do acesso a toda a
população, o que é fundamental para combater o problema do alcoolismo, há
desafios no dia a dia dessa política pública, afirma a socióloga Mariana
Thibes. Ela, que é coordenadora do Centro de Informações sobre Saúde e Álcool
(Cisa), organização da sociedade civil de interesse público e referência em
pesquisas sobre o tema, entende, porém, que “muitos desafios” permanecem nos
trabalhos de prevenção às doenças causadas pelo etilismo.
Para
a pesquisadora, seriam importantes, nessa luta dos profissionais de saúde,
maior qualificação para identificação precoce do problema nas abordagens de
rotina, ampliação da disponibilidade de tratamento medicamentoso especializado
na maioria dos municípios e aumento do número de profissionais de saúde
especializados, como psiquiatras e psicólogos nos Caps-AD (tratamento contra a
dependência em álcool e drogas).
“Além
disso, podemos destacar as barreiras de acesso por conta do estigma que a
doença ainda tem, o que retarda a busca por ajuda”, alertou Mariana em
entrevista à Agência Brasil. Ela entende que, dessa forma, embora o
Brasil tenha avançado nos principais pilares do combate ao alcoolismo nas
últimas décadas, ainda resta muito a ser feito.
Efeitos
da pandemia
A
pandemia de covid-19 (que, como medida sanitária, fez com que as pessoas
precisassem se isolar em casa) representou um desafio para quem sofre com o
alcoolismo. “Muitas pessoas passaram a beber mais para enfrentar as
dificuldades do momento”, lembra a socióloga.
Ela
explica que pacientes ficaram sem tratamento por causa da superlotação dos
serviços de saúde em vista das prioridades com a pandemia. “Houve aumento no
número de mortes por alcoolismo, não só no Brasil, mas no mundo. Alguns estudos
vêm mostrando que esses problemas ainda não foram totalmente revertidos.
Esforços em políticas públicas precisarão ser feitos para isso
acontecer”.
Racismo
e machismo
Um
dos dados que a pesquisadora cita é que 72% das mulheres vítimas de
transtornos causados por dependência ao álcool são negras. Mariana Thibes
explica que esse número não está relacionado ao maior consumo abusivo por essa
população. São mais vítimas porque há desigualdade no acesso a serviços de
saúde de qualidade.
“Muitas
pessoas negras residem em áreas com infraestrutura deficiente, escassez de
recursos médicos e falta de profissionais capacitados, o que limita o acesso a
cuidados de saúde adequados”, afirmou.
Outro
elemento trazido pela coordenadora do Cisa é que a discriminação racial no
sistema de saúde pode resultar em diagnósticos tardios, tratamentos inadequados
e menor qualidade no atendimento, prejudicando a saúde da população negra.
“O
estresse crônico, decorrente da discriminação racial, pode acarretar problemas
de saúde mental, como ansiedade, depressão, traumas psicológicos e abuso de
substâncias, incluindo o álcool”. Além disso, no caso das mulheres, os impactos
são maiores porque convivem com a discriminação de gênero.
Publicidade
abusiva
A legislação
brasileira (Lei 9.294), hoje, impõe restrições à publicidade de
bebidas alcoólicas. Entre as limitações, estão a permissão de propaganda apenas
entre as 21h e as 6h, e a obrigatoriedade de advertências sobre os
malefícios e riscos do consumo. No entanto, conforme explica Mariana Thibes, os
canais de influenciadores e as redes sociais no Brasil não são regulamentados.
O
alerta da pesquisadora é comprovado por pesquisa de 2021 feita pela publicação
especializada Journal of Studies on Alcohol and Drugs (dos
EUA), que mostrou que 98% das publicações sobre álcool no Tik Tok retratavam a
substância de forma positiva.
Sinais
e sintomas
A
psiquiatra Olivia Pozzolo avalia que a prevenção das doenças
relacionadas ao consumo de álcool é papel do Estado, mas as famílias também
podem desempenhar apoio fundamental. “As famílias são essenciais, tanto na
identificação precoce de um comportamento de risco, no suporte emocional,
quanto no encorajamento à busca de tratamento adequado e
na manutenção também do tratamento”, afirma a especialista, que
também é pesquisadora do Cisa.
Ela
explica que a dependência do álcool pode ser reconhecida por sinais e sintomas
característicos, como a incapacidade de reduzir ou controlar o consumo, o
uso contínuo, apesar de ter consequências negativas na vida de alguém, e o
aumento da tolerância.
“Algumas
formas de auxiliar são oferecer um ambiente de escuta sem julgamento,
encorajar a pessoa a buscar tratamento especializado, participar de grupos de
apoio para a família, onde é possível compartilhar experiências e
estratégias e evitar situações que podem incentivar o consumo de
álcool”. A recuperação é, segundo avalia, um processo contínuo e o suporte pode
fazer diferença para quem enfrenta essa condição.
Alcoólicos
anônimos
Além
do suporte do Estado e da família, um serviço consolidado no Brasil (e também
no mundo) partiu da sociedade organizada, a Irmandade de Alcoólicos Anônimos.
Em 2025, essa iniciativa completa 90 anos de história e está presente em 180
países. No Brasil, há atualmente 3.802 grupos que realizam 8.665 reuniões todas
as semanas. Ao todo, 93 grupos realizam 449 reuniões a distância. Segundo
a presidente da Junta de Serviços Gerais de Alcoólicos Anônimos do Brasil
(Junaab), Lívia Pires Guimarães, para que a pessoa possa ingressar na
atividade o único requisito é o desejo de parar de beber.
“Apenas
isso. Havendo esse desejo, ela já está apta para ser membro. Não há restrição
de idade ou de gênero, classe social e nenhuma outra questão
complementar”, afirmou. Ela explica que a irmandade tem característica
comunitária. Todo o serviço de AA é feito por alcoólicos que fazem parte do
programa de recuperação. “Tudo sugerido, nada é imposto. Aqueles que querem,
que se identificam, se voluntariam para poder servir. Não há profissionais
contratados na Irmandade de Alcoólicos Anônimos”.
No
AA, há pessoas não alcoólicas na estrutura de serviços administrativos. “A
irmandade não é secreta, mas guarda o anonimato dos seus membros”. Ela afirma
que se trata de um programa que transcende o tratamento do alcoolismo. “Uma vez
ingressando na Irmandade, a pessoa não será diagnosticada ou rotulada”. O
serviço pode ser acessado
pela internet e linhas de whatsapp.
Uma
pessoa que vive no Rio de Janeiro, identificada nesta reportagem como Ana,
recorda que começou a consumir álcool aos 12 anos de idade. “Eu lidava
frequentemente com apagões, comportamentos desmoralizantes, por vezes
agressivos. A minha interação com o álcool me levou realmente ao fundo do
poço”, recorda.
Ana*
lembra ainda que, aos 17 anos, a relação dela com o álcool passou a ser
intensa e crônica. “Aos 18 anos, comecei a depender de estimulantes na
tentativa de passar no vestibular, o que se transformou num ciclo de estudos e
uso abusivo de substâncias”.
Na
faculdade, as pessoas não consumiam álcool. Assim, aos 19 anos, ingressou no
AA. “Salvou minha vida. Consegui me graduar e conheci meu marido na
irmandade. Celebramos um casamento lindo, sem envolvimento do álcool”. O casal
faz projetos de longo prazo e vive um dia de cada vez, com a consciência de
evitar o primeiro gole.
Um
homem, também integrante do AA e carioca, diz que tem consciência de que a
regularidade nas reuniões fez com que experimentasse nova vida. “Esse espaço é
fundamental para a minha permanência sem beber e para a minha vida continuar
funcionando como funciona hoje. Eu ter restituído emprego, família, saúde,
sanidade, propósitos objetivos, sonhos, enfim, tudo me foi devolvido”.
(Ag, Brasil)
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