O
ápice do número de casos nas duas últimas décadas ocorreu em 2016, um ano antes
da reforma trabalhista, que registrou 2.756.251 processos recebidos. Após 2017,
houve queda sistemática nesse número, chegando a menos de 1,4 milhão de
processos em 2020, ano em que a Justiça do Trabalho recebeu menos processos na
série histórica.
Segundo
estudo do Tribunal Superior do Trabalho (TST), a maioria dos casos
diz respeito à reclamação da multa de 40% por demissão sem justa causa e o
pagamento de horas extras após desligamento.
Ana Amélia Camargos, advogada trabalhista e professora doutora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), destaca que a queda pode ser reflexo de um dispositivo que não existia no âmbito da Justiça do Trabalho e foi introduzido no contexto da última reforma trabalhista, a “sucumbência”. “A sucumbência é quando a parte que perde paga o advogado da outra parte”, explica. Com isso, segue a professora, “se você faz cinco pedidos, e perde três, você vai pagar sucumbência, que é o advogado da outra parte. E é o juiz que vai decidir sobre o que diz a lei, que é entre 5% e 15%, conforme a complexidade do processo. Isso, no primeiro momento, foi inibidor das ações que a gente chama de ‘aventuras’ judiciais”, avalia Camargos.
No
entanto, a trajetória de queda se inverteu, passando a subir nos últimos quatro
anos. A maior parte dos analistas do mercado atribui o aumento a uma decisão
do Supremo Tribunal Federal (STF), em 2021, que declarou a
inconstitucionalidade de dispositivos da reforma trabalhista (Lei 13.467/2017)
que obrigavam o beneficiário da Justiça gratuita a pagar pela perícia e pelos
chamados honorários advocatícios da parte ganhadora. Ou seja, a sucubência. Na
mesma direção, o plenário do Tribunal Superior do Trabalho (TST) admitiu, em
2024, por maioria, que a simples declaração de pobreza tem caráter
comprobatório de insuficiência de recursos para obter acesso à Justiça
gratuita.
Para
o advogado e professor de direito trabalhista, Danilo Uler, não há dúvida que o
reconhecimento da gratuidade impacta na percepção de risco dos trabalhadores
que se sentem lesados na hora de avaliar se entra ou não com um processo contra
a empresa. Mas atribuir esse aumento única e exclusivamente ao acesso gratuito
à Justiça é uma escolha narrativa.
“O mainstream econômico
emplacou nos jornais um recado por STF. A mídia está dando um recado e dizendo
que quando o STF julgou a ADI 5766, que analisou alguns dispositivos da reforma
trabalhista e julgou uma parte deles como inconstitucional, ou seja, uma parte
que realmente limitava o acesso à Justiça, uma parte da reforma trabalhista que
inseriu na CLT um dispositivo que a pessoa, mesmo com Justiça gratuita, iria
pagar honorários periciais, por exemplo. O STF nada mais fez, naquele momento,
do que algo razoável”, avalia o professor.
Na
mesma linha, Camargos considera que as decisões foram acertadas e corrigiram um
efeito nocivo da reforma trabalhista. “Eu acho que realmente é um direito
constitucional a reclamação, o direito de acionar o Judiciário para requerer um
direito seu. Então essa sucumbência para todos realmente impedia que um
empregado, em situação financeira que a gente chama de hipossuficiente,
entrasse na Justiça, o que era inconstitucional, porque você cria um
empecilho”.
Rotatividade
e precarização
Uler
alerta que outras decisões do próprio STF poderiam ajudar a explicar melhor, na
medida que a própria corte atuou pela desregulamentação das leis trabalhistas
que, por sua vez, permitiu a ampliação da chamada “pejotização” das relações de trabalho, ou seja,
quando o trabalhador deixa de ter vínculo via CLT e passa a prestar serviços
como PJ (pessoa jurídica).
“O
próprio STF é parte do aumento de litigiosidade, mas não porque ele defendeu os
trabalhadores, porque permitiu que as empresas praticassem essa precarização.
Quando ele acena que é possível contratar qualquer pessoa como PJ, aí você vai
ter uma escola contratando um professor como PJ. E se de dez professores que
são contratados como como PJ, dois entrarem com ação, eles vão entrar nessa
estatística”, destaca. “Eu não vejo outra maneira de reduzir o número de ações
trabalhistas senão levando a sério a regulação do mercado de trabalho no
Brasil”, propõe o professor.
O
assessor jurídico da Central Única dos Trabalhadores (CUT) e advogado
trabalhista José Eymard Loguercio afirma que alta litigiosidade na Justiça do
Trabalho brasileira se explica pela grande rotatividade no mercado. Segundo um
estudo realizado pela consultoria Robert Half, em 2023, a taxa de demissões no
Brasil foi de 56%, a mais alta de todo o mundo.
“Se
você tem a cada dois anos 40 milhões de trabalhadores despedidos, uma parte
deles pode ser ter sido reabsorvido no mercado de trabalho, mas o que a gente
tem visto ultimamente é que muitos não são reabsorvidos e vão para ou trabalhos
mais precários ou para a informalidade. Então esse é um dado que precisa ser
examinado. Existem mais de 2 milhões de novas ações ingressadas na Justiça do
Trabalho, mas para um país que desempregou 20 milhões de pessoas em um ano.
Então eu acho que isso tem que ser levado em consideração”, considera.
Enfraquecimento
do papel dos sindicatos
Outro
aspecto que contribui para o aumento de processos trabalhistas, segundo os
especialistas, é o enfraquecimento dos sindicados, outro efeito da reforma
trabalhista, que acabou com o imposto sindical obrigatório, afetando o financiamento das
entidades de classe. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), na
última década, os sindicatos perderam 6,2 milhões de trabalhadores
sindicalizados.
“Se
fosse dado o devido reconhecimento dos sindicatos, o fortalecimento dos
sindicatos, onde o trabalhador cobrasse do seu sindicato uma atitude, uma ação
de proteger uma ação regular, da mesma forma dos sindicatos patronais, você
poderia deixar para uma negociação coletiva autêntica, que representa os
anseios dos trabalhadores e as questões do empregador”, destaca Ana Amélia
Camargos. “Você fala que o negociado vai prevalecer ao legislado, mas
enfraquece a parte mais fraca na relação? Aí não vai dar certo”.
A
avaliação é compartilhada por Uler. “O sindicato enfraquecido, que não
fiscaliza, não impede, que não é preventivo, vai demandar um remédio da Justiça
do Trabalho. Então a própria reforma trabalhista leva a essa situação de alto
índice de litigiosidade”, afirma o professor.
Com
décadas de atuação na Justiça do Trabalho e de relação com os sindicatos,
Loguercio afirma que, além de acabar com mecanismos de financiamento das
entidades de classe, a reforma trabalhista eliminou a obrigatoriedade dos
processos de homologação de demissões. Antes, quando o trabalhador era
demitido, o acordo de desligamento deveria passar pela supervisão do sindicato
da categoria ou do Ministério do Trabalho, o que evitava a judicialização.
“Esse
momento da homologação era muito importante porque ali se identificavam
situações e muitas delas eram corrigidas. Então se voltava ao RH, refazia o
cálculo, a pessoa era atendida, verificava se tinha mais alguma questão e ali
se promovia, digamos assim, de certo modo, uma forma de correção, ou do
cálculo, ou então de parcelas que não foram pagas durante a contratualidade. Na
reforma, a homologação deixou de ser obrigatória”, destaca Loguercio.
Para
Camargos, toda e qualquer ação que vise reduzir o número de processos na
Justiça do Trabalho deve passar pelo fortalecimento das entidades que
representam legitimamente o interesse dos trabalhadores. “Quando o ministro
Barroso fala: nós temos que diminuir o número de processos na Justiça do
Trabalho. Eu concordo. Como é que você faz isso? Não é pondo restrições à parte
de entrar com processo e sim fortalecendo os sindicatos. Fortalecendo e dando
respaldo para a comissão de conciliação prévia que existiu no passado e acabou.
Eu acho que passa por aí”, conclui a professora de direito trabalhista.
Por
que a Justiça do Trabalho é tão atacada?
Comumente,
a Justiça do Trabalho é criticada por supostamente pesar a mão sobre os
empresários, em benefício dos trabalhadores. Ana Amélia Camargos lembra que a
origem do direito do trabalho está fundada na defesa de condições dignas para
os empregados, contra uma visão arcaica da relação trabalhista.
“Os
direitos trabalhistas surgiram essencialmente para evitar que o trabalhador
seja tratado como mercadoria. É essa a questão do direito do trabalho. Então,
se você vê o histórico do surgimento do direito trabalho, foi justamente contra
as péssimas condições de trabalho na Revolução Industrial. Jornada de trabalho
16 horas, crianças trabalhando, mulheres grávidas sem uma proteção à saúde, o
trabalhador que se acidentava, ficava doente e simplesmente não recebia… Quer
dizer, um mundo realmente muito precário, com uma desigualdade enorme entre o
empregador e o empregado”.
Por
sua vez, Uler destaca que a atividade da JT está intrinsecamente ligada ao modo
de produção e reprodução da vida. “A Justiça do Trabalho vai ser sempre
necessária enquanto persistir esse conflito capital trabalho”, ressalta.
(Brasil
de Fato)
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