Além
disso, pouco mais de 6% tinham instâncias específicas para conduzir, coordenar
e monitorar as ações de saúde voltadas para a população negra. Ou seja, mais de
93% dos territórios municipais brasileiros não
implementaram a totalidade do potencial da política. Por outro lado, a
população negra ainda é a mais acometida por diversas doenças e condições, um
reflexo da desigualdade histórica no acesso. A mortalidade materna, por
exemplo, tem uma taxa duas vezes superior entre as mulheres negras.
Doenças
como aids, tuberculose e hepatite também acometem mais as pessoas pretas e
pardas. Estudos indicam ainda que, em comparação com as mulheres brancas, as
mulheres negras apresentaram 44% mais chances de incidência do câncer de colo
do útero. O risco de morte é 27% maior.
Em
entrevista ao podcast Repórter SUS, o pesquisador da Fundação
Oswaldo Cruz (Fiocruz) de Brasília Andrey Lemos aborda aspectos fundamentais
para a garantia de um SUS antirracista.
Especialista
em saúde pública e militante pelos direitos da população negra, ele enfatiza
que os piores indicadores e as maiores iniquidades em saúde no país são
étnico-raciais. Segundo Lemos, considerar
os recortes de raça e de gênero é essencial para solucionar os
problemas do setor.
“É
importante lembrarmos de qual país e de qual sociedade estamos falando. É uma
sociedade que teve a sua economia consolidada a partir de um sistema racial que
explora existências negras e indígenas em nosso país. Ou seja, o capitalismo
foi fundamentado em um processo de acumulação desse capital para alguns grupos
minoritários, com base na exploração desses grupos que são majoritários na
nossa sociedade, mas que nunca tiveram o poder sobre os meios de produção, a
oportunidade de ocupar espaços de decisão e, consequentemente seguem sendo
subalternizados, inclusive pelas políticas públicas.”
Na
conversa, o pesquisador fala sobre a urgência de que profissionais de áreas
como saúde, educação e segurança pública compreendam os impactos da
desigualdade estrutural e que seja reconhecida a importância do debate sobre
esse tema para a busca de soluções. Andrey Lemos pontua que o Brasil já
tem diretrizes
e legislações que levam em conta a diversidade presente nos
territórios e que entendem que ela deve ser considerada na formulação das
políticas. No entanto, a prática ainda deixa a desejar.
“Ocorre
que, ainda hoje, nós temos uma educação e uma formação profissional baseadas na
identidade de um sujeito universal. Quando pensamos nesse sujeito universal –
presente nas capas de revista, nos holofotes dos jornais, que tem os maiores
seguidores nas redes sociais e ocupam os espaços de poder, destaque de
representatividade positiva na nossa sociedade – as pessoas negras e indígenas,
por exemplo, ficam sub-representadas e não são lembradas.”
Frente
a esse cenário, o especialista afirma que um dos passos práticos essenciais
para a construção de um SUS
antirracista é a formação profissional de quem atua no sistema e
atende à população. Segundo ele, é preciso que as equipes à frente do SUS
tenham a compreensão de que o racismo aumenta a pobreza e, consequentemente, as
dificuldades no acesso.
“Esse
aumento da pobreza impede, muitas vezes, as pessoas de terem informação sobre
uma boa alimentação, estar presente nas consultas, conseguir fazer o seu
diagnóstico e de ter uma boa adesão aos tratamentos. Se não considerarmos que
esses aspectos são decisivos, vamos continuar nadando contra a maré e nunca
vamos conseguir alcançar melhores números no enfrentamento a determinadas
doenças ou condições crônicas presentes na nossa sociedade.”
Outros
olhares para acabar com a negligência
Andrey
Lemos também fala sobre a importância de atuar para transformar os “olhares
públicos” sobre as pessoas negras e enfatiza a necessidade de combater
preconceitos e julgamentos. Práticas racistas diminuem a possibilidade de esses
grupos permanecerem nos espaços de saúde e construírem vínculos de confiança.
Ele
lembra ainda que é preciso dar atenção a doenças e condições comumente
negligenciadas e que atingem
mais a população negra, além de considerar as particularidades nos serviços
de urgência e emergência. O sistema precisa colocar na conta que condições como
a hipertensão, por exemplo, são mais prevalentes na população negra, o que pode
demandar uma avaliação de urgência diferenciada.
A
abordagem interseccional também é encarada como necessidade máxima. É preciso
ir além dos aspectos biológicos e analisar determinantes sociais de saúde, como
condições de vida, moradia e trabalho, acesso à água e saneamento, tempo de
deslocamento, segurança alimentar e contexto familiar.
“A
falta de um olhar humanizado sobre esses corpos e sobre essas vivências,
considerando os aspectos sociais, culturais e econômicos nos quais estão
inseridos, faz com que, na maioria das vezes, essas pessoas não sejam bem
tratadas, não tenham um bom acompanhamento e, muitas vezes, inclusive,
abandonem o tratamento”, alerta o pesquisador.
Para
isso, é preciso ter foco na multifatoriedade das garantias da saúde como
direito humano. Elas não podem estar apenas na conta do SUS e precisam ter
presença também nas políticas de educação, cultura, justiça e combate à
violência.
“O
problema da violência policial e da política antidrogas é também um problema
que precisa ser considerado de saúde pública, porque isso vem dilacerando
famílias. Como é que fica a saúde mental dessas pessoas que saem de casa para
ir à escola, ir ao trabalho, mas não sabem se vão voltar vivas, se seus filhos
vão voltar vivos? A justiça e o Estado precisam dar atenção maior a esse
aspecto, porque essas pessoas também merecem dignidade na relação com o Estado.
O Estado não pode ter uma presença somente de violência, de vigilância ou de
intervenção. Ele também precisa ser de cuidado, prevenção, promoção e proteção
dessas vidas”, conclui.
O Repórter SUS é uma parceria entre o Brasil de Fato e a Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Novos programas são lançados toda semana.
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