O dia 17 de maio de 2024 terminou com sentimentos antagônicos dos dois lados do Oceano Atlântico. Em Londres, o brasileiro Maurício* comemorou. Naquele dia, uma juíza britânica, rejeitou o pedido de extradição feito pelo governo brasileiro contra ele.
Em seu país natal, Maurício foi condenado a 14 anos de prisão pelo estupro de sua filha, em 2013. À época, ela era uma criança. Seu nome real foi omitido aqui para evitar a identificação de uma vítima de crime sexual conforme o Estatuto da Criança e do Adolescente.
Ele negou o crime
e, antes de cumprir sua pena, deixou o Brasil em direção ao Reino Unido. Em 2023, foi preso pelas
autoridades britânicas e aguardou, por um ano, o processo de extradição.
Após a rejeição do
pedido, Maurício foi posto em liberdade. Ele vive até hoje no Reino Unido,
embora seu nome ainda esteja na lista de difusão vermelha da Interpol, um
banco de dados de procurados pela Justiça de 196 países.
Mas, se para ele e
sua defesa o sentimento era de alívio, em uma sala do Ministério da Justiça e
Segurança Pública (MJSP), em Brasília, foi o oposto. A decisão da Justiça
britânica pôs fim a uma busca que durou quase dez anos e envolveu diferentes
níveis da burocracia brasileira.
Quem não
acompanhava o caso de perto se perguntou: por que a Justiça britânica preferiu
manter em seu território um homem condenado por um crime tão cruel?
A resposta é uma
velha conhecida das autoridades brasileiras.
Sua defesa alegou
que o sistema carcerário brasileiro, conhecido
nacional e internacionalmente por superlotação, condições degradantes e
massacres, não teria condições mínimas exigidas pela Convenção Europeia de
Direitos Humanos, da qual o Reino Unido é signatário.
Um levantamento do
MJSP a pedido da BBC News Brasil aponta que o Reino Unido já negou quatro
pedidos de extradição feitos pelas autoridades brasileiras sob essa mesma
alegação desde 2017.
Em outros 13 casos,
o Judiciário brasileiro desistiu do pedido de extradição. Em alguns deles, a
desistência foi uma estratégia para evitar que se consolidasse no Judiciário
britânico a ideia de que todo pedido de extradição brasileiro deve ser negado
por conta das condições dos presídios no país.
Apesar de o número
parecer pequeno, autoridades brasileiras ouvidas pela BBC News Brasil dizem que
a postura britânica é significativa, porque contrasta com a de outras nações
europeias que atendem os pedidos de extradição do Brasil apesar de também serem
signatários da mesma convenção de direitos humanos.
Elas também dizem
temer que a recusa do Reino Unido incentive criminosos brasileiros a buscarem
refúgio no país europeu.
"Isso causa um
prejuízo para o Brasil porque temos uma pessoa condenada que permanece
impune", diz Rodrigo Sagastume, diretor do Departamento de Recuperação de
Ativos e Cooperação Jurídica Internacional (DRCI) do MJSP.
"Mas é,
também, um prejuízo para o Reino Unido, porque envia a sinalização de que pode
ser um lugar seguro para qualquer foragido internacional."
A BBC News Brasil
enviou questionamentos ao Home Office(o ministério do Interior britânico),
órgão do governo responsável por assuntos como combate ao crime e imigração,
mas não obteve respostas.
Crime sem castigo
Os autos do caso de
Maurício, aos quais a BBC News Brasil teve acesso, ilustram a situação de
outros brasileiros que escaparam da Justiça brasileira buscando refúgio no
Reino Unido.
Segundo a denúncia
feita pelo Ministério Público, os abusos cometidos por ele contra sua filha
aconteceram após sua separação da mãe da criança. Entre as práticas elencadas
pelos promotores estavam beijos na boca da menina e a prática de sexo oral.
Após familiares
denunciarem o caso à polícia, ele foi indiciado, processado e condenado, em
2013, a 14 anos de prisão em regime fechado. Sua defesa tentou anular o
julgamento sob o argumento de que o depoimento da menina havia sido tomado na
companhia da mãe, com quem Maurício tinha desentendimentos.
A defesa também
argumentou que o exame de corpo de delito feito na criança nunca chegou a ser
apresentado. Mesmo assim, a Justiça manteve a condenação em segunda instância,
em julgamento ocorrido em 2016.
Apesar disso,
Maurício não ficou no Brasil para cumprir a pena. Antes disso, deixou o país e
foi para o Reino Unido. Por conta disso, seu nome foi incluído na lista da
Interpol.
Em 2023, ele foi
preso no Reino Unido, e sua detenção informada às autoridades brasileiras.
Começou, então, uma batalha jurídica para que fosse extraditado.
Os documentos do
seu processo britânico, aos quais a BBC News Brasil também teve acesso, mostram
que a defesa alegou diversas vezes que o Brasil não teria condições de
abrigá-lo sem desrespeitar a convenção europeia.
Uma das principais
exigências era a de que ele deveria ter acesso a uma cela com pelo menos três
metros quadrados privativos.
Inicialmente, as
autoridades brasileiras indicaram que, caso fosse devolvido ao Brasil, Maurício
cumpriria pena em um presídio na cidade onde o crime havia ocorrido.
Depois disso,
porém, um juiz brasileiro informou a Justiça britânica que a instalação não
estaria mais disponível. Um novo local foi designado, localizado na capital do
Estado. Em janeiro de 2024, no entanto, o mesmo juiz informou que a instalação
não estava mais disponível e admitiu a precariedade do sistema penitenciário do
Brasil.
"O cenário de
superlotação da penitenciária brasileira torna muito difícil indicar um ritmo
de custódia que esteja de acordo com as condições estabelecidas no artigo 3º da
CEDH, apesar do tempo e esforço despendidos por este tribunal ao longo do
último ano", diz um trecho da carta enviada pelo magistrado brasileiro.
Com base nisso, a
juíza britânica responsável pelo caso decidiu liberar Maurício.
A BBC News Brasil
entrou em contato com a defesa de Maurício no Reino Unido, mas não houve
resposta. O brasileiro também não foi encontrado para comentar sobre o caso.
Tiro nas costas e 30 anos impune
Outro caso semelhante
foi o do ex-cabo da Polícia Militar de Minas Gerais Vilmair Venâncio Soares.
Segundo denúncia feita pelo Ministério Público mineiro, Soares estava de folga
quando o dono de um bar em Ipatinga pediu que ele lidasse com um cliente que
vinha lhe causando problemas.
Ainda de acordo com
a denúncia, Soares e o cliente se desentenderam e trocaram agressões. O
militar, então, correu atrás do rapaz e atirou em suas costas, matando-o no
local.
Soares ficou preso
por cinco meses até ser solto para responder ao processo em liberdade. Em 2002,
ele foi condenado a 12 anos de prisão em regime fechado. A condenação transitou
em julgado em junho daquele ano.
Apesar disso, a
Justiça brasileira não conseguiu prendê-lo novamente.
As autoridades
brasileiras deram início a uma busca internacional por Soares, que foi
localizado no Reino Unido em 2022. A pedido da Justiça brasileira, a polícia
inglesa o prendeu em julho daquele ano, 20 anos depois de sua condenação.
Tudo parecia
caminhar para um processo comum de extradição, mas o desfecho foi diferente do
esperado pelos técnicos do MJSP.
O caso se arrastou
por mais de dois anos. Ao longo do processo, as autoridades brasileiras
indicaram presídios onde ele poderia ficar no Brasil caso fosse extraditado. A
defesa, porém, questionou as condições das prisões apresentadas alegando que
elas não atenderiam requisitos mínimos de direitos humanos.
Em janeiro de 2024,
o governo brasileiro enviou uma carta para a Justiça britânica admitindo que o
Estado brasileiro não poderia garantir que Soares teria direito a uma cela com,
no mínimo, três metros quadrados privativos. Assim, como no caso de Maurício,
Soares foi, então, posto em liberdade.
Sua advogada,
Amanda Bostock, disse à reportagem que não poderia falar sobre o caso sem o
consentimento de seu cliente e que não tinha condições de obter essa
autorização no momento.
Posição incomum
Para Rodrigo
Sagastume, que comanda o departamento do Ministério da Justiça responsável pelo
trâmite dos processos de extradição recebidos e feitos pelo Brasil, a rejeição
de pedidos pelo Reino Unido com base nas condições dos presídios brasileiros é
vista como "incomum".
A BBC News Brasil
identificou outros dois casos de rejeição de extradição com base nas condições
dos presídios brasileiros na Itália, mas um deles, envolvendo o ex-diretor do
Banco do Brasil Henrique Pizzolato, foi revertido em 2015.
"É bem incomum
termos negativas com base nessa justificativa. Vários países que são
signatários desta convenção recebem nossos pedidos de extradição e concedem sem
nenhum problema", diz Sagastume.
"Nunca houve
alegações contrárias de Portugal ou França. Tem sido algo muito específico do
judiciário britânico."
Na avaliação de
Sagastume, a postura britânica seria resultado de três fatores.
O primeiro seria
que os brasileiros detidos no Reino Unido têm boas condições financeiras e
foram capazes de contratar advogados hábeis o suficiente para estabelecer uma
tese convincente junto ao Judiciário britânico.
O segundo fator
seria o fato de a Justiça do Reino Unido ser baseada no chamado Common Law
(Direito Comum, em tradução livre do inglês). Esse sistema jurídico se baseia
fortemente em precedentes judiciais e menos em códigos ou leis.
Assim, juízes e
juízas se sentiriam mais propensos a decidir contra a extradição para o Brasil
baseando-se em decisões anteriores em que seus colegas avaliaram negativamente
as condições dos presídios brasileiros.
Isso, segundo
Sagastume, estaria por trás de algumas das desistências em processos de
extradição feitos pelo Brasil junto ao Reino Unido.
"Quando nós
vemos um caso no qual o Judiciário britânico dá sinais de que vai decidir negativamente,
é melhor desistir ou parar o processo do que ir até o final e ter uma decisão
contrária", explica.
A terceira é
explicação, segundo Sagastume, seria o fato de o governo brasileiro ainda não
ter adotado uma posição firme em relação ao governo britânico, cobrando
reciprocidade na avaliação dos casos de extradição entre os dois países.
"O Brasil
ainda não colocou, em termos reais, um questionamento sobre a reciprocidade
entre os dois países porque os pedidos de extradição apresentados pelo Reino
Unido são processados aqui, analisados e, muitas vezes, concedidos sem qualquer
obstáculo", diz.
Sagastume diz
reconhecer que a situação dos presídios no Brasil é ruim, mas segundo ele, não
deve ser considerado inteiramente precário.
"Entendo que o
sistema penitenciário brasileiro tem graves problemas que precisam ser
abordados, e acho que isso é uma tarefa de casa para o Brasil", diz.
"Mas esse
argumento, como se diz, joga o bebê junto com a água do banho e coloca todo o
sistema carcerário brasileiro em uma situação de colapso completa, o que também
não é a verdade."
Procurado, o
Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT), disse que as
decisões do Reino Unido são um reflexo da complexidade do assunto.
O MNPCT é um órgão
independente vinculado ao governo federal que é responsável pelo monitoramento
das condições de presídios e estabelecimentos de internação em todo o país.
"As rejeições
de pedidos de extradição refletem um entrelaçamento complexo entre legislação,
direitos humanos e políticas externas. Demonstram, de uma certa forma, o grau
de compromisso daquele país de origem da pessoa presa com as obrigações
internacionais e seus compromissos internos com a justiça", diz a nota
enviada à BBC News Brasil.
O órgão disse ainda
que o sistema penitenciário nacional abriga aproximadamente 800 mil pessoas,
mas teria uma capacidade inferior a 400 mil e que as prisões brasileiras têm um
antigo histórico de violações de direitos humanos.
"São comuns
práticas e rotinas de violência institucional, com espancamentos, uso ilegal e
abusivo de armamentos menos letais (como balas de borracha, spray de pimenta e
bombas de luz e som), xingamentos, revistas vexatórias com desnudamento,
obrigação de se manter por muitas horas em posição de estresse e outras formas
tortura", diz o MNPCT.
Ainda de acordo com
o órgão, "o Brasil ainda tem um longo caminho a percorrer para efetivar as
diretrizes de direitos humanos em seu sistema prisional, apesar de ter assinado
tratados internacionais importantes nessa área".
Extradições no foco
Processos de
extradição envolvendo o Brasil vieram à tona nos últimos dias depois que a
deputada federal licenciada Carla Zambelli (PL-SP) anunciou que
viajaria para a Itália para evitar ser presa e deportada ao Brasil por ter
cidadania italiana uma vez que, segundo a parlamentar, a Itália não
extraditaria seus cidadãos.
Especialistas
ouvidos pela BBC News Brasil, no entanto, argumentam que a Itália extradita,
sim, pessoas com cidadania italiana, como ocorreu com o ex-diretor do Banco do
Brasil Henrique Pizzolato, condenado no caso do mensalão.
Ela foi condenada a dez anos de prisão pelo Supremo Tribunal Federal (STF) por
supostamente ter ajudado um hacker a invadir o sistema de mandados judiciais do
Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
Ela, no entanto,
alega inocência e diz ser perseguida política por seus posicionamentos
contrários à atuação do Judiciário brasileiro.
No sábado (7/6), o
ministro do STF, Alexandre de Moraes, determinou que o governo federal dê
início aos trâmites para a extradição da parlamentar. Não há informações, no
entanto, sobre se sua defesa alegará as condições dos presídios brasileiros
para justificar sua permanência no país europeu.
O caso Pizzolatto,
no entanto, ilustra, segundo especialistas brasileiros, que a Itália pode
extraditar cidadãos do país, inclusive nos casos em que a defesa tenta usar
como argumento as condições dos presídios brasileiros.
No episódio do
ex-diretor, sua defesa chegou a obter uma decisão negando a extradição ao
argumentar que os presídios brasileiros não teriam condições de abrigá-lo sem
violações aos direitos humanos.
A equipe de
procuradores da República que cuidava do caso na época, no entanto, apresentou
uma relação com dois presídios, um no Distrito Federal e outro em Santa
Catarina, onde ele poderia cumprir sua pena dentro dos requerimentos da justiça
italiana.
Em 2015, o
Judiciário do país acatou o pedido das autoridades brasileiras e extraditou
Pizzolato. Ele cumpriu sua pena em uma penitenciária em Brasília.
Em 2017, o STF
concedeu liberdade condicional ao ex-diretor do Banco do Brasil, quando ele
deixou, então, a prisão. Em 2020, com base em um indulto natalino concedido em
2017 pelo ex-presidente Michel Temer (MDB), o STF declarou a pena de Pizzolato
extinta.
(Fonte: BBC)
Nenhum comentário:
Postar um comentário