Cento e um ano depois, o cenário nas relações
bilaterais entre os Estados Unidos e o Brasil parece ter mudado radical e
rapidamente. Especialmente nos últimos dias. Na quarta-feira (9/7), após uma
série de ameaças, o presidente norte-americano, Donald Trump, anunciou que aplicaria tarifas de 50% sobre qualquer produto brasileiro
exportado aos Estados Unidos.
Mais que isso, ele condicionou as tarifas, em
parte, ao processo judicial no qual o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) é réu, num caso em
que ele é acusado de liderar uma tentativa de golpe de Estado. Ele nega seu
envolvimento no caso.
"Este julgamento não deveria estar
acontecendo. É uma caça às bruxas que deveria acabar IMEDIATAMENTE", diz
um trecho da carta divulgada por Trump como anúncio das tarifas.
Imediatamente, porém, soaram os sinais de alerta do
Palácio do Planalto. Integrantes do governo interpretaram o episódio como um
ataque frontal à soberania do país e, em alguma medida, como uma tentativa de
interferência no processo eleitoral de 2026.
Isso porque o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) se
apresenta como candidato à reeleição e Trump defendeu, em postagens em redes
sociais, que Bolsonaro deve ser submetido ao "julgamento" do povo.
Em uma nota divulgada por Lula na quarta-feira, o
presidente disse que o país não aceitaria qualquer tipo de tutela.
"O Brasil é um país soberano com instituições
independentes que não aceitará ser tutelado por ninguém".
Em entrevista concedida ao Jornal Nacional, da TV
Globo, na quinta-feira, Lula voltou a criticar a postura de Trump.
"É inaceitável que o presidente Trump mande
uma carta pelo site dele e comece dizendo que é preciso acabar com a caça às
bruxas. Isso é inadmissível", disse.
Na sexta-feira (11/7), Trump falou publicamente
sobre o caso e disse que, no momento, não pretende conversar com Lula.
"Talvez, em algum momento, eu falarei com ele.
Agora, não. Eles estão tratando o presidente Bolsonaro muito injustamente. Ele
é um bom homem, sabe? [...] Ele também é muito honesto e eu conheço os honestos
e os desonestos", disse o norte-americano.
Em meio a essa troca pública de críticas e diante
da possibilidade de um tarifaço sem precedentes na história brasileira, a BBC
News Brasil procurou especialistas em relações internacionais com uma pergunta:
este é o pior momento das relações entre Brasil e Estados Unidos?
Para os especialistas ouvidos pela reportagem, a
resposta é inequívoca.
"Criou-se, realmente, uma agressão
injustificada do ponto de vista político e econômico. Eu não conheço nenhum
outro episódio tão grave nas relações entre o Brasil e Estados Unidos em dois
séculos de existência dessas relações", diz à BBC News Brasil o
ex-ministro da Fazenda e ex-embaixador do Brasil em Washington, Rubens Ricupero.
"Sem dúvida nenhuma, posso dizer que esse é o
pior momento", diz à BBC News Brasil o ex-secretário de Assuntos
Estratégicos da Presidência da República entre 2016 e 2018 e consultor
internacional do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri), Hussein
Kalout.
Na avaliação deles, a atual crise supera outros
momentos de turbulência como a revelação de que os Estados Unidos espionaram a ex-presidente Dilma Rousseff (PT)
e até mesmo o apoio dado pelos norte-americanos ao golpe de 1964.
Ainda de acordo com os especialistas, o Brasil se
encontra em uma situação delicada porque, ao vincular as tarifas ao julgamento
de Jair Bolsonaro, o governo Trump não teria deixado margem de negociação para
o governo brasileiro.
Na avaliação deles, a atual crise pode deixar
cicatrizes longevas no relacionamento entre os dois países e vai demandar enormes
esforços diplomáticos da parte brasileira para tentar minimizar o impacto das
tarifas prometidas.
'Intimidação e coerção'
Brasil e Estados Unidos são, ao mesmo tempo, as
duas maiores economias e democracias do hemisfério americano. O relacionamento
bilateral dos dois países completou 200 anos em 2024 e foi celebrado por Lula e
pelo então presidente Joe Biden.
O professor de Relações Internacionais da Fundação
Getúlio Vargas (FGV) de São Paulo, Guilherme Casarões, diz à BBC News Brasil
que a proximidade entre os dois países ficou maior a partir da proclamação da
República no Brasil, em 1889.
"Até então, o Brasil voltava suas atenções
para Londres, capital do então império britânico. Com a proclamação da
República, o eixo de atenção brasileiro se volta para Washington", disse o
professor.
Casarões explica que o Brasil se inspirou em uma
série de instituições norte-americanas durante os primeiros anos da República e
que, desde então, essa relação foi se aprofundando tanto política quanto
comercialmente.
"Havia ali um interesse de tornar o Brasil
quase uma imagem espelhada dos Estados Unidos ao sul do Equador. Essa era uma
discussão efetiva na formação do nosso período republicano, e os Estados Unidos
assumiram muito rapidamente o lugar de primeira potência como primeiro parceiro
comercial do Brasil", conta Casarões.
Os Estados Unidos foram, até 2009, o principal
parceiro comercial do Brasil, quando o país perdeu o lugar para a China. Atualmente, o país é o segundo
principal destino das exportações brasileiras. No ano passado, os dois países
comercializaram US$ 80 bilhões em produtos.
Ao longo de dois séculos, dizem os especialistas,
houve momentos de tensão nesse relacionamento, mas nada mais grave do que a
atual crise.
"Eu não conheço nenhum outro episódio tão
grave nas relações entre o Brasil e Estados Unidos em dois séculos de história
e desde do início desse relacionamento", diz o ex-embaixador Rubens
Ricupero.
O ex-embaixador é autor de livros sobre as relações
entre Brasil e Estados Unidos. Neles, Ricupero descreve o vínculo entre os dois
países como uma história marcada por momentos de aproximação e distanciamento.
Nenhum, na sua avaliação, como o que existe agora.
"O que aconteceu foi uma tentativa aberta de
interferência num assunto da soberania brasileira, tomando partido num problema
político, inclusive atacando instituições brasileiras como o Supremo Tribunal
Federal", diz o embaixador.
Na avaliação dele, até então, o pior momento das
relações entre os dois países havia sido o apoio dado pelos Estados Unidos ao
golpe militar de 1964, que levou o Brasil a uma ditadura que durou 21 anos.
Hussein Kalout faz uma avaliação semelhante sobre o
atual momento do relacionamento entre Brasil e Estados Unidos.
"Antes disso (anúncio de Trump), a relação
estava fria em função de serem dois governos que têm perspectivas muito
diferentes sobre diversos assuntos e sobre o mundo", afirma Kalout.
Agora, no entanto, esse esfriamento se transformou
em outra coisa.
"Agora, a relação está em seu ponto mais
baixo. E isso acontece em função da conduta um pouco intimidatória e coercitiva
que o presidente Trump tem adotado em relação ao Brasil", diz Kalout.
Guilherme Casarões segue uma linha semelhante.
"Pensando na relação bilateral, este é o pior
momento. O que houve foi uma agressão frontal, aberta e gratuita ao Brasil, com
demonstrado interesse de violação da soberania nacional", afirma o
professor.
Crises anteriores
Os especialistas ouvidos pela BBC News Brasil dizem
que as relações entre Brasil e Estados Unidos já tiveram outros momentos de
tensão no passado.
Para os especialistas ouvidos pela BBC News Brasil,
os piores momentos da história recente do relacionamento entre Brasil e Estados
Unidos haviam sido:
o apoio norte-americano ao golpe
militar que aconteceu em 1964;
a pressão feita pelo governo de Jimmy Carter contra a ditadura por seu
programa nuclear e pelas denúncias de tortura a dissidentes, no final dos anos
1970;
e a revelação de que os Estados Unidos
espionavam oficiais do governo brasileiro, inclusive a então presidente Dilma
Rousseff (PT), durante o governo do então presidente Barack Obama.
"Em 1962, durante o governo de John Kennedy,
quando o João Goulart mostrou dificuldade para limitar o papel da esquerda na
coalizão do seu governo, os Estados Unidos se afastaram definitivamente do
governo brasileiro e passaram a apoiar o processo que levaria ao golpe de
1964", diz o professor de Relações Internacionais da Fundação Getúlio
Vargas em São Paulo (FGV-SP), Matias Spektor.
Para Ricupero, o apoio norte-americano ao golpe
militar havia sido, até agora, o pior momento das relações entre os dois
países.
"O golpe de 1964 tinha sido o momento mais
grave. O golpe não foi realizado pelos norte-americanos, mas foi muito
estimulado por eles. E logo após o golpe, houve reconhecimento do governo
(militar) e apoio maciço. Isso nos levou a uma ditadura de 20 anos", diz
Ricupero.
Documentos oficiais e historiadores apontam que, a
partir de 1962, com a renúncia de Jânio Quadros e a conturbada posse de João
Goulart, os Estados Unidos passaram a ver o Brasil como um risco, à medida em
que Goulart era tido como um político simpático à esquerda influenciada pela
antiga União Soviética.
Esse material aponta que os norte-americanos teriam
incentivado movimentos a favor da deposição de Goulart e chegaram planejar o
envio de uma frota de embarcações militares para apoiar o golpe de 1964.
A operação, no entanto, foi cancelada após os
norte-americanos detectarem que não haveria resistência significativa à
deposição de Goulart. O episódio ficou conhecido como "Operação Brother
Sam".
Spektor afirma que o cenário que desencadeou no
golpe de 1964, na realidade, havia começado em 1962.
Spektor e Casarões avaliam que as relações entre
Brasil e Estados Unidos sofreram outro solavanco no final da década de 1970,
quando Jimmy Carter venceu as eleições nos Estados Unidos.
Carter, do partido democrata, era um crítico aos
abusos de direitos humanos ocorridos em ditaduras latino-americanas. Sua
posição contrariava a linha dura do governo brasileiro.
Relatórios sobre a situação dos direitos humanos no
Brasil foram divulgados pelo Congresso dos Estados Unidos, criando
constrangimentos ao regime brasileiro.
Além disso, Carter tentou impor freios ao programa nuclear brasileiro, uma das
prioridades da ditadura.
O democrata enviou seu vice-presidente, Walter
Mondale, à Alemanha Ocidental para tentar convencer os alemães a abrirem mão do
acordo nuclear com o Brasil e o movimento foi mal recebido pelo Brasil.
"A relação degringolou muito rapidamente.
Ficou tão ruim que o Brasil decidiu, unilateralmente, denunciar um acordo
militar importante que o Brasil tinha à época com os Estados Unidos",
disse Spektor.
O terceiro momento mais crítico, segundo os
especialistas, foi em 2013, quando documentos sigilosos de inteligência dos
Estados Unidos foram publicados pelo Wikileaks e revelaram que os Estados
Unidos haviam grampeado o telefone da então presidente Dilma Rousseff (PT).
Os telefones haviam sido grampeados pela Agência de
Segurança Nacional (NSA, na sigla em inglês), do governo norte-americano.
"(O episódio) acabou deflagrando uma crise
diplomática importante. Dilma cancelou uma viagem importantíssima que faria aos
Estados Unidos. Demorou mais de dois anos para que as relações fossem
repactuadas, o que aconteceu no fim do governo de Barack Obama", diz
Casarões.
Kalout, no entanto, avalia que mesmo durante o
ápice da crise envolvendo a espionagem norte-americana, houve canais de
comunicação entre os dois países.
"Nos bastidores, o governo Obama acolheu as
reclamações do nosso embaixador em Washington. Houve reuniões de alto nível
entre os dois governos e encontros entre as agências de inteligência. Havia
canais de diálogo", diz Kalout.
Tensão crescente
A crise das tarifas expôs um distanciamento
político evidente entre Trump e Lula. Apesar de comandarem as duas maiores
economias do hemisfério americano, os dois presidentes nunca conversaram
diretamente.
Em 2022, durante as eleições brasileiras, Trump foi
às redes sociais, declarou apoio a Bolsonaro e atacou Lula, chamando-o de
"lunático radical de esquerda".
Em 2024, por outro lado, Lula declarou apoio à
então adversária de Trump nas eleições norte-americanas, Kamala Harris.
"Nós vimos o que foi o presidente Trump no
final do mandato, fazendo aquele ataque contra o Capitólio, uma coisa
impensável de acontecer nos EUA", disse Lula em entrevista a uma TV
francesa.
A carta divulgada por Trump em que anunciou as
tarifas acompanhou o tom das suas últimas manifestações em redes sociais sobre
o Brasil e sobre Bolsonaro.
Em meio a esse distanciamento, o deputado federal
licenciado Eduardo Bolsonaro (PL-SP), se mudou para os Estados Unidos e passou
a fazer campanha para que os Estados Unidos aplicassem algum tipo de sanção ao
Brasil em função nos processos pelos quais seu pai e outros militantes de
direita são investigados.
A expectativa, no entanto, era de que os Estados
Unidos pudessem aplicar uma sanção direcionada ao ministro do STF Alexandre de
Moraes, que conduz o julgamento de Bolsonaro.
No domingo (6/7), no entanto, Trump usou suas redes
sociais para ameaçar com tarifas adicionais os países que se
alinhassem com o que chamou de "agenda antiamericana"
dos Brics.
Naquele dia, o bloco de 11 países, dos quais fazem
parte a China, Rússia, Brasil e Índia, havia dado início à sua cúpula de
líderes, no Rio de Janeiro.
No dia seguinte, Trump foi às redes sociais de
novo, desta vez, para defender Jair Bolsonaro.
"O Brasil está fazendo uma coisa terrível no
tratamento ao ex-presidente Jair Bolsonaro. Eu tenho assistido, assim como o
mundo, como eles não fazem outra coisa senão irem atrás dele, dia após dia,
noite após noite, mês após mês, ano após ano! Ele não é culpado de nada a não
ser por ter lutado pelo povo", disse Trump em seu perfil na rede social
Truth Social.
Em outro trecho da publicação, o presidente
norte-americano classificou a situação de Bolsonaro como uma "caça às
bruxas".
"O grande povo do Brasil não vai tolerar o que
estão fazendo com seu ex-presidente. Estarei assistindo à caça às bruxas de
Jair Bolsonaro, sua família e milhares de seus apoiadores muito de perto. O
único julgamento que deveria estar acontecendo é um julgamento pelos eleitores
do Brasil — chama-se eleição", continuou.
No mesmo dia, pouco depois de finalizar a Cúpula
dos Brics, no Rio de Janeiro, Lula rebateu as declarações de Trump em duas
oportunidades. Na primeira, por meio das redes sociais, ele disse que o Brasil
não aceitaria interferências.
"A defesa da democracia no Brasil é um tema
que compete aos brasileiros. Somos um país soberano. Não aceitamos
interferência ou tutela de quem quer que seja. Possuímos instituições sólidas e
independentes. Ninguém está acima da lei. Sobretudo, os que atentam contra a
liberdade e o estado de direito".
Em outro momento, em uma entrevista coletiva, Lula
disse que Trump não deveria dar "palpite" sobre o Brasil.
"Eu não vou comentar essa coisa do Trump e do
Bolsonaro. Tenho coisa mais importante para comentar do que isso. Este país tem
lei. Este país tem regras e este país tem um dono chamado povo brasileiro.
Portanto, dê palpite na sua vida e não na nossa", disse o presidente.
A situação atingiu o ápice na quarta-feira, quando
Trump divulgou a carta e anunciou as tarifas sobre o Brasil.
E o futuro?
Para todos os especialistas ouvidos pela BBC News
Brasil, o futuro das relações entre Brasil e Estados Unidos é, agora, incerto.
Ricupero ressalta que ao atrelar as tarifas à situação de Bolsonaro, os
norte-americanos deixaram pouca margem de manobra para o Brasil à medida em que
o governo não deveria e nem teria como interferir no julgamento do ex-presidente.
Ele argumenta que, do ponto de vista econômico, as
tarifas não se justificariam porque os Estados Unidos teriam um superávit de
US$ 400 bilhões em produtos e serviços na balança comercial com o Brasil nos
últimos 15 anos.
"Para poder ter uma conversa, só se ela for
colocada em outras bases, sem ameaças e em bases puramente
econômico-comerciais. Tomar partido em favor de uma pessoa não tem fundamental
algum", disse o ex-embaixador.
Matias Spektor diz que, agora, o Brasil deve tentar
manter canais de negociação abertos com os Estados Unidos e insistir em algum
tipo de negociação comercial.
"O desafio, agora, é o governo brasileiro
montar uma resposta às tarifas que permita, de um lado, controlar os danos e,
de outro, tentar manter algum tipo de espírito diplomático de engajamento. É
importante que o Brasil não feche os canais de diálogo totalmente para que seja
possível manter algum tipo de negociação", afirmou.
Guilherme Casarões também defende que o governo
continue tentando encontrar canais de negociação com os norte-americanos. Ele
avalia, no entanto, que diante das incertezas sobre como o opera o governo
Trump e da proximidade das eleições presidenciais de 2026, fique ainda mais difícil
restabelecer boas relações com os Estados Unidos.
"O que se espera é que o Brasil consiga manter
uma relação minimamente administrada para tentar negociar essas tarifas, talvez
postergá-las ou encontrar outro resultado [...] O grande fator de incerteza é
que há eleições no ano que vem. O governo brasileiro pode entender que não há
como conversar com os EUA e que a melhor opção é incensar o nacionalismo dentro
do Brasil", diz Casarões.
Kalout, por sua vez, diz que, caso o Brasil não
consiga reverter a disposição norte-americana de impor tarifas sobre o país,
não haverá outra opção a não ser retaliar.
"O Brasil tem mapeado todas as vulnerabilidades da relação comercial e sabe onde e como retaliar e, tenho certeza, se houver inflexibilidade, o Brasil vai aplicar a lei da reciprocidade. Não há como não aplicar. Do contrário, estaremos submissos a uma extorsão indevida", disse.
(Fonte:
BBC)
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