A pesquisa defende que essas mortes podem ser evitadas por meio de uma combinação de intervenções em nível individual e populacional, e que os dados podem ajudar a formular políticas públicas de prevenção, relacionadas ao consumo de álcool. A psiquiatra Alessandra Dielh, integrante do conselho consultivo da Associação Brasileira de Estudos do Álcool e Outras Drogas, também investigou o tema durante o seu mestrado. Ao entrevistar pessoas internadas após uma tentativa de suicídio, ela identificou que 21% delas ingeriram álcool antes da autoagressão.
Muitas
delas não eram alcoolistas, propriamente ditas, mas o consumo de álcool era
como um disparador para a tentativa. E entre aqueles que realmente têm
dependência, essa associação também foi significativa, complementa.
De
acordo com a diretora da Associação Brasileira de Psiquiatria, Miriam Gorender,
isso demonstra a amplitude dos efeitos danosos do álcool sobre a saúde
mental:
Não
é só a dependência em si, mas o próprio uso agudo do álcool vai agindo ao
longo do tempo, e o que ele corrói não volta. Ele provoca sequelas e um sem
número de complicações, incluindo a alteração do funcionamento cerebral".
"Um
efeito fundamental do álcool é que ele é um depressor do sistema nervoso
central. Se a pessoa tem alguma tendência à depressão e faz uso abusivo do
álcool, aumenta o risco de desencadear uma depressão. Se a pessoa já tiver
depressão, então, ela vai piorar, explica a psiquiatra.
No
entanto, Miriam explica que muitas pessoas são enganadas pelo efeito
estimulante e relaxante inicial do álcool e demoram a perceber os efeitos do
rebote.
Onde buscar
ajuda
Pessoas
que estejam sofrendo com ideações suicidas ou outras emoções desafiadoras ou
que tenham problemas decorrentes do consumo de álcool podem procurar ajuda
nos Centros de Atenção Psicossocial (Caps) e Unidades Básicas de
Saúde.
Em
situações de emergência, também é possível pedir ajuda nas Unidades de Pronto
Atendimento e hospitais, ou acionando o SAMU 192.
Além
disso, o Centro de Valorização da Vida (CVV) oferece apoio emocional
para a prevenção do suicídio, atendendo de forma voluntária e gratuita todas as
pessoas que querem e precisam conversar, sob total sigilo, pelo número 188, e
também pela internet, no site cvv.org.br.
Tratamento e
apoio
Luciana* foi
diagnosticada com TDAH com 9 anos, mas só começou a se tratar na vida adulta.
Até conseguir encontrar uma combinação adequada de medicamentos e terapias,
acostumou-se a recorrer ao álcool para aliviar a cabeça acelerada, a ansiedade
generalizada, os pensamentos obsessivos. Decidiu mudar esse padrão quando
se tornou mãe, há quatros anos, e se viu entrando em alcoolismo significativo.
Ficava
muito pior quando estava bebendo muito, porque, no dia seguinte, a
serotonina cai. Principalmente durante episódios de depressão ou do próprio burnout [esgotamento
provocado pelo trabalho], beber aliviava na hora, mas eu tinha tantas situações
de ansiedade [depois], que a ideação suicida vinha forte. Agora que acertei a
medicação e faço tratamento e terapia para o TDAH, as ideações desapareceram.
Acho que era muito pelo sofrimento do TDAH e das comorbidades, mas a bebida
contribuía bastante. Hoje em dia, estou bem, ela relata.
Já
Gabriela* só entendeu totalmente esse efeito quando decidiu reduzir seu consumo
de álcool. Ela conta que, dos 18 aos 26 anos, bebia muito em festas, bares
e reuniões com amigos, mas achava que a ressaca moral que sentia nos dias
seguintes era resultado das ações que tomava, quando o álcool cortava sua
inibição. Então, começou a se relacionar com uma pessoa que bebia pouco, e
acabou sendo influenciada por ele.
Aí,
eu comecei a pensar: se agora eu estou tendo um pouco mais de controle, bebendo
menos, não tendo comportamento de risco, e mesmo assim eu continuo no outro dia
me sentindo esse lixo, alguma coisa está errada, né?.
O
estranhamento a levou a procurar uma nova psiquiatra, que atualizou o
diagnóstico de Gabriela, de uma depressão combinada com ansiedade, para o
distúrbio bipolar tipo 2. O diagnóstico esclareceu porque ela não conseguia
parar de beber depois de dar o primeiro gole e também porque se
descontrolava quando estava alcoolizada.
Junto
com esse diagnóstico, veio uma decisão radical: Eu entendi que eu teria
que parar de beber. A partir do momento que você tem ciência de que aquilo te
faz mal psicologicamente, fisicamente, financeiramente, moralmente, de todas as
formas, você precisa fazer uma escolha, porque o álcool não é uma necessidade.
Você não precisa beber pra estar vivo.
"Antes,
eu achava que eu precisava beber pra estar feliz, pra estar entre as pessoas
que eu gosto, pra aproveitar a vida. Hoje, eu entendo que eu não preciso do
álcool pra isso.
A
psicóloga Maria Carolina Roseiro, membro do Conselho Federal de Psicologia,
reforça que a onipresença do álcool nas situações de celebração e o contexto
social dificultam escolhas mais saudáveis, como as feitas por Gabriela.
A
gente vive em uma cultura que valoriza muito o álcool, que é muito
permissiva com o álcool, mas, ao mesmo tempo, tem barreiras morais que
dificultam as buscar informação adequada, conversar com os
profissionais de saúde de forma aberta sobre o consumo de álcool e confiar
no profissional da saúde.
Redução de
danos
A
história de Adriana* com o álcool é permeada por essas armadilhas sociais. Ela
conta que começou a beber mais a partir dos 30 anos, especialmente depois de se
mudar para um estado rural em outro país, onde a bebida era a principal diversão".
Adriana passou a viver rodeada de pessoas que também ingeriam grande
quantidade de álcool e "não via outro jeito de socializar a não ser
bebendo.
Em
2012, veio a primeira tentativa de parar de beber, abandonada pouco depois por
pressão dos amigos. Em 2020, após um divórcio e em meio ao isolamento social da
pandemia, o problema se agravou. Eu consumia tranquilamente três garrafas
de vinho por noite, e depois ficava com uma depressão, com um sentimento de
culpa. Eu falava pra mim mesma: 'você bebeu em casa, não fez nada de
errado', mas, mesmo assim, ficava deprimidíssima, uma tristeza infinita.
De
lá pra cá, sua relação com o álcool tem variado da sobriedade total ao consumo
esporádico de um drink ou uma taça de vinho em situações bastante especiais e
planejadas.
Tem
todo um trabalho que eu preciso fazer pra não beber. Eu penso: Eu quero me
sentir assim de novo? O que vai acontecer daqui a oito, dez horas? Eu preciso
disso? Eu quero viver tudo aquilo de novo?, conta Adriana.
Por
causa dessa influência social e cultural, o Conselho Federal de Psicologia
defende a redução de danos no consumo do álcool, afirma a conselheira Maria
Carolina Roseiro.
A
psicóloga explica que a abstinência obrigatória pode afastar dos serviços de
saúde muitas pessoas que não reconhecem ter problemas decorrentes do consumo de
álcool, ou que não se sentem capazes de parar de beber.
É
uma intervenção pensando o contexto de vida dessa pessoa, para promover
qualidade de vida, numa ideia mais ampliada de saúde. Então, a redução de danos
vai observar como estão as relações familiares, que lugar essa substância ocupa
na dinâmica social dessa pessoa, como é a história de vida dela, o que tem no
contexto social e cultura que agrava a situação, para a gente conseguir
intervir melhor, tanto em quem vai interromper o uso quanto em quem
não quer interromper o uso
Controle do
consumo de álcool
No
último relatório global publicado sobre álcool, a Organização Mundial da
Saúde (OMS) atribuiu a essa droga 18% das mortes autoprovocadas ocorridas em 2019,
o que representa mais de 203 mil pessoas em todo o mundo.
Um
dos principais estudos brasileiros sobre o tema, feito em 2002, analisou dados
de 15 mil pessoas que morreram por suicídio e mostrou que quase 97% delas
tinham algum diagnóstico de transtorno mental, sendo a depressão o mais
frequente, seguida pelas condições relacionadas ao uso de substâncias
psicoativas, principalmente o álcool.
Além disso, dados
da OMS e do Ministério da Saúde mostram a dimensão do problema do álcool no
Brasil. Em 2019, a quantidade de álcool consumida por pessoa foi 7,7 litros,
bem acima da média mundial de 5,5 litros. Além disso, o Sistema de
Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas por Inquérito
Telefônico (Vigitel), do Ministério da Saúde, identificou que mais de 20% dos
adultos do país faziam uso abusivo de álcool no Brasil em 2023.
O Brasil tem
como meta reduzir essa proporção para 17% até 2030. Para a psiquiatra
Alessandra Dielh, isso depende de decisões políticas difíceis.
A gente tem uma
indústria do álcool muito poderosa, que interfere nas políticas públicas
brasileiras. A gente não tem mais propaganda de destilados em rede de TV
aberta, mas a cerveja entra como se nem fosse alcoólica, e ocupa grande parte
da programação com propagandas muito bem feitas. As políticas públicas têm que
atingir essa população que já adoeceu, mas elas precisam mirar também na
redução de demanda, através de prevenção universal para todos.
De acordo com a
diretora da Associação Brasileira de Psiquiatria, Miriam Gondenberg, há
exemplos no mundo de estratégias bem sucedidas que podem ser seguidas.
Alguns anos atrás,
a Rússia fez uma campanha muito interessante para reduzir o consumo de álcool,
com aumento da taxação, que fez a bebida ficar mais cara, e com intervenções na
propaganda também. E a Rússia tem um consumo de álcool muito alto. Durante esse
período, as taxas de suicídio caíram significativamente. Quando a campanha
terminou, elas voltaram a crescer, ela acrescenta.
As duas
especialistas também enfatizam que é preciso aumentar o controle do consumo
entre os adolescentes, que continua acontecendo, apesar da legislação proibir a
venda e a entrega de bebidas para este público.
Nós, brasileiros,
não conseguimos regulamentar isso ainda. Conseguimos botar na lei, mas não
conseguimos fazer, o que se diz com uma palavrinha em inglês, que se chama enforcement (a
capacidade do poder público de fazer uma lei ser cumprida). O adolescente no
Brasil compra bebida com muita facilidade. E o adolescente tem o cérebro ainda
em desenvolvimento, é um período extremamente precioso, que se diz na
psiquiatria, que está ocorrendo a sintonia fina do nosso cérebro, destaca
Alessandra Diehl
* os nomes das personagens são fictícios
(Brasil
de Fato)

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