O PDL 03 aprovado na Câmara tem como único
objetivo derrubar uma resolução do Conselho Nacional dos Direitos da
Criança e do Adolescente (Conanda) que busca facilitar e acelerar a
interrupção da gravidez para crianças e adolescentes em casos de estupro. A
decisão de dezembro de 2024 dá “prioridade absoluta” no acesso aos serviços nos
casos previstos em lei, da forma “mais célere possível e sem a imposição de
barreiras”.
Além disso, busca facilitar o encaminhamento e
acolhimento nos serviços especializados, exames e consultas.
O argumento construído pela extrema direita mostra
a disputa política em torno de um tema que foi considerado pelo Conanda como de
“saúde pública”. O PDL apresentado pela deputada chama aborto
legal de “deturpação ideológica”. Nos discursos públicos sobre o tema, a
autora constrói a narrativa de que a resolução do Conselho precisa cair porque
dispensa a necessidade de apresentação do boletim de ocorrência para o aborto
de crianças e adolescentes que sofreram violência sexual. Esse, no entanto, é
apenas um tópico do texto publicado pelo Conselho.
Sonia Coelho é dirigente da Marcha Mundial de
Mulheres e rebate esse argumento. Para ela, as crianças e adolescentes vítimas
de estupro precisam, antes de tudo, de atendimento médico e apoio psicosocial.
Ir a uma delegacia acaba se tornando uma “exposição” ainda maior para essas
crianças e adolescentes pelo contexto em que as violências acontecem.
“A primeira coisa quando você descobre que uma
criança está grávida é levar para um atendimento médico. Ela não pode e não quer
ir para uma delegacia. Esse processo de polícia, ela decide depois de ter um
atendimento social e psicológico. A criança e a adolescente são estupradas,
normalmente, por pessoas conhecidas, então essa adolescente é ameaçada e não
sabe o que está acontecendo com ela”, explica ao Brasil de Fato.
Ela também indica que a gravidez para as jovens
acaba sendo descoberta depois que já está avançada, porque a criança e a
adolescente “não sabem o que está acontecendo no corpo”.
Os movimentos populares e grupos organizados que
trabalham com o tema afirmam que o PDL 03 faz parte de uma ampla estratégia
conservadora, que ataca os direitos reprodutivos conquistados até agora.
Pacote antiaborto
A articulação da extrema direita nos últimos anos
deu origem a um conjunto de propostas conhecidas como “pacote antiaborto”. A
ideia é minar as leis que garantem o acesso ao aborto por meio de medidas que
atacam esse direito. Essa organização durou décadas e conseguiu acumular forças
até eleger um Congresso com maioria conservadora.
O método tem várias frentes. Primeiro a proposição
de um bloco de Projetos de Lei e Propostas de Emenda à Constituição (PECs) que
minam o acesso ao aborto, como é o caso do PDL 03. Por ter maioria absoluta no
Congresso, esses partidos que vão desde o PL, até o centro como União e
Republicanos, aprovam sem dificuldade os textos.
Além de usar projetos que enfrentam esses direitos
de maneira direta, o grupo também redige propostas que atacam de maneira
transversal. É o caso do PL 4844 de 2023, de Rodolfo Nogueira (PL-MS), que tem
como objetivo proibir o debate sobre educação sexual nas escolas. Para os
movimentos, esse tipo de discussão é fundamental para a prevenção e a
conscientização sobre abusos e violências sexuais contra crianças.
Uma forma de promover esses ataques se dá pela
atuação alternada entre as duas Casas. Quando a Câmara não está pautando essas
questões, o Senado começa a tratar de assuntos como a proibição do aborto a
partir da 22ª semana de gestação, exceto em caso de risco de morte da mãe. Esse
tema foi aprovado pela Comissão de Direitos Humanos (CDH) três semanas antes do
PDL 03.
Outro elemento que faz parte da estratégia do bloco
conservador é a mobilização da base em torno desses projetos. O grupo leva
propostas para as Assembleias Estaduais e as Câmaras de Vereadores nos estados
e municípios para manter o debate aceso em torno da “questão moral”. Esses
projetos menores, sobre aborto e educação sexual, servem como base para as
discussões maiores que estão no Congresso.
Isabel Freitas é consultora do Centro Feminista de
Estudos e Assessoria (Cfemea) e entende que o principal padrão discursivo desse
grupo é o apelo à desinformação. Segundo o grupo, a segmentação das informações
e a distorção de uma parte importante dos argumentos apresentados se pauta nas
“mentiras”.
“O padrão é a mentira. Eles usam esse suposto
argumento de defesa da vida. Eles têm um padrão de difamação absolutamente
misógino. Falam que as mulheres defendem matar crianças um dia antes de nascer,
isso nunca esteve em discussão. Eles têm muitos projetos atingindo no âmago.
Eles não podem tirar o aborto legal, então vão tentando mexer nessa
questão com a telemedicina, por exemplo”, afirmou ao Brasil de Fato.
Outra estratégia de sucesso da extrema direita é a
própria divisão dentro da esquerda brasileira, tendo como base essas pautas.
Grupos progressistas com objeções a ampliação do aborto no Brasil não apoiam a
luta contra os projetos, por uma falta de alinhamento à pauta e pela defesa ao
“diálogo com grupos religiosos”.
Projetos
Não é só o PDL 03 que preocupa
os grupos que defendem os direitos reprodutivos das mulheres. De acordo
com levantamento do Cfemea são, ao todo, 263 projetos que afetam a vida das
mulheres tramitando no Congresso. Mais de 100 têm alguma relação com o aborto.
O grupo identificou os 10 projetos de maior risco
para o debate sobre o aborto no Brasil. Um deles é o PL 5069, que está em
discussão desde 2013, de autoria do ex-deputado Eduardo Cunha (MDB-RJ). O
projeto propõe criminalizar a “indução ao aborto” e o anúncio de meios abortivos.
O texto está em discussão na Comissão de Constituição e Justiça e Cidadania
(CCJC) desde outubro de 2015.
Uma medida simbólica que está em discussão é o
Projeto de Lei 7369 de 2006, de autoria do então senador Roberto Saturnino
(PT-RJ). O texto pretendia instituir o Dia Nacional de Defesa da Vida em 23 de
julho. Seria uma homenagem e denúncia das violências, já que em 23 de julho de
1993 aconteceu a chacina da Candelária onde foram mortas 8 crianças que dormiam
próximas da igreja, que deu início a uma série de assassinatos contra jovens
pretos e pardos no Rio de Janeiro.
O texto no entanto, foi apropriado pela extrema
direita que usa justamente o nome “defesa da vida” para se colocar contra o
aborto, tratando o argumento de “defesa da vida independente do momento”. O
projeto está pronto para ser votado em plenário desde 2023.
O levantamento do Cfemea também inclui o Projeto de
Lei 6335 de 2009 como um projeto de risco para os direitos conquistados. De
autoria do deputado Gonzaga Patriota (PSB-PE), o texto autoriza que
profissionais se recusem a cumprir “normas legais” que conflitem com suas
convicções morais, éticas ou religiosas. Chamado de “objeção de consciência”, o
texto ainda está parado na coordenação de Comissões Permanentes da Câmara antes
de começar a tramitar.
A deputada Chris Tonietto também é autora de um
projeto que pretende proibir “qualquer procedimento de natureza abortiva”
realizado por telemedicina. O PL 1515 de 2021 já recebeu parecer favorável na
Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher e aguarda nova
distribuição.
Os dois projetos de maior risco para a
descriminalização do aborto no Brasil, de acordo com o Centro Feminista, são
ainda restritivos. A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 164 de 2012, de
autoria de Eduardo Cunha (MDB-RJ) e João Campos (Republicanos-GO), propõe
“declarar que o direito à vida é inviolável desde a concepção”. Isso mudaria o
artigo 5º da Constituição, mas ainda está na Comissão de Constituição, Justiça
e Cidadania (CCJC).
O outro texto considerado mais perigoso é apelidado
de Estatuto do Nascituro, que propõe o reconhecimento de direitos ao embrião
desde a concepção. O Projeto de Lei 478 de 2007 foi redigido pelos deputados
Miguel Martini (PH-MG) e Luiz Bassuma (PT-BA), que mais tarde foi expulso do PT
por participar da redação desse projeto. Para os movimentos populares, esses
projetos praticamente acabariam com o aborto legal no Brasil.
“O pacote antiaborto é um pacote antidireitos
consolidados. A ideia deles é cada vez mais ir eliminando o aborto legal. Eles
atacam o que hoje está na lei. É um pacote misógino e racista porque acaba
atingindo os grupos mais vulnerabilizados. E está ligado a grandes temas
nacionais. Eles são a mesma bancada que vota contra indígenas, reforma agrária,
pela privatização de políticas públicas. Essa bancada é consolidada de extrema
direita e usa esse discurso para atacar as mulheres”, disse Isabel Freitas.
No ano passado, o movimento feminista conseguiu
paralisar a PEC 1904, que seria um dos principais projetos contra o aborto no
Brasil. Chamada de PEC dos Estupradores, a proposta também mudaria o artigo 5º
da Constituição, proibindo o aborto em qualquer caso. O movimento das ruas
travou o projeto, que ainda está em tramitação no Congresso.
Além dos projetos de lei antiaborto, outra forma
recente de atacar os direitos reprodutivos é por meio de uma mudança no
Orçamento. Em dezembro de 2023, o deputado Eduardo Bolsonaro (PL-SP) conseguiu
aprovar uma emenda na Lei das Diretrizes Orçamentárias (LDO), que proibia
destacar recursos para políticas públicas referentes ao aborto e cirurgias de
redesignação de gênero em crianças e adolescentes,
“São pautas tranquilas, que pretendem evitar o
ataque à família e, na verdade, é o que a maioria da população pensa hoje em
dia. Você não pode imaginar que vai pagar imposto para, depois, patrocinar
invasão de terras, aborto ou mudança de sexo de crianças. É justamente isso que
pede a emenda”, afirmou o deputado.
Formação de frentes
O crescimento da extrema direita no Brasil foi
crucial também para que essa articulação tivesse resultado. O grupo compôs
frentes temáticas que conseguem pautar de maneira organizada no Congresso. Esse
movimento começou ainda nos anos 2000, a partir da primeira eleição de
Lula.
A primeira delas foi a Frente Parlamentar
Evangélica, fundada em 2003, em resposta a uma onda progressista latinoamricana
depois da eleição de vários presidentes de esquerda na região e da vitória
eleitoral do PT. Mais tarde, outras frentes foram surgindo com diferentes
temáticas, mas que dão respaldo às pautas conservadoras. Um exemplo é a Frente
Parlamentar da Segurança Pública, conhecida popularmente como Bancada da Bala.
A questão do aborto foi formalizada em um grupo de
congressistas em 2023 com a criação Frente Parlamentar Mista contra o Aborto e
em Defesa da Vida. A coordenadora: Chris Tonietto.
Os movimentos de mulheres afirmam que esses grupos
articulam frentes locais para ganhar capilaridade no território.
Os conservadores passaram a se organizar e
construíram bases nos estados. Fizeram trabalho de base nas universidade,
igrejas e por dentro de estruturas públicas, como o SUS, para combater o aborto
legal.
O resultado dessa articulação
ganhou proporções nacionais em 2007. O grupo conseguiu denunciar uma
psicóloga e três enfermeiras de uma clínica de planejamento familiar no Mato
Grosso, acusadas de fazerem 25 abortos. A clínica pertencia à ex-médica Neide
Mota Machado. Ela assumiu que fazia os abortos para proteger as mulheres. O
processo foi arquivado após a morte dela, em novembro de 2009, mas aquele foi
um momento de projeção nacional do tema e dos congressistas que tentam proibir
o aborto em qualquer situação.
“O Congresso só foi piorando. Se pegarmos os anos
90, nós vinhamos num debate grande após a redemocratização. Nos anos 80
tinhamos projetos propondo a legalização do aborto no Brasil com o Eduardo
Jorge, o Genoino, que iam nas mesas fazer o debate do aborto. Nos anos 90
entrou a regulamentação do aborto legal. Em 89 teve a regulamentação do aborto
legal no hospital Perola Bighton. Hoje o Congresso tem quadros importantes
nesse debate, mas a extrema direita conseguiu crescer muito e se organizar.
Hoje eles têm votos suficientes para aprovar qualquer coisa. Não dá pra saber o
próximo passo deles”, disse Sonia Coelho.
Defesa dos movimentos
Para enfrentar essa onda conservadora e a
quantidade de projetos, os movimentos feministas e os congressistas
progressistas buscam duas estratégias. Primeiro, dar visibilidade para os
projetos prejudiciais aos direitos reprodutivos nas redes sociais e buscando
fazer movimentos de rua para exercer pressão sobre o Legislativo.
A disputa passa a ser feita com outros setores da
sociedade que não se posicionam ou desconhecem esses projetos.
Outra forma de combater esse avanço conservador é
articular com deputadas e senadoras que estão alinhadas com os movimentos
feministas. Apresentar pesquisas, relatórios e munir de argumentos e informação
a equipe dessas congressistas passa a ser um elemento importante para os grupos
que defendem a ampliação do acesso ao aborto.
Outra forma de publicizar os projetos que
representam um risco aos direitos conquistados é dar nomes que chamam a atenção
para os problemas que essas PECs e PLs representam. O PDL 03 hoje já começa a
ser chamado de PDL da Pedofilia, para jogar luz sobre a proteção que esse texto
acaba dando a quem promove violência sexual contra crianças e
adolescentes.
“Tentamos fazer com que esses projetos não cheguem
a votação, para não divulgar o nome dos autores, porque eles fazem isso para
ter o nome divulgado e ganhar voto em cima dessa questão. Então a gente
consegue com que deputados barrem e impeça que ele chegue até o plenário. A
gente tenta desqualificar esses projetos”, afirmou Isabel.
A última ferramenta é pautar projetos que ampliem
os direitos para responder as tentativas de avanço da extrema direita. O PL 820
de 2025 da deputada Erika Hilton (Psol-SP) busca conceder anistia às acusadas e
condenadas por aborto. O texto ainda está na Comissão de Defesa dos Direitos da
Mulher.
A deputada Sâmia Bonfim (Psol-SP) é outra que
também pauta a questão na Câmara. Ela é autora do PL 998 de 2023, que propõe
criar um tipo penal para o impedimento de realização de aborto legal.
O registro das mortes por aborto é difícil de ser
compilado no Brasil justamente pela proibição ao acesso a métodos seguros. Mas
alguns institutos fazem levantamentos que ajudam a embasar essa argumentação.
A Gênero e Número analisou
mais de 1,7 milhão de internações registradas no Sistema de Informações
Hospitalares (SIH-SUS) como gravidez que termina em aborto. Entre 2012 e 2022,
483 mulheres morreram por aborto em hospitais da rede pública de saúde do
Brasil.
Em entrevista à Agência Brasil, a
obstetra Ida Pérea Monteiro indica que a razão de morte materna entre as
meninas de 10 a 14 anos de idade é de cerca de 50 casos a cada 100 nascidos
vivos. Esse número cai para 26 na faixa etária dos 20 a 24 anos. De 2019 a
2023, 51 meninas morreram em consequência da gravidez, por causas como
eclampsia, infecção generalizada e complicações de aborto feito
clandestinamente.
(Brasil de Fato)

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