sábado, 1 de setembro de 2012

Poucas & Boas (Jornal Correio da Semana - 01.09.2012)


Padre Ibiapina na avaliação de Gilberto Freyre
No dia 5 de agosto foi lembrado mais um ano de nascimento do Pe. José Antonio de Maria Ibiapina, professor, advogado, delegado de polícia, juiz de Direito e deputado geral (hoje, federal), que nasceu em Sobral (CE) a 05.08.1806 e faleceu em Santa Fé (PB) a 19.02.1883.

Gilberto de Mello Freyre (1900-1987 - foto), sociólogo, antropólogo e escritor brasileiro, curvou-se diante da importância do ilustre sobralense considerando-o como o maior nome da Igreja Católica no Brasil. Vale destacar que a publicação de um dos seus vários artigos sobre o religioso - “O exemplo de Ibiapina” , no O Jornal (Rio), de 09.06.1942, foi o pretexto para a prisão do sociólogo pelas autoridades do Estado de Pernambuco.

No artigo Gilberto Freyre citou: “Ibiapina foi realmente isto: uma enorme força moral a serviço da Igreja e do Brasil.
Como se observa, a exemplo do afamado sociólogo pernambucano, outros estudiosos brasileiros e estrangeiros também continuam debruçando-se sobre a vida e a obra deste notável sobralense. A internet está repleta de indicação de sites sobre Pe. Ibiapina e centenas de escritores eruditos e populares tentam enaltecer sua importância para a Igreja e para o mundo. Até Dom José Tupinambá da Frota, primeiro bispo e o maior benfeitor de Sobral, dedicou-lhe várias páginas em sua “História de Sobral”, dando ênfase à importância das Casas de Caridade como embrião da futura Santa Casa de Misericórdia. 

Para consagrar ainda mais o grande sobralense, os paraibanos, que acolhem o túmulo do Pe. Ibiapina, não cansam de reconhecer o  valor dele e de render-lhe homenagens. Por que, então, os cearenses, em especial os sobralenses, que acolhem o berço do sacerdote, ainda não despertaram para saldar esta dívida histórica? Por quê?
O PADRE IBIAPINA E SUAS MÃES-SINHÁS (Por Gilberto Freyre)

Acabo de ler o livro que o escritor Celso Mariz escreveu sobre o padre Ibiapina. É um livro que revela a brasileiro de hoje a capacidade de realização de um brasileiro extraordinário do século passado.

Sozinho e em luta áspera com obstáculos de toda a espécie, Ibiapina levantou nos sertões do Nordeste, entre mandacarus e chique-chiques, uma admirável organização cristã de assistência social ao sertanejo, de educação doméstica e industrial da mulher do interior, de amparo a órfãos e a doentes, de combate às secas e ao cangaceirismo, às superstições e às pestes. Que de tudo cuidou o bravo missionário, em quem as virtudes de cearense se aguçam em virtudes de santo, sem que nessa difícil sublimação se perdesse a capacidade prática de organizar, de administrar, de desenvolver indústrias, virtudes tão características dos homens do Ceará.

Noutro país cristão a obra do padre Ibiapina - suas boas e santas "Casas de Caridade" - seriam hoje uma força organizada a serviço cristão dos sertões. Seria uma força organizada semelhante à dos Salesianos. Só a nossa imprevidência de mestiços ainda indecisos e desconfiados dos nossos valores mais íntimos deixaria desconjuntar-se a formidável organização do padre cearense, notável como obra indistintamente cristã e notável com realização arrojadamente cristã de brasileiro. E como tal, impregnada do melhor e do mais saudável dos brasileirismos.

Chega a nos comover o nome docemente brasileiro por que se tornaram conhecidas algumas superiores das comunidades religiosas fundadas por Ibiapina: Mães-Sinhás. E essas Mães-Sinhás davam às Casas de Caridade um brando rumor de casas-grandes de família, ensinando às órfãzinhas a cozinhar, a fiar, a tecer e tingir o algodão, a tratar de doentes, a plantar sementes em tempo certo, a fazer chapéu de palha e rede, a ler, a escrever, a rezar o Padre-Nosso, a cantar as ladainhas em bom português, sem trocar os rr pelos ll. Pois quase todas as Mães-Sinhás eram senhoras de famílias ilustres que, tocadas pelos apelos e pelo exemplo do grande missionário se dedicavam ao serviço de Deus e do próximo.

A própria arquitetura das Casas de Caridade tinha alguma coisa de arquitetura doméstica que lhes adoçava os frontões aos olhos das meninas e das moças confiadas aos cuidados das Mães-Sinhás; alguma coisa que as torna simpaticamente brasileiras aos olhos do observador que hoje, em viagem pelos sertões do Nordeste, ainda surpreende alguma de pé: alguma das que tiveram a felicidade de ser aproveitadas para colégio ou escola por algum bispo ou vigário mais esclarecido. Porque a maioria delas - eram dezoito ou vinte - não existe mais; esfacelaram-se sós e abandonadas; tornaram-se casarões mal-assombrados. E faz pena contrastarmos esse abandono tristonho de hoje com o carinho vigilante de Ibiapina por todas as suas "casas". Por todas suas "casas brasileiras", espalhadas pelos sertões do Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco. Casas brasileiras de São José, que era o santo de todas. Brasileiras e, ao mesmo tempo, substancialmente cristãs.

Quando o apóstolo se delicia, numa de suas cartas agora publicadas pelo Sr. Celso Mariz, com o zelo de certa Mãe-Sinhá que reformara e pintara de novo a casa sob o seu cuidado, não esquece de regozijar-se com as cores vivamente brasileiras, liricamente brasileiras, da pintura nova: "Não lhe esqueceu a bela cor amarela com bom azul na frente do edifício". Era cristão e era brasileiro, o bravo missionário fundador das "Casas de Caridade".

Não seria possível restaurarmos hoje, com organização moderna, as velhas "Casas de Caridade", para que se reatasse a obra de cristianização dos sertões sem prejuízo de sua integridade brasileira, realizada por Ibiapina e por suas Mães-Sinhás - hoje que não podemos confiar senão desconfiando, em grande numero dos missionários estrangeiros, católicos e protestantes, espalhado pelo interior do Brasil?  (Artigo de Gilberto Freyre, publicado no Jornal "A Manhã", do Rio, de 6 de junho de 1943).

Nenhum comentário:

Postar um comentário