Caso aprovada definitivamente, a PEC 55,
que limita o crescimento dos gastos públicos nos próximos 20 anos, pode pesar
sobre os mais pobres e levar a prejuízos na competitividade do Brasil no
mercado global por causa do corte de investimentos - o que não seria uma medida
inteligente para o país no longo prazo.
Essa é a avaliação de Philip Alston, relator especial de Direitos
Humanos das Nações Unidas. Ele conversou com a BBC Brasil após a ONU divulgar
um comunicado no qual critica a proposta e afirma que o plano do governo Michel
Temer para tentar recuperar a economia violará os direitos humanos e obrigações
assumidas internacionalmente pelo país.
Para Alston, a medida é "um retrocesso que teria impacto
negativo para as gerações futuras" e não seria uma solução inteligente
para a economia do país.
"Atualmente o Brasil já não está investindo dinheiro
suficiente em educação e, se ficar preso em um ciclo de diminuição de
investimento, isso significará um revés não apenas às crianças brasileiras, mas
também para a competitividade global do país."
Questionado pela BBC Brasil após a publicação do relatório, o
governo rebateu as críticas da ONU e do relator e afirma que a PEC é
"necessária para conter o agravamento da crise".
Como se trata de uma alteração na Constituição, a medida precisa
ser aprovada em quatro votações - duas vezes na Câmara dos Deputados e duas
vezes no Senado. Falta apenas o último aval dos senadores para que a medida
possa ser sancionada por Temer. Essa votação está prevista para a próxima
terça-feira.
'Pressa e alarmismo' - O representante da ONU reconhece a
necessidade de mudanças, mas questiona a extensão da medida e critica a pressa
com a qual a PEC estaria sendo imposta à sociedade brasileira.
"Não acho que qualquer pessoa esteja negando a necessidade de
haver mudanças significativas nas políticas econômicas, mas colocar todo o peso
basicamente sobre os mais pobres e não buscar um pacote mais complexo de forma
aberta e transparente não é uma forma democrática de fazê-lo. Não é consistente
com as obrigações de direitos humanos."
Procurado pela BBC Brasil para responder às críticas, o Ministério
da Fazenda, por intermédio do Itamaraty, afirmou que a pressa "é
justificável e a proposta foi discutida desde junho, quando foi apresentada ao
Congresso". Ainda de acordo com o governo, o processo todo deve ter a
duração de seis meses.
Defensores da PEC 55 argumentam que o congelamento dos gastos é
necessário para sinalizar aos investidores internacionais que o Brasil está
comprometido em conter os custos públicos de forma consistente e contínua. Mas
Alston interpreta a medida de outra maneira.
"Dificilmente isso é pragmático. Isso é radical e, eu diria,
até ideológico. Tentar amarrar as mãos de todos os governos dentro dos próximos
20 anos não é simplesmente mandar um aviso para os mercados. É mandar uma
mensagem ao povo sobre os valores básicos que esse governo apoia",
criticou o relator da ONU.
"Uma coisa é fazer isso nesse mandato, outra é tentar fazer
isso pelos próximos governos. Eu penso que isso é completamente
inaceitável".
O ministério da Fazenda, no entanto, afirma que "as contas
não fecham e somente um controle poderá reverter um agravamento da crise"
e os defensores da medida argumentam que o regime de contenção é necessário
para afastar o fantasma da inflação e atrair mais capital estrangeiro.
"A dívida pública está em um caminho insustentável e falta de
ajuste fiscal resultará em hiperinflação. Há 12 milhões de desempregados no
Brasil atualmente e outros 10 milhões que não trabalham tanto quanto gostariam.
Na percepção de Brasília, esse trabalhadores seriam as vítimas da hiperinflação",
diz a nota enviada pelo ministério da Fazenda à BBC.
O representante da ONU, no entanto, discorda da justificativa. "O que eles estão falando aqui não são os níveis atuais da
inflação, mas o medo do futuro. Isso é o que chamamos de alarmismo. Em outras
palavras, estão inventando cenários possíveis para poder justificar ações
radicais, mas isso não é uma base apropriada para a criação de políticas
públicas".
Para o relator da ONU, as lideranças políticas brasileiras estão
pressionando por uma aprovação apressada, que não representa os interesses da
maioria da população, situada nas classes média e baixa. Essa
"pressa", segundo ele, denotaria a falta de legitimidade do projeto.
"Justificar uma política radical como essa exige um debate
público extenso, com debate e informação acessível ao público, para que eles entendam
quais são as consequências, para que entendam qual é a necessidade real, para
que entendam realmente que corte de gasto será feito, para só então tomarem uma
decisão razoável e democrática".
"Forçar isso em tão pouco tempo, com base na desinformação e
no contexto de um governo cuja legitimidade é limitada pelas circunstâncias
eleitorais, me parece profundamente problemático."
Acordos internacionais - Alston afirma que a imposição da PEC 55
sob a população é uma violação da Convenção Internacional dos Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais, ratificado pelo Brasil em 24 de janeiro de
1992.
"Certamente, de uma perspectiva de defesa dos direitos
humanos, a aprovação da PEC vai diretamente contra o princípio da
não-regressão. Se você vai dar significativos passos para trás, você precisa
justificar com muita cautela as razões por que isso é necessário e por que não
há alternativas. Nesse caso não há uma análise assim, há apenas a afirmação de
que empresas e o mercado irão dar boas-vindas à austeridade".
Para ele, a PEC 55 "claramente viola as obrigações do
Brasil" na Convenção. Entre elas, a de "não tomar medidas
deliberadamente retrógradas a menos que não haja outras opções alternativas e
uma consideração completa tenha sido feita para garantir que as medidas são
necessárias e proporcionais".
O governo, no entanto, não considera a aprovação uma violação à
Convenção. Para o ministério da Fazenda, a medida seria "apenas uma
regulamentação fiscal, como qualquer outra dotada por diferentes países do
mundo".
O professor de direito internacional da PUC-SP Cláudio
Finkelstein, afirma que, caso a PEC seja aprovada, há a possibilidade de se
acionar o Brasil nas cortes internacionais por descumprimento do tratado.
"Existem diversos pactos internacionais e todos os direitos
humanos estão em pé de igualdade. Quando se fala de uma PEC dessa natureza,
isso envolve todos os gastos públicos", resume.
Educação - Apesar das críticas da ONU, a PEC tem sido bem recebida
por outras organizações, como o Fundo Monetário Internacional. No relatório
mais recente sobre o Brasil, publicado em novembro, o FMI afirma que a PEC é
necessária e adianta que os cortes não devem parar por aí.
"A aprovação e rápida implementação de limites nos gastos
poderia ajudar a melhorar a trajetória de longo-prazo do gasto público e
permitir a estabilização e eventual redução da dívida pública em porcentagem do
Produto Interno Bruto".
O documento acrescenta ainda que seria necessário "acabar com
o pré-destinamento de verbas" para setores como saúde e educação. Para Alston, que recebeu apoio da relatora especial da ONU para
educação, Koumbou Boly Barry, isso é um "contrassenso em relação às conclusões
contidas em outros estudos econômicos publicados pelo FMI.
"O que realmente é chocante para mim é que se você olhar a
análise do Fundo Monetário Internacional eles preveem que isso (o congelamento
dos gastos) será problemático e eles não veem isso necessariamente como uma
solução para os problemas do Brasil."
O governo vem negando que saúde e educação serão prejudicadas com
a aprovação da PEC.
"A proposta afetará apenas 20% das despesas com ensino porque
os cortes estão relacionados a gastos federais e a maior parte dos gastos com
educação são assumidos pelos Estados", afirma em nota o ministério da
Fazenda.
A diretora global de educação do Banco Mundial, Cláudia Costin,
afirmou à BBC Brasil que a medida pode prejudicar um dos mecanismos necessários
para garantir a qualidade do ensino: o pagamento de bons salários a
professores. "Nesse ponto infelizmente a PEC 55 deve atrapalhar. Porque
congelar a forma como gastamos hoje não vai resolver o problema dos
salários." (BBC)
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