Mapear votos dos congressistas é um ritual que se
repete sempre que o Legislativo se depara com uma decisão importante. Logo,
diante da possibilidade de votação da Reforma da Previdência, tal contagem
virou rotina na Câmara.
O assunto deve começar a ser discutido nesta
quinta-feira, e pode ser votado na próxima semana, embora até no governo haja
divergências sobre o calendário. Há alguns dias, a contagem era ruim para
Michel Temer: a avaliação mais otimista era de 260 votos, quase 50 a menos que
os 308 necessários para aprovar a mudança no sistema previdenciário.
O cálculo é do deputado Beto Mansur (PRB-SP),
um dos parlamentares mais fiéis ao presidente da República. O deputado se
tornou uma espécie de "mapeador oficial" de votos do atual governo.
"Estamos trabalhando para buscar esses votos (que faltam)", disse ele
à BBC Brasil.
Do outro lado, na oposição, a conta é de que
existem cerca de 240 deputados a favor de mudar as regras da aposentadoria.
"O governo está blefando. Mansur não entende nada de votos aqui
dentro", diz o deputado José Guimarães (PT-CE). O cearense foi líder do
governo Dilma Rousseff na Câmara (2015-2016). Hoje líder da minoria na Casa,
diz contar com a ajuda de Júlio Delgado (PSB-MG) para atualizar a planilha com
a posição de cada colega sobre o tema.
A atual proposta de mudança no regime prevê
estabelecer uma idade mínima para se aposentar (65 anos para homens e 62 para
mulheres) e um tempo mínimo de contribuição para ter direito ao benefício (15
anos para trabalhadores da iniciativa e 25 para os funcionários públicos). Além
disso, quem se aposentasse com esse tempo mínimo receberia 60% da média
salarial - 70% no caso dos servidores. O teto seria alcançado apenas caso se
chegasse aos 40 anos de contribuição,
Se em maio de 2016 Temer contou com o voto de
367 deputados para afastar a ex-presidente Dilma Rousseff (PT), hoje é consenso
que ele perdeu o apoio de uma centena de congressistas para aprovar a reforma.
A maior parte desta diferença está no chamado
"Centrão", um grupo de legendas de tamanho médio e sem ideologia
política definida, capitaneado por PP, PR, PSD e PTB. Políticos próximos ao
Palácio do Planalto dizem que as maiores resistências estão no PR, PSD e PP,
partidos sob os quais o governo intensificou a pressão nos últimos dias.
Diferentes fatores contribuíram para a erosão
do apoio, segundo congressistas. Desde erros de avaliação política e
comunicação do governo, que afugentou setores da população que poderiam ser
favoráveis ao projeto, até a fragilidade de líderes partidários que teriam
negligenciado os interesses dos deputados e monopolizado para si os benefícios
concedidos pelo Planalto.
Políticos governistas e o próprio Michel
Temer têm dado sinais de que a votação da reforma pode ser adiada para
fevereiro de 2018. Os deputados devem "abrir a discussão" nesta
quinta se houver quórum, o que não obriga o governo a pautar o assunto na
semana que vem.
Pessoas próximas ao Planalto têm dito que o
adiamento para 2018 é uma possibilidade real. O líder do governo no Senado,
Romero Jucá (PMDB-RR), por exemplo, disse nesta quarta que há um acordo entre
os presidentes da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ) e do Senado, Eunício Oliveira
(PMDB-CE), para adiar a votação para fevereiro.
Horas depois, Temer contradisse Jucá,
afirmando que a data da votação não estava definida. Somente depois que o
relatório de Arhtur Maia (PPS-BA) para a reforma for lido na Câmara é que ele
discutirá o assunto com os presidentes da Câmara e do Senado, disse o Planalto
em nota. O presidente da Câmara também negou qualquer acordo.
Acabou o dinheiro? - "É que 'deu no osso'. O governo vem
acumulando votações que criam desgaste junto à população, como as duas
denúncias (contra Temer, geradas pela delação da JBC)", diz o deputado
Pedro Cunha Lima (PSDB-PB). "Dar no osso", explica o congressista, é
uma expressão usada pelos paraibanos para dizer que algo acabou (quando a carne
toda já foi). "Depois da Reforma Trabalhista, da PEC do Teto e das duas
denúncias, acabou a energia." Cunha Lima integra a ala dos "cabeças
pretas" do PSDB, um grupo de congressistas mais jovens e que se diz
independente do governo Temer.
O PSDB defende historicamente medidas de
austeridade fiscal, tendo inclusive feito mudanças na Previdência durante o
governo de Fernando Henrique Cardoso, nos anos 1990. Na tarde de ontem, o partido disse
"fechou questão" a favor da reforma, na primeira reunião da Executiva
do partido sob o comando do governador de São Paulo, Geraldo Alckmin. Apesar
disso, por volta de 15 dos 46 deputados tucanos votarão contra. E não sofrerão
punições. Na prática, portanto, não houve o "fechamento", no sentido
clássico do termo.
Para o cientista político Carlos Melo, o
governo errou ao atrelar desde o começo o apoio em votações importantes à
distribuição de benesses, como cargos e emendas. Esses são recursos finitos, afirma.
"Essa fonte (de apoio político ao governo) seria mais estável se ela fosse
programática desde o princípio, não fisiológica. Se a discussão se desse em
torno de ideias, de opinião, se fosse politizada desde o princípio", diz
ele, que é professor do Insper.
O governo ainda gastou muitos desses recursos
escassos em votações que não tinham nada a ver com o ajuste fiscal: em agosto e
outubro deste ano, os deputados impediram que o Ministério Público investigasse
Temer enquanto ele estivesse no cargo, lembra. "Se o governo tivesse feito essa
discussão sobre equidade, sobre privilégios do funcionalismo, desde o começo
(Temer assumiu em meados de 2016), teria mais facilidade agora", diz Melo.
O professor usa como exemplo a divisão de
cargos no governo: logo depois de assumir o Planalto, o grupo de Temer tinha à
disposição, para distribuir, um manancial de postos comissionados (ocupados sob
indicação) antes ocupados pelo PT e outros partidos de esquerda. A distribuição
de cargos ajudou o governo a colher vitórias no Congresso como a PEC do Teto de
Gastos, mas esse estoque parece ter acabado, diz o cientista político.
No entorno de Michel Temer, porém, a ordem
agora é desvincular o apoio à reforma de qualquer benesse, e fazer a defesa
política da mudança nas regras previdenciárias. "O deputado que não votar a reforma como
veio estará votando com os ricos, e não com os brasileiros que mais sofrem. São
os ricos que querem manter a Previdência com está. No ano que vem, com a
reforma aprovada, a economia estará voando. A economia será o grande tema
positivo da eleição", diz à BBC Brasil o deputado Darcísio Perondi
(PMDB-RS), integrante do "núcleo duro" governista na Câmara.
Líderes que não lideram - Nos últimos dias, alguns partidos políticos
"fecharam questão" em defesa da mudança nas regras previdenciárias. O
primeiro foi o PMDB, seguido por PPS e PTB. O DEM também deve fazer o mesmo
esta semana, e é possível que também o PP tome esta atitude. O "fechamento de questão" significa
uma decisão formal do partido de apoiar algum tema. E quem votar contra pode
ser punido, até mesmo com a expulsão.
Muitos partidos, porém, não estão em
condições de ameaçar os deputados para fazê-los votar conforme a orientação dos
líderes. Isso é especialmente verdadeiro no "centrão", onde há muita
insatisfação nas bancadas. Congressistas destes partidos acusam os comandantes
das legendas de beneficiar-se pessoalmente da proximidade com o governo,
deixando de lado os pleitos da bancada.
"Os cargos do partido (o PP) estão nas
mãos de 5 pessoas: o Arthur Lira (deputado por Alagoas), o pai dele, Benedito
de Lira (senador por Alagoas), o Ciro Nogueira (senador pelo Piauí e presidente
nacional do PP), Agnaldo Ribeiro (deputado pela Paraíba) e Ricardo Barros
(ministro da Saúde). Não chegam nos deputados", diz um congressista
importante da legenda, sob condição de anonimato.
"Esses cinco que eu falei estão
'pintando e bordando' com o Michel Temer. Nunca tiveram tanto poder", diz
o deputado. Para o congressista, o partido pode até fechar questão em torno da
reforma, mas a quantidade de votos que serão entregues é incerta.
O deputado lembra que em março haverá uma
"janela" de trocas partidárias, em que os congressistas poderão mudar
de sigla sem perder o mandato. Por isso, não é provável que o comando das
legendas "estique a corda", ameaçando de punição quem votar contra a
reforma.
Falando em nome da cúpula partidária, Ciro
Nogueira respondeu às críticas dizendo que "insatisfação, em toda bancada
existe". Mas assegurou que "o PP sempre foi o partido mais fiel ao
governo, com índices superiores até ao PMDB. E na Reforma da Previdência com
certeza vai ser também. Nosso índice de infidelidade é inferior a 10%",
disse. Além disso, "se existe um partido que é totalmente democrático na
questão de indicações e de verbas, é nosso", disse.
Segundo um importante articulador do Planalto
na Câmara, um fenômeno estaria acontecendo no PSD: o presidente da sigla, o
ministro Gilberto Kassab (Ciência, Tecnologia, Inovação e Comunicações) não
teria verdadeiro controle sobre os deputados.
O partido foi formado por congressistas insatisfeitos
com suas legendas e desde o início tinha a proposta de respeitar a vontade de
cada congressista (daí Kassab dizer, em 2011, que a sigla "não será de
direita, não será de esquerda, nem de centro"). O PSD não fechou questão
nem mesmo nas duas denúncias do ex-procurador-Geral da República Rodrigo Janot
contra Michel Temer, mesmo tendo ministérios no governo.
Altas expectativas, falta de comunicação - Parte dos deputados que acha que o Planalto
errou ao apresentar uma primeira versão, considerada dura, da Reforma da
Previdência. O texto original, enviado ao Congresso em setembro passado,
restringia o alcance da aposentadoria rural e o Benefício de Prestação
Continuada (o BPC, pago a pessoas com deficiência, por exemplo), entre outros.
"A percepção que a sociedade tem da
reforma têm sofrido uma profunda transformação. Não há dúvida de que aquele
texto inicial, que foi pra cá remetido pelo governo, propunha realmente a
diminuição de alguns direitos de pessoas mais pobres. Tudo isso saiu do
texto", disse o deputado Arthur Maia (PPS-BA), relator da reforma.
O governo teria, portanto, superestimado a
própria capacidade de articulação política ao propor uma reforma mais pesada do
que seria capaz de bancar. Além disso, problemas de comunicação e de
disputa da opinião pública teriam ocorrido.
É consenso até no governo que a primeira fase
da campanha publicitária da reforma não surtiu o efeito desejado. As peças, do
começo de 2017, tinham como slogan a frase "Previdência. Reformar hoje
para garantir o amanhã". As propagandas usavam dados econômicos,
considerados de difícil compreensão e não teriam sido bem entendidas pela
população.
É o que disse também à BBC Brasil o deputado
Sóstenes Cavalcante (DEM-RJ). Mesmo tendo votado a favor do impeachment, ele é
frontalmente contrário à reforma. A oposição, capitaneada pelo PT, dá como
certo que a reforma "não será aceita pela população nem pintada de
ouro", como diz o petista José Guimarães. "O que está acontecendo é que a reforma
é um tema que atinge a todos os brasileiros, indistintamente. O povo entendeu
qual é o sentido da reforma, que é a retirada de direitos. Isso criou uma
rejeição global ao projeto, o que acaba repercutindo nos deputados", disse
à BBC Brasil o líder do PT na Câmara, deputado Carlos Zarattini (SP).
"Reforma trabalhista e PEC do Teto eram
temas muito técnicos, difíceis das pessoas entenderem. Por isso não tinha tanta
repercussão quanto a Previdência", diz ele. "E agora, essa tentativa
de votar foi como soprar a brasa. A pressão (contra a reforma) aumentou",
completou.
'Não tem essa vinculação' - Mas o que dizem os deputados que
"mudaram de lado", isto é, que votaram a favor do impeachment, e
agora são contra a reforma da Previdência?
"Essa simplificação (de que quem votou
pelo impeachment precisaria votar sempre com o governo Temer) eu rejeito. Quem
votou no impeachment o fez por acreditar que a Dilma cometeu um crime de
responsabilidade, e não para apoiar o Temer. Da mesma forma, eu não votei a
favor das denúncias contra Temer por apoiar um eventual governo de Rodrigo Maia
(o presidente da Câmara, do DEM-RJ)", diz o deputado Pedro Cunha Lima
(PSDB-PB).
Outro que "mudou de lado" é
Sóstenes Cavalcante (DEM-RJ), um dos principais deputados da bancada evangélica
da Câmara. Para Sóstenes, pesaram contra a reforma "a proximidade das
eleições" - como há um clima de opinião contrário à reforma, muitos
deputados temem ser punidos pelos eleitores no ano que vem.
É o mesmo que diz o deputado do PP mencionado
acima, sob anonimato. "O meu eleitorado mais forte é de classe D e E, da
periferia dos centros urbanos. Eles têm uma forte expectativa de que não vamos
votar à favor da reforma. Fica complicado contrariar isso agora", disse o
parlamentar.
Além disso, Sóstenes questiona a legitimidade
de Temer para tomar medidas estruturais, como a reforma da Previdência. "O
voto direto foi dado a Temer como vice, e não como presidente. Ele foi eleito
em uma chapa com outro perfil de ideologia e de política econômica", diz
ele, que entretanto votou com o governo em temas como a PEC do Teto de Gastos e
a Reforma Trabalhista.
"Eu não caio nessa história de que o
governo é ilegítimo. Mas politicamente você não tem como negar que é um governo
que chegou de uma forma atípica, e que tem suas limitações", concorda
Cunha Lima. O pai dele, Cássio Cunha Linha, é líder do PSDB no Senado.
O que vai acontecer hoje? - Os deputados não vão começar a votar ainda
nesta quinta a Reforma da Previdência. Se tudo der certo, o que começa é a
discussão oficial, em plenário, da proposta de emenda à Constituição (PEC) que
prevê mudar as regras das aposentadorias.
Assim que pelo menos 51 deputados registrarem
presença na Câmara (e não no Plenário), o presidente Rodrigo Maia (DEM-RJ) abre
oficialmente a discussão. Como o texto será debatido em uma sessão
extraordinária (e não em sessão ordinária), ele não necessariamente precisará
estar na pauta das próximas sessões, se o governo resolver adiar a votação para
2018.
Se o quórum amanhã chegar a pelo menos 257
deputados dentro do Plenário da Câmara, o governo pode até tentar aprovar o que
se chama de "requerimento de encerramento de discussão". Para isso, é
preciso apenas que quatro deputados tenham discutido o tema: dois contra e dois
a favor. Com o requerimento aprovado, é possível, em tese, partir direto para a
votação na próxima semana. (BBC)
Nenhum comentário:
Postar um comentário