Pedro (nome fictício) fez doutorado na França, onde
recebeu uma proposta de emprego. Foi obrigado a recusar a oferta para retornar
ao Brasil e
cumprir o período de "interstício", que se refere à temporada de
permanência obrigatória de ex-bolsistas no país após a conclusão dos estudos no
exterior. Está desempregado.
Giovana
(nome fictício) faz especialização na Inglaterra e, após a defesa da tese,
deverá voltar ao Brasil a fim de cumprir as regras da agência federal de
fomento, afastando-se de seu marido europeu e de seus três filhos.
As
histórias reais de Pedro e Giovana são citadas como exemplos no abaixo-assinado
lançado por pesquisadores brasileiros, em fevereiro, que reivindicam revisão e
flexibilização das regras atuais que obrigam ex-bolsistas a retornar ao país.
Entre os
signatários estão integrantes do Programa-Piloto para a Mobilidade de
Profissionais Brasileiros Altamente Qualificados: Brasileiros pelo Avanço da
Internacionalização do Conhecimento - Brain (que significa "cérebro"
em inglês), uma rede de 158 bolsistas e ex-bolsistas de doutorado do Conselho
Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).
A
articulação do Brain começou a partir de um grupo de pesquisadores brasileiros
no Facebook. Em agosto de 2017, eles fizeram uma das primeiras reuniões por
videoconferência, iniciando a elaboração de propostas para apresentar
alternativas ao CNPq e à Capes em relação ao retorno obrigatório ao país.
"Não se trata de uma "fuga", mas uma
circulação de cérebros", define Gilvano Dalagna, de 37 anos, que faz parte
da diretoria do Brain.
Segundo os integrantes do grupo ouvidos pela BBC News
Brasil, a obrigatoriedade de retorno ao país muitas vezes implica a recusa de
propostas de trabalho e oportunidades de pós-doutorado no exterior. Além disso,
os pesquisadores criticam a ausência de programas para reinserir os
recém-doutores no mercado no Brasil – uma situação agravada pelo atual contexto
econômico e por cortes no orçamento para a educação.
A posição do grupo não é, no entanto, unanimidade dentro
da academia. O biólogo
Marcelo Hermes-Lima, de 53 anos, professor do Laboratório de Radicais Livres da
Universidade de Brasília (UnB), discorda dos argumentos do Brain.
"É
óbvio que eles devem voltar. Eles assinaram um contrato (com as agências de
fomento). O povo brasileiro está pagando a educação deles. Então, é hora de ser
adulto, cumprir o compromisso e voltar ao país. Eles devem crescer. Não
compartilho dessa visão 'choramingosa' da comunidade científica", critica.
Como funciona hoje – e o que o grupo defende - Segundo as
regras atuais, os ex-bolsistas da Capes devem regressar ao país até 60 dias
após a defesa de suas teses; para o CNPq, o prazo é de 30 dias.
Nos dois casos,
os ex-bolsistas devem residir novamente no Brasil por um período mínimo
equivalente à estadia no exterior (um pesquisador que morou quatro anos fora,
por exemplo, deverá passar quatro anos, no mínimo, no território brasileiro).
Se não
retornarem ou não permanecerem o tempo previsto no país, ex-bolsistas estão
sujeitos a processos administrativos e deverão devolver os valores recebidos
pelas agências. E, se não devolverem, serão cobrados judicialmente a partir da
Controladoria-Geral da União (CGU) e do Tribunal de Contas da União (TCU) – a
dívida pode ultrapassar R$ 300 mil.
Entre 2013
e 2017, 10.206 brasileiros foram contemplados com bolsas de doutorado pleno no
exterior pela Capes, que não possui dados sobre quantos doutores deveriam ter
retornado no último ano. No mesmo período, 1.336 brasileiros receberam bolsas
de doutorado no exterior pelo CNPq, que tampouco possui informações sobre a
expectativa de retorno.
A proposta
do Brain, de acordo com os integrantes ouvidos pela BBC Brasil, é apresentar
uma alternativa de ressarcimento dos investimentos feitos na formação desses
jovens doutores, que continuariam a contribuir com a ciência brasileira a
distância.
Eles
também pedem mais flexibilidade e transparência das agências na avaliação de
seus pedidos de adiamento de interstício, uma autorização para prolongar a
estadia no exterior.
Entre os participantes do Brain estão doutores (27,4%) e
pós-graduandos prestes a concluir seus doutorados até 2019 (72,6%), de diversas
áreas do conhecimento. Espalhados na Europa (84%), América do Norte (15%) e
Austrália (1%), eles realizam assembleias periódicas por videoconferência.
Os integrantes enfatizam que reconhecem a necessidade de
retribuição à ciência brasileira e admitem que as agências têm direito de
exigir contrapartidas pelos investimentos feitos. Ao mesmo tempo, argumentam
que é preciso repensar o formato das contrapartidas.
"Reconhecendo
que tivemos apoio fundamental para nossa formação, queremos retribuir com a
moeda que consideramos mais valiosa: nosso trabalho. O desenvolvimento
intelectual foi o que nos trouxe até aqui e é a partir dele que queremos
retribuir ao país. Isso não quer dizer que precisamos estar fisicamente no
Brasil", diz Gilvano Dalagna.
Graduado
pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), ele fez o doutorado na
Universidade de Aveiro, Portugal, com apoio da Capes. Em 2012, estudou na
University College London (UCL), Inglaterra, como parte do programa Erasmus
Mundus.
Após a
conclusão do doutorado, em 2016, ele voltou ao Brasil por apenas um mês: como
recebera convites para participar de projetos e lecionar na Escola Superior de
Música e Artes do Espetáculos do Porto, ele interrompeu o interstício e voltou
a Portugal.
Radicado
em Aveiro, ele ministrou cursos online e prestou consultoria para programas de
pós-graduação de universidades brasileiras. Como exemplos de contribuição a
distância, cita a possibilidade de ocupar posições estratégicas como
"embaixadores" de universidades brasileiras, liderando projetos
internacionais e promovendo intercâmbio para pesquisadores brasileiros.
'Qual é a lógica de voltar ao país em perspectiva?' - Integrante
do Brain desde o início, a pesquisadora mineira Déborah Maia Lima, de 47 anos,
deve concluir o doutorado em dança na Universidade de Quebec em Montreal
(UQAM), no Canadá, até o fim do ano. De lá, mantém colaborações com a
Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB), a UnB e a Universidade Federal do
Rio Grande do Rio (UFRGS).
"Não queremos privilégio ou 'fugir' do Brasil.
Queremos uma mudança de paradigma: abandonar a ideia de "fuga" de
cérebros (brain drain), que é da década de 1960, para pensar a atualização da
política das agências de fomento para a inserção internacional e a globalização
do conhecimento", diz.
Titulados
recentemente, os jovens doutores do Brain não têm vínculo empregatício no
Brasil. Segundo relatos, muitos ex-bolsistas estão sendo forçados a abandonar
as áreas de especialização ao regressar ao país, por não conseguirem ingressar
no mercado, seja nas universidades públicas seja na iniciativa privada.
"O
governo investiu uma quantia gigantesca de dinheiro nas nossas formações e
somos imensamente gratos. Devemos retribuir ao povo brasileiro com
desenvolvimento científico e inovação tecnológica. Assim, qual é a lógica de
voltar ao país sem perspectiva e muitas vezes num subemprego?", questiona
Lima.
"Para
as agências, é como se não importasse se você passa os dias dormindo e
assistindo Netflix desde que esteja no território brasileiro. Isso é poder
contribuir com a ciência? Não seria melhor ter esses jovens pesquisadores
brasileiros transitando e internacionalizando a educação do país?",
conclui.
A
pesquisadora Clarissa Justino de Lima, de 27 anos, também integra o movimento,
mas não pretende prolongar sua estadia no exterior. Quer voltar ao país em maio
de 2019, após a conclusão de seu doutorado em engenharia civil na Universidade
Técnica de Delft (TU Delft), Holanda. O plano é procurar um pós-doutorado no
Brasil, mas ela está pessimista diante das disputadas vagas.
"Essa
falta de oportunidades impede que o ex-bolsista gere conhecimento e inovação.
Assim, a sociedade deixa de receber um retorno do montante de dinheiro público
investido na formação dele. O ex-bolsista também perde, pois após anos de
preparação e profissionalização, se vê obrigado a atuar em campos completamente
diferentes do seu, apenas para conseguir se sustentar", diz.
Caso a caso - Em outubro de 2012, a Capes publicou uma
portaria que previa a possibilidade de liberar a obrigação de retorno de
ex-bolsistas, a partir de critérios de "desempenho de atividades
técnico-científicas relevantes". Um mês depois, porém, ela foi revogada.
"A Capes não é uma agência de viagens", comenta
o filósofo e professor da USP Renato Janine Ribeiro, que foi diretor de
avaliação da agência entre 2004 e 2008 e ministro da Educação entre abril e
outubro de 2015. Para ele, é preciso ter regras claras e responsabilidade de
retorno de ex-bolsistas.
"Entendo,
e autorizei em 2015, que alunos que recebem de entidades do exterior auxílios e
bolsas para prolongarem sua permanência fora do país possam ter seu pedido
aceito. Mas isso representa apenas um adiamento de sua volta, não uma política
sistemática na qual o Brasil passaria a apoiar o estabelecimento de tais
doutores no exterior, financiando assim universidades e institutos de pesquisa
de países ricos", diz.
Em 2015, a
equipe do então ministro foi procurada por um astrofísico que fazia
pós-doutorado na França. O estudo do pesquisador, considerado de ponta, atraiu
a atenção da faculdade francesa que o convidou, mediante cartas assinadas, a
continuar ali por dois anos adicionais.
A pesquisa
necessitava de uma tecnologia disponível na instituição estrangeira, que
manteria integralmente o pesquisador visitante, "a custo zero para o
Brasil", lembra Janine. Assim, frisa o filósofo, o astrofísico não estava
se negando a retornar ao país, mas pedindo adiamento do interstício. Ele foi
favorável à autorização, que acabou aprovada pela Capes.
"Se a
volta do pesquisador não permite que ele continue a desenvolver sua pesquisa
com a mesma capacidade e fluência que teria se continuasse na instituição
estrangeira, não faz sentido seguir uma norma que prejudica a ciência. Seria
como se o Estado sabotasse o próprio Estado (e a ciência)", diz Janine.
'É como se não importasse se você passa os dias dormindo
e assistindo Netflix desde que esteja no território brasileiro', reclama Déborah Lima
Tentativas frustradas - Em outubro de 2016, a Capes
publicou uma nova portaria que flexibilizou a regra de retorno. Para permanecer
no exterior, o pesquisador deveria submeter um novo projeto de pesquisa,
designado "novação", a ser avaliado por três especialistas. Em agosto
de 2017, a norma foi revogada. No meio tempo, 74 dos 76 projetos submetidos
foram reprovados.
Uma das
negativas foi ao projeto de Julia Salles, de 36 anos, que deve concluir o
doutorado no departamento de comunicação na UQAM, no Canadá, até setembro. Mestre em
arte contemporânea e novas mídias pela Universidade de Paris 8, Julia faz parte
de um programa de pós-graduação que integra outras duas instituições
canadenses. "Faço pesquisa em uma universidade, dou aula em outra, sou
aluna em outra", diz ela, que desenvolve documentários para internet.
"Tenho um pé na indústria criativa, outro na academia."
O projeto de "novação" da autora incluía uma
coprodução Brasil-Canadá para um projeto de realidade virtual, com investimento
recebido do SP-Cine e de um fundo canadense; um projeto intitulado Brazil Hub,
no laboratório Sense Lab da Universidade Concordia, em Montreal; e um núcleo de
pesquisas na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio) que
incluía congressos e cursos de curta duração no Brasil.
O primeiro pedido foi negado, segundo a interpretação da
autora sobre o parecer, por falta de informações sobre o valor monetário das
atividades. Para o
segundo pedido, ela adicionou um orçamento evidenciando a movimentação
financeira dos projetos (ela recebera cerca de 100 mil dólares canadenses de
bolsa; as atividades envolveriam mais de 200 mil dólares canadenses em
benefício brasileiro). O projeto foi reprovado.
Conversas - Após a
revogação da portaria da Capes, o Brain começou a se articular, buscando
diálogo com as agências e apoio de associações, como a Associação Nacional de
Pós-Graduandos (ANPG) e a Associação de Brasileiros Estudantes de Pós-Graduação
e Pesquisadores no Reino Unido (ABEP-UK).
A bióloga
Daniela Machado, de 32 anos, mestre pela Fiocruz e desde dezembro doutora pela
Escola Normal Superior de Lyon, na França, é uma das diretoras do grupo que
participa desses diálogos.
Ela conta
que a Capes aceitou ouvir as propostas do Brain. Foram feitas duas reuniões por
videoconferência em abril e maio. Os pesquisadores pediram para participar do
grupo de trabalho constituído por representantes da Capes e consultores para
discutir a "novação".
Procurada
pela reportagem, a entidade afirma que tem mantido um "diálogo
aberto" com o movimento, "ponderando as demandas e levando em
consideração o ponto de vista dos bolsistas e ex-bolsistas".
De acordo
com os integrantes do Brain, o CNPq não respondeu às mensagens encaminhadas ao
presidente e a duas coordenações de projetos internacionais. "O
CNPq não tem conhecimento desta iniciativa, mas parece ser uma iniciativa
interessante, pois a internacionalização da ciência é bandeira do CNPq",
afirmou à BBC News Brasil o presidente do conselho, Mario Neto Borges.
Segundo
ele, a nova diretoria já analisou o assunto e decidiu a favor da
flexibilização. Trata-se da recente resolução normativa 007/2018. "O
fundamento principal desta flexibilização se baseia no fato de que o
pesquisador, que por justa razão quiser permanecer no exterior, pode contribuir
com o Brasil por meio das atividades propostas no termo da novação. Melhor
assim que ser obrigado a voltar ao Brasil sem condições de exercer sua nova
qualificação", conclui. (BBC)
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