Na
quinta-feira que antecedeu o fim de semana de votação no Brasil, um vídeo
acusando fraude nas urnas foi extremamente difundido. Teve 1,6 milhão de
visualizações no YouTube e foi publicado diversas vezes em grupos de WhatsApp e
no fórum Gab, rede social da alt-right (termo
que se refere a "direita alternativa", que reúne grupos de
extrema-direita) americana que tem adeptos brasileiros apoiadores do candidato
a presidente Jair Bolsonaro (PSL).
O vídeo, de
um canal gaúcho chamado Brasil Paralelo, entrevista o procurador Hugo César
Hoeschl, de Santa Catarina, que cita "estudos com reconhecimento
internacional" que indicam "que a probabilidade de fraude na última
eleição presidencial brasileira foi de 73,14%", mas não especifica que
estudos são esses.
Diante da
disseminação desse vídeo, o TSE (Tribunal Superior Eleitoral) publicou uma
resposta em seu site na sexta-feira, dizendo não haver registro "de que o
autor do vídeo tenha participado de qualquer evento de auditoria e
transparência, a exemplo dos testes públicos de segurança realizados pelo TSE e
da apresentação dos códigos-fonte".
Também
afirmou que "há vinte e dois anos, as urnas eletrônicas têm sido
utilizadas nas eleições brasileiras sem nenhuma comprovação efetiva de fraude.
O resultado das Eleições Gerais de 2014 foi auditado de modo independente por
iniciativa de partido político, sem que qualquer irregularidade fosse
identificada". A BBC News Brasil tentou contato com os donos do canal
Brasil Paralelo e com o procurador, mas não obteve respostas.
No dia do
pleito, no entanto, apesar de diversas acusações de fraude nas urnas, as ações
do TSE foram mais tímidas. O tribunal apenas retuitou verificações de agências
de checagem de notícias e do Tribunal Regional Eleitoral de Minas, que produziu um vídeo desmentindo uma acusação de fraude.
Questionada,
a assessoria de imprensa do tribunal disse que as explicações sobre
providências tomadas contra notícias falsas nas eleições foram expressadas pela
presidente do tribunal, ministra Rosa Weber, em coletiva de imprensa no dia das
eleições. O TRE de Minas disse que também não falaria sobre o tema de notícias
falsas em geral.
Disseminação
e resposta - Os boatos de fraude nas urnas no dia das eleições começaram a
circular naquele dia de manhã. Nos atuais 350 grupos públicos de WhatsApp
que o professor de Ciência da Computação Fabrício Benevenuto, da UFMG
(Universidade Federal de Minas Gerais), monitora por meio de seu sistema, um
vídeo que mostrava uma urna que supostamente se "autocompletava" com
o rosto do candidato presidencial Fernando Haddad (PT) quando o eleitor
digitava o número "1" foi enviado por usuário em um grupo primeiro às
11:25.
Até as
16:12, três versões do mesmo vídeo haviam se espalhado por 29 grupos
diferentes. Foi um dos conteúdos mais difundidos no WhatsApp naquele dia, se
tomarmos como base o monitor da rede do grupo da UFMG (não se sabe o quão
representativo é porque o número total de grupos públicos de WhatsApp no Brasil
é desconhecido).
A acusação
tomou maiores proporções quando o vídeo foi publicado de manhã no Twitter por
Flavio Bolsonaro (PSL), filho do presidenciável Bolsonaro e naquele dia eleito
senador do Rio.
Segundo
levantamento da FGV-DAPP (Diretoria de Análise de Políticas Públicas da
Fundação Getúlio Vargas), seu tuíte teve mais de 17.050 compartilhamentos e foi
"com folga" o mais "retuitado e influente do debate",
segundo análise da FGV. Para essa análise, o grupo levou em conta 3,5 milhões
de tuítes e quase 3 milhões de retuítes sobre os candidatos à Presidência entre
as 0h e 20h do domingo.
O tuíte de
Flavio Bolsonaro foi apagado. "Mesmo que a explicação sobre a veracidade
do vídeo não tenha sido clara, meu objetivo de alertar ao TSE foi atingido,
logo, retirei a postagem do vídeo", afirmou o agora senador eleito. O
tuíte com o desmentido do TSE, às 13h36 daquele dia, teve só 1.554 retuítes.
O vídeo
feito pela Coordenadoria de Comunicação Social do TRE de Minas no YouTube,
também desbancando o boato, teve cerca de 800 mil visualizações. Agências de
checagem de notícias e veículos de imprensa trabalharam tentando esclarecer as
dúvidas.
Outros
vídeos de supostas fraudes também circularam nas redes - e a narrativa tomou
conta do dia de votação, respaldada pelos filhos de Bolsonaro e, mais tarde,
pelo próprio candidato. De acordo com a FGV, foram 471,1 mil tuítes sobre
fraude eleitoral entre 22h de domingo e 15h de terça, 9.
Para
investigar casos específicos, os TREs têm que ser provocados pelos Ministérios
Públicos ou partidos políticos. Questionado, o TSE informou à BBC News Brasil
que não tem "conhecimento de nenhuma denúncia formal de fraude nas
urnas" protocolada no tribunal.
'Entendendo
o fenômeno' - Na coletiva depois das eleições, a ministra Rosa
Weber, presidente do TSE, disse que o tribunal está primeiro "entendendo o
fenômeno" das notícias falsas, que não são "de fácil compreensão, de
fácil prevenção".
"E não
é problema brasileiro. Mas o TSE está atento."
Em sua fala,
a ministra citou as ações conduzidas pelo tribunal contra notícias falsas:
- A criação
de um conselho consultivo sobre internet e eleições, com atribuições para
desenvolver pesquisas e estudos sobre as regras eleitorais e a influência da
internet nas eleições
- Um acordo
de colaboração feito com partidos, para evitar um ambiente eleitoral com
disseminação de notícias falsas
- Um acordo
com especialistas em marketing político para que colaborem com a corte para
manter o ambiente imune da disseminação de notícias falsas
- Um
seminário internacional sobre o tema
Além disso,
disse que ministros do TSE examinam as representações que chegam ao tribunal
que reclamam de propaganda eleitoral irregular e notícias falsas - antes das
eleições, por exemplo, foi determinada a retirada de 35 conteúdos falsos ou
ofensivos contra a candidatura de Haddad (33 publicações no Facebook e dois
vídeos do YouTube).
O conselho
citado pela ministra foi criado no ano passado. No entanto, reuniu-se apenas
seis vezes desde então, segundo Thiago Tavares, representante da sociedade
civil no conselho e presidente da ONG SaferNet. A última reunião foi em junho,
há quatro meses. Além disso, diz ele, "muito da memória dos debates se
perdeu" durante a transição entre gestões do TSE.
Tavares
ressalta, contudo, que o TSE foi bem em seu "trabalho de articulação"
e convencimento de partidos políticos que assinaram o termo de compromisso para
a não difusão de notícias falsas.
Para ele, as
instituições devem se esforçar para "detectar e coibir ações das fábricas
de conteúdo falso". "Existe, claramente, fábricas de 'fake news',
atuação de fazendas de robôs e 'clusters' de chips de celular. E tem alguém
pagando por isso", diz. Polícia Federal e Exército também estão no
conselho.
Questionado
pela BBC News Brasil, a Polícia Federal disse ter ministrado "cursos
voltados à investigação de crimes eleitorais aos policiais federais que estão
atuando durante o pleito".
Mas há um
impedimento para investigações por parte da PF: a produção de notícias falsas,
por si só, não é crime. A PF só pode atuar quando houver algum crime na notícia
falsa divulgada, como calúnia, difamação, injúria, falsidade ideológica,
divulgação de fatos inverídicos na propaganda eleitoral, pesquisa eleitoral
fraudulenta.
"O
normal é que as supostas notícias falsas sejam encaminhadas para a Justiça
Eleitoral, que realizará uma análise prévia e, entendendo haver elementos
indicativos de crime, requisitará a instauração de inquérito à PF."
Problemas e
soluções - Para
a pesquisadora britânica Claire Wardle, que estuda o tema, instituições e
governo não devem agir em todos os casos. Mas ela defende a criação de uma
"sala de guerra" para os casos de desinformação ligada à integridade
das eleições - como o caso das acusações de fraude nas urnas.
"Nessas
situações, o governo deveria desempenhar um papel ativo. E as plataformas
também", diz ela, sugerindo uma ação conjunta para desbancar as notícias
falsas durante o dia do pleito. Para ela, esse tipo de desinformação é mais
impactante porque ameaça diretamente a democracia.
Wardle é
diretora de pesquisa do First Draft, laboratório ligado à Universidade Harvard,
e uma das idealizadoras do Comprova, a coalizão de 24 veículos de imprensa
criada para checar notícias falsas durante as eleições. Em dois meses, o grupo
fez 106 verificações - 98 foram de notícias falsas.
Na avaliação
de Tai Nalon, diretora da agência de checagem Aos Fatos, o TSE foi omisso no
dia do pleito. "Muita coisa a gente não pode fazer por falta de
informações. Tínhamos dificuldade de checar com TSE e TREs se as queixas de fraude
foram formalizadas, ou seja, se virariam denúncia efetivamente."
Ela sugere
que o TSE deixasse plantonistas dedicados a desmentir ou orientar procedimentos
sobre boatos, organizasse uma base de dados com o que foi formalmente
denunciado e, terceiro, "efetivamente responda aos questionamentos de quem
está combatendo notícias falsas".
Uma análise
detalhada e individualizada pelo TSE seria difícil de ser feita em larga escala
num dia como aquele, observa Cristina Tardáguila, diretora da Agência Lupa, de
checagem de notícias. Mas ela sugere que o TSE estimule os TREs a "terem
formas de responder os checadores com presteza" ou até tenham times -
"uma pessoa bastaria" - "para atuar em casos locais e verificar
sobre um vídeo, urna, denúncia específica".
"O
TRE-MG foi rápido e eficiente ao colaborar com a Lupa para classificar como
falso vídeo que mostrava uma urna que falsamente 'autocompletava' o 13. A
pro-atividade do TRE-MG deveria servir de exemplo para os demais
tribunais."
Além disso,
diz, é essencial que o site do TSE funcione - no dia do pleito, a página ficou
fora do ar durante bastante tempo. "Entendemos que é um dia muito
tenso, e que a Justiça Eleitoral não está aí para trabalhar para os checadores.
Mas era de se esperar que haveria muitas notícias falsas e que a suspeita de
fraude viria à tona", afirma Tardáguila.
Mas
ressalta: "Ainda há três semanas para ajustarmos as coisas. Dá tempo
suficiente para fazermos muitas coisas contra desinformação".(BBC)
Nenhum comentário:
Postar um comentário