O presidente eleito brasileiro
Jair Bolsonaro (PSL) deve romper uma tradição dos últimos governos
petistas e, em vez de ter a Argentina como seu primeiro destino internacional
após eleito, prometeu visitar o Chile, em data ainda a ser definida.O país de
17 milhões de habitantes, com acordos de livre comércio com mais de 60
mercados, entre eles Estados Unidos e China, deverá registrar um dos maiores
índices de crescimento econômico da América Latina neste ano, atrás apenas de
Bolívia, Paraguai e Peru, segundo o Fundo Monetário Internacional (FMI). Ao mesmo
tempo, ainda enfrenta uma dura herança social da ditadura militar (1973-1990).
A informação sobre a primeira
viagem de Bolsonaro foi dada no fim de outubro pelo futuro ministro-chefe da
Casa Civil, Onyx Lorenzoni (DEM). "O Chile é uma grande
referência latino-americana. Tem boa educação, gera tecnologia e hoje
comercializa com todo mundo. Temos que ter a humildade de olhar esse exemplo
com atenção", disse Lorenzoni, chamando o Chile de "farol da América
Latina".
O presidente chileno Sebastián
Piñera, um dos primeiros líderes internacionais a parabenizar Bolsonaro pela
vitória no segundo turno, convidou-o via Twitter e por telefone a visitar o
Chile. "Conversei longamente com o presidente eleito. O Brasil é um país
continental e um sócio importante para o Chile. E entendo que sua primeira
viagem internacional será ao nosso país", afirmou Piñera.
Mas o que atraiu Bolsonaro e
sua equipe ao Chile?
País com população e economia
muito menores que as do Brasil, o Chile foi o primeiro da América do Sul a
integrar, em 2010, a OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento
Econômico), o chamado "clube dos ricos" - e, embora ainda esteja
distante social e economicamente de seus pares do grupo, lidera o Índice de
Desenvolvimento Humano (IDH) na América Latina e tem a maior expectativa de
vida da região.
"Nós (Chile) vamos bem
quando nos comparamos em termos econômicos e sociais com outros países da
América Latina, como na redução da pobreza, nos índices de qualidade de
educação, no IDH e no aumento da renda per capita, que é de cerca de US$ 25 mil
(mais que o dobro da brasileira). Mas não tāo bem quando nos comparamos com os
países ricos da OCDE", diz o professor de Ciências Políticas e de Direito
da Universidade Autónoma de Chile Ricardo Israel, em entrevista à BBC News
Brasil.
O futuro superministro
anunciado por Bolsonaro para a Economia, Paulo Guedes, também tem laços com o
Chile: morou e foi professor universitário no país nos anos 1980, durante o
regime Pinochet, e é conhecido como um "Chicago boy" - estudou na
Universidade de Chicago, defensora de teorias econômicas liberais e aplicadas
no governo chileno.
'Pioneiro do neoliberalismo' -
A atual história econômica do Chile começa no início dos anos 1980, quando
abraçou o neoliberalismo durante a ditadura do general Augusto Pinochet
(1915-2006). Ele implementou a abertura da economia, o sistema de capitalização
da Previdência, o sistema privado de saúde e de educação - mesmo as
universidades públicas passaram a ser pagas, e muitas famílias ficaram anos
endividadas com bancos para bancar os estudos dos filhos. As mudanças geraram
um crescimento consistente da economia.
"O Chile foi pioneiro na
adoção do neoliberalismo: os princípios de interesse individual, propriedade
privada e supremacia do mercado financeiro foram implementados aqui antes mesmo
do Consenso de Washington, de 1989 (quando foi formulado um
"receituário" de medidas neoliberais à América Latina, como
privatizações, austeridade fiscal e reformas tributárias)", explica o
professor de Ciências Econômicas e Administrativas da Universidade de
Valparaíso Guillermo Holzmann.
Ao mesmo tempo, estima-se que
o regime Pinochet - que chegou a ser processado internacionalmente e preso por
crimes contra a humanidade - tenha deixado ao menos 40 mil vítimas, entre presos
políticos, torturados e mortos. Mas o chileno não esteve na mira da Justiça
apenas como resultado do regime brutal que comandou.
Após os ataques de 11 de
setembro, nos Estados Unidos, uma investigação do Senado americano, que buscava
informações sobre financiamento ao terrorismo, acabou se deparando com
informações que mancharam a imagem de Pinochet. O relatório do Senado descobriu
milhões do ex-ditador escondidos em um banco americano. Posteriormente, outras
contas, muitas com pseudônimos, foram encontradas em diferentes instituições.
Aos 91 anos, Pinochet morreu sem condenações. Em 2013, um juiz chileno concluiu
que não era possível estabelecer a origem de 18 milhões de dólares da fortuna
de Pinochet espalhada por centenas de contas no exterior e encerrou o processo.
Elogios no Brasil - O chileno
chegou a ser elogiado em discursos e entrevistas por Bolsonaro, que disse que o
ditador "fez o que tinha que ser feito para reconquistar o seu país"
e matou "baderneiros".
A despeito da ditadura, esse
modelo econômico chileno é mantido em grande parte até hoje, quase 40 anos
depois. O país foi governado 20 anos seguidos pela coalizão de centro-esquerda
chamada Concertação. Nem ela e nem os governos seguintes - como os dois
mandatos da ex-presidente socialista Michelle Bachelet ou os do atual
presidente, de direita, Sebastián Piñera - mudaram o sistema econômico.
O Chile segue sendo uma das
economias mais abertas do mundo, não importando a linha ideológica de seu
presidente. E encarou durante anos o título de um dos mais desiguais da América
Latina. Hoje, com o aumento da escolaridade e a partir de medidas adotadas
pelos governos democráticos, a desigualdade diminuiu e principalmente entre os
jovens, explica Israel.
Desde o retorno da democracia,
o país andino, banhado pelo oceano Pacifico, passou a viver uma espécie de
dicotomia - respeitando a espinha dorsal do modelo econômico herdado de
Pinochet, como a ampla abertura comercial, mas tentando
"aperfeiçoá-lo" na área social e paulatinamente condenando os militares
envolvidos em crimes cometidos durante a ditadura.
"O estilo chileno é do
passo a passo, tanto nas melhorias que estão sendo feitas na herança social
(deixada por Pinochet) como na área de direitos humanos", diz o professor
Ricardo Israel.
Ao mesmo tempo, a abertura
econômica provocou, segundo Holzmann, uma desindustrialização do país e uma
pressão maior sobre os trabalhadores.
País aberto em termos
comerciais, mas fechado para outros setores, como o comportamento, o Chile foi
um dos últimos países do mundo a permitir o divórcio, por exemplo. Mantém
restrições ao aborto semelhantes às do Brasil e em 2015 passou a permitir a
união civil homossexual.
Quanto à educação, após uma onda de protestos estudantis durante a gestão Bachelet, alunos de famílias com menor renda passaram a ter ajuda do Estado para estudar nas universidades públicas e pagas.
"Mas muitas famílias
continuam endividadas com os bancos para pagar o crédito que adquiriram para a
educação dos filhos, que foi outra herança de Pinochet", afirma Holzmann.
Hoje, afirmou, o governo
chileno oferece uma série de ajudas sociais aos mais pobres, como crédito com
juros baixos para a compra de imóveis. No caso da saúde, contou, o trabalhador
chileno pode optar para pagar para ter acesso ao sistema público ou privado.
Também neste caso pagando do próprio bolso, como vem dos tempos de Pinochet.
Analistas chilenos ouvidos
pela BBC News Brasil mostraram-se divididos diante do fato de a primeira visita
internacional de Bolsonaro ser ao Chile. O professor Israel entende que
é "uma boa surpresa". Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff
visitaram a Argentina - principal parceiro comercial do Brasil na região - em
suas primeiras viagens após eleitos. Já Fernando Henrique visitou o Chile antes
da Argentina, pouco depois de eleito em 1995.
"O Chile e o Brasil têm
uma amizade histórica desde o século 19 e quando, também por amizade pessoal,
os presidentes eram Fernando Henrique e Ricardo Lagos (anos 1990). Mas não
deixa de ser uma surpresa que Bolsonaro tenha escolhido o Chile como primeira
viagem", diz Israel.
Na visão de Holzmann,
"faz todo sentido" que a primeira visita internacional de Bolsonaro
seja ao Chile, pelo modelo de governo que ele sugere que pretende implementar a
partir de 1º de janeiro, quando tomará posse. "Bolsonaro quer a
abertura da economia. Mas um modelo neoliberal como o chileno só pode ser
implementado por ditaduras", opina.
O próprio Sebastián Piñera,
opositor do período de Pinochet, tem sido alvo de críticas da esquerda chilena
pela aproximação com Bolsonaro. O senador socialista Juan Pablo Letelier, por
exemplo, afirmou ser necessário ter "uma visão mais integral do que
significa Bolsonaro para o Brasil, a região e o mundo. Não é casual que as
manchetes de todos os jornais da Europa o chamem de ultradireitista".
Presidente Sebastián Piñera
Previdência Social - É
possível que Bolsonaro estude também o sistema previdenciário chileno, alvo de
controversas. Para a socióloga e cientista política Maria Rita Loureiro,
professora de Administração Pública e Governo da FGV-SP, "vai ser um
desastre" para o trabalhador se o Brasil copiar o modelo chileno de
Previdência Social.
Loureiro é autora de uma
pesquisa comparando os modelos de Previdência do Brasil, da Argentina e do
Chile. Para ela, o sistema, implementado na ditadura de Pinochet, não foi
pensado para o trabalhador, mas sim para o mercado de capitais. "O sistema de Previdência
chileno é perverso. Trata-se de uma capitalização compulsória, que deixou
somente os militares no sistema estatal, prejudicou principalmente as mulheres
(por exemplo, por impedi-las de continuar contribuindo durante a
licença-maternidade) e favoreceu o setor privado de aposentadorias
(AFPs)", opina a professora à BBC News Brasil.
"Por ter sido
implementada na ditadura, os trabalhadores não tiveram opção. A adesão ao
sistema privado foi obrigatória. Se o trabalhador se afastar do mercado de
trabalho, ele deixará de contribuir. Ou seja, deverá trabalhar mais para se
aposentar. E vi que muitas vezes os benefícios são muito baixos pelo tempo e pelo
que ele contribuiu."
No sistema chileno, explica
Israel, o trabalhador contribui à Previdência privada com 10% do seu salário
mensal, recolhidos pelo empregador e transmitidos às AFPs. O empregador não
contribui para a Previdência do empregado, embora Piñera tenha apresentado um
projeto que altere esse mecanismo e amplie o papel do Estado no sistema
previdenciário. O texto precisa ser aprovado pelo Congresso.
Segundo Loureiro, atualmente,
"além de pagar pela sua Previdência com uma parte do seu salário, o trabalhador
chileno ainda paga uma taxa para a administração dos seus recursos pelas AFPs.
Seria melhor ele colocar o dinheiro no banco, renderia mais. Mas a ditadura não
permitiu essa alternativa".
Economia - Há décadas, o
Mercosul namora esta maior aproximação comercial com o Chile, para, através
dele chegar, mais rápido aos mercados asiáticos. O Chile, assim como Peru e
Colômbia, são banhados pelo oceano Pacífico e formaram com o México a Aliança
do Pacífico, voltada para o comércio.
O Chile também tem atraído
algumas empresas do setor de tecnologia, como a Amazon, mas, segundo Holzmann,
os investidores internacionais costumam olhar para a região com dois focos: o
Brasil e a Argentina, que são as duas maiores economias da América do Sul. "Quando as duas economias
não estão em seus melhores dias, a do Chile também é afetada. Por exemplo, na
área de obras públicas", diz.
O modelo de mercado aberto faz
com que os preços dos eletrônicos, por exemplo, costumem ser mais baratos que
nos países vizinhos. Até recentemente, os argentinos lotavam aeroportos para
fazer compras de eletrônicos, eletrodomésticos e roupas em Santiago.
O Chile exporta principalmente
cobre (50%), sendo o maior exportador mundial do produto, e ainda alimentos e
serviços, como setores tecnológicos, que ainda são tímidos em termos de volume
em comparação com sua tradição de vender alimentos (frutas, peixes e vinhos,
por exemplo) ao mundo.
Segundo a assessoria de
imprensa da Direção Geral de Relações Econômicas Internacionais (Direcon), o
Chile tem acordos de livre comércio com 64 mercados, incluindo países da região
da Ásia-Pacífico, da União Europeia e da América Latina. As regiões com as
quais o país não tem acordo completo de livre comércio são a África e o Oriente
Médio. Ainda em termos de números, o Chile comercializa com 86,3% do PIB
(Produto Interno Bruto global) e com 63% da população mundial.
Procurada pela BBC News
Brasil, a assessoria de imprensa da Presidência do Chile não respondeu se a
visita de Bolsonaro já foi agendada. Procurado, o Itamaraty informou que
responderá pela agenda internacional de Bolsonaro depois que ele tomar posse.
(BBC)



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