Quando o esloveno Drago Kos assumiu a cadeira de chefe do grupo de
trabalho anticorrupção da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento
Econômico (OCDE), em 2014, o Brasil estava prestes a iniciar uma operação de
investigação que mudaria a história do país. A Lava Jato desbaratou um esquema
de corrupção bilionário na Petrobras e levou à cadeia ex-presidentes, dezenas
de congressistas e ex-congressistas, além dos principais CEOs de multinacionais
brasileiras.
Desde então, Kos segue com atenção os passos do país em punir políticos
e empresários em negociações corruptas. E, embora reconheça que o Brasil está
entre os melhores no mundo na investigação e combate aos delitos, Kos se diz
preocupado com possíveis "retrocessos" no cenário judiciário e
político do país.
Mais especificamente, ele se refere à aprovação da lei de abuso de
autoridade pelo Congresso — que abre brecha para a punição de juízes e
procuradores durante investigações — e às decisões do Supremo Tribunal Federal
que limitaram a comunicação de auditores fiscais com o Ministério Público e
impediram o uso de relatórios de movimentação financeira em investigações.
Nesse último caso, a decisão, tomada pelo presidente do STF, ministro
Dias Toffoli, em um processo de investigação sobre possíveis desvios de
recursos públicos do gabinete do filho do presidente Jair Bolsonaro, o
ex-deputado estadual e hoje senador Flávio Bolsonaro, é temporária. Ainda
assim, acendeu um alerta na equipe da OCDE.
Em novembro, Kos e seu grupo irão ao Brasil para verificar in loco o que
tem acontecido em Brasília. Em conversa com a BBC News Brasil, ele afirma que
as supostas mensagens trocadas por membros da força-tarefa da Lava Jato são
"eticamente questionáveis", mas não necessariamente indicam violações
legais e argumenta que os resultados obtidos pela operação tendem a ser mais
duradouros do que os alcançados pela Mani Pulite, da Itália, porque estão
apoiados em instituições e não apenas na boa vontade de alguns poucos
investigadores.
Veja a seguir os principais trechos da entrevista.
BBC News Brasil - O sr. acompanhou a luta contra a corrupção no Brasil
nos últimos anos e teme que estejamos em um momento de retrocesso. Por quê?
Drago Kos - No grupo anticorrupção estamos estudando o Brasil há muitos anos.
No começo, o Brasil estava longe de ser o melhor aluno da classe. Durante o
caso da Lava Jato, sua polícia, investigadores, procuradores e juízes fizeram
coisas que superaram o trabalho feito em muitos outros países. Eles melhoraram
tanto que são considerados uns dos melhores nisso no mundo.
Essa semana, no entanto, fizemos um comunicado público porque estamos
preocupados com o que tem acontecido. Esperamos que não seja um grande
movimento de retrocesso e sim apenas movimentos infelizes de algumas
autoridades. Por isso estamos indo ao Brasil, para ver diretamente o que está
acontecendo e estar em posição de avaliar se a vontade do Brasil de combater a
corrupção ainda segue em alto nível ou está desaparecendo.
BBC News Brasil-Quais são essas ações infelizes que o sr. menciona, que
poderiam ser retrocessos?
Kos- Vou
mencionar três coisas. Primeiro é a aprovação dessa lei de abuso de autoridade.
Estávamos preocupados porque a lei tem que ser estanque, não deve permitir
múltiplas interpretações. E, apesar das nossas advertências, a lei aprovada
ainda tem expressões que podem ser interpretadas de muitas maneiras diferentes
e intimidar e prejudicar as atividades e a independência de promotores e
juízes.
Em segundo lugar, a decisão do presidente do Supremo Tribunal Federal
(Dias Toffoli) de suspender temporariamente todas as investigações com base nas
informações da Unidade de Inteligência Financeira (UIF, ex-Coaf) do Brasil, que
não tenham passado por autorização judicial. Não pense que existem outros
países no mundo que adotariam esse sistema. Felizmente, é uma decisão
temporária. E vamos lá para ver quais foram os motivos e também para apresentar
nosso caso, explicar por que achamos que isso não é bom.
E a terceira também é a decisão do Supremo Tribunal Federal que
restringe a capacidade das autoridades tributárias de detectar, denunciar e
investigar corrupção ou lavagem de dinheiro. Ou seja, as autoridades públicas
não podem mais tomar a frente e informar a Justiça o que estão vendo. Essa é
uma limitação muito infeliz que pode levar ao ponto em que os investigadores
brasileiros deixarão de identificar delitos de corrupção.
Dirigente vê com preocupação decisão do STF, presidido por Dias Toffoli, que restringe a capacidade das autoridades tributárias de detectar, denunciar e investigar corrupção ou lavagem de dinheiro
BBC News Brasil - É surpreendente para o sr. que isso esteja
acontecendo depois que o país elegeu um presidente cuja plataforma eleitoral
era o combate à corrupção? Por que isso está acontecendo?
Kos - Essa
é a pergunta de um milhão de dólares. E essa também é uma das razões pelas
quais estou indo para o Brasil, porque gostaríamos de entender o que está
acontecendo. Não gostaríamos de julgar as coisas muito rapidamente, não
gostaria de especular se os problemas atuais têm ou não algo a ver com o novo
presidente. Temos que verificar todos os fatos e, talvez, em um mês, eu possa
responder à sua pergunta sobre o porquê.
BBC News Brasil - Sim, mas um dos pontos que o sr. mencionou como
preocupante está diretamente relacionado ao filho do presidente Jair Bolsonaro,
Flávio Bolsonaro. Ele é alvo de uma investigação sobre desvio de dinheiro
público e pediu ao STF que paralisasse investigações com informações
financeiras, o que o presidente da corte atendeu. Por isso pergunto sobre o
presidente.
Kos - Nós
não discutimos a situação do presidente nem de nenhum de seus parentes no grupo
anticorrupção, por isso prefiro não especular.
BBC News Brasil - Os acontecimentos recentes surpreendem, já que temos
como Ministro da Justiça o ex-juiz da Lava Jato Sergio Moro?
Kos- Sim,
mas estamos falando de decisões do Congresso e do STF. O Ministro da Justiça
tem pouco poder de influência sobre o Congresso e não pode interferir no
Supremo, por conta da independência do Judiciário. Então, indivíduos importantes
ocupando postos importantes às vezes contribuem para os resultados, mas às
vezes não.
BBC News Brasil - O senhor chegou a ver o vazamento de mensagens
atribuídas aos procuradores da Lava Jato e ao juiz Sergio Moro? Depois do
vazamento, a operação passou a ser mais questionada publicamente. Como vê esse
assunto?
Kos - Sem
dúvida, algumas das mensagens mostram um comportamento eticamente questionável,
mas, apesar das questões éticas, não ouvimos o suficiente para falar em
violações legais. Eu tenho confiança no sistema de justiça brasileiro. Se houve
alguma violação legal, tenho certeza de que o advogado das pessoas que foram
condenadas ilegalmente irá apelar contra essas violações maiores.
Por outro lado, a confiança dos cidadãos no sistema judicial foi abalada
um pouco por causa dessas mensagens. É evidente que o Judiciário precisa da
confiança de seus cidadãos. Mas isso não significa que legalmente havia algo
terrivelmente errado com as ações dos promotores e juízes no caso.
BBC News Brasil - Na sua avaliação, então, o que vimos até agora não
justificaria anulações de sentenças ou processos?
Kos - Não,
o que estou dizendo é que o sistema de justiça brasileiro terá a resposta para
isso. Estou dizendo que, por enquanto, não posso dizer que houve grandes erros
legais, porque acho que não vimos as outras instâncias do Judiciário reformar
profundamente as decisões da Lava Jato. De outro lado, as melhores intenções
podem nos levar ao inferno, então, as leis têm que ser respeitadas especialmente
por quem tem que combater a corrupção.
Ninguém pode argumentar que, como há um fim nobre, podemos simplesmente
ignorar a lei. Eu vi muitos países em que as autoridades acreditaram que era
razoável transigir a lei em nome desse bem maior, do combate à corrupção. O
resultado foi um retrocesso tão grande que deixou esses países em condição
ainda pior do que se via antes da tentativa de combater a corrupção.
BBC News Brasil - Às vezes, autoridades que combatem corrupção acabam
vistas como heróis. É uma visão correta?
Kos - Acho
que existem heróis na democracia, mas só são heróis aqueles que respeitam a
lei.
Atendendo a um pedido da defesa de Flávio Bolsonaro, filho do presidente Jair Bolsonaro, o ministro Dias Toffoli suspendeu todos os inquéritos abertos a partir de dados compartilhados por órgãos de controle como o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) e a Receita Federal.
BBC News Brasil- Considerando o contexto dessas mensagens e de possíveis
abusos e excessos de procuradores ou juízes nos processos, não faz sentido que
o Congresso aprove uma lei contra abuso de autoridade?
Kos - Não,
não necessariamente. O que ouvimos até agora são apenas questionamentos éticos
sobre o trabalho deles, não há uma violação legal comprovada, ao menos até
agora. Mas supondo que sim, houvesse violações legais, eu esperaria que uma lei
desse tipo fosse aprovada, mas não como foi. Existem muitos países com leis
contra abuso de autoridades, mas é preciso que o texto legal funcione, que não
amplie interpretações em temas tão importantes.
Estamos falando de juízes e procuradores em posição muito difícil, de
pressão e intimidação. Então se vamos falar sobre possíveis excessos dessas
autoridades, os termos desses excessos têm que ser muito claros e precisos e na
lei brasileira eles não são.
BBC News Brasil - Como o senhor vê a candidatura do Brasil à OCDE?
Kos - Uma
das razões pelas quais estamos indo apressadamente ao Brasil é que precisamos
resolver todas essas pendências quanto ao combate à corrupção para que possamos
dar luz verde à candidatura formal do Brasil à OCDE. Na OCDE, todos os grupos
de trabalho precisam aprovar a candidatura do país para que ele seja admitido.
Ainda não iniciamos o processo, mas vamos e o tempo para terminar é curto.
BBC News Brasil - Considerando seu conhecimento acumulado sobre o
Brasil, o que o sr. diria sobre a tentativa de ingresso do país na OCDE?
Kos - Em
termos gerais, e do ponto de vista do combate à corrupção, o Brasil com certeza
merece entrar na OCDE. É verdade que ainda temos que descobrir se estamos diante
de retrocessos na área, mas ainda que haja agora uma situação problemática,
certamente podemos lidar com ela e construir soluções. Na nossa história, vimos
países em condição muito pior que o Brasil e mesmo eles foram capazes de chegar
a bom termo para lidar com suas brechas e falhas sistêmicas.
O Brasil fez grandes progressos para fortalecer instituições, criar e
aplicar as leis. Mas é claro que queremos ter o melhor candidato possível,
então estamos indo ao Brasil para ver como podemos ajudar, encontrar soluções
para as questões para tornar o processo de ingresso suave e rápido.
BBC News Brasil - Como vê o apoio dos Estados Unidos ao Brasil?
Kos - Posso falar pelo meu grupo. Os representantes dos Estados Unidos no meu
grupo tomam decisões baseadas no mérito. Não vi qualquer interferência política
até agora em relação ao Brasil. E espero que isso continue assim.
BBC News Brasil - Aparentemente o Brasil tem melhores indicadores de
combate à corrupção do que outros candidatos que devem ser aceitos antes, como
Argentina e Romênia, não é?
Kos - Não podemos comparar países candidatos, mas certamente o Brasil é um dos
exemplos de combate à corrupção para o mundo. Normalmente o combate à corrupção
avança quando catástrofes acontecem. E o caso da Lava Jato é, sem dúvida, uma
catástrofe. Mas o Brasil soube agir da melhor maneira possível diante dessa
situação. Um caso difícil, com envolvimento do alto escalão político e de
personalidades muito importantes na vida do país, em que decisões apropriadas
foram tomadas à luz das instituições. Espero que esses três pontos preocupantes
de que falei não me façam mudar de ideia sobre os avanços do país.
BBC News Brasil - Muito se comenta sobre a trajetória da Itália, com a
Mani Pulite, que tinha um escopo de ação parecido com o da Lava Jato.
Kos - Podemos fazer algumas comparações entre Mani Pulite e Lava Jato. No caso
da Itália, havia um pequeno grupo de investigadores dedicados a desbaratar a
corrupção e a Máfia. No Brasil, o número de investigadores, procuradores,
juízes envolvidos é muito maior. Há de fato um sistema institucional de combate
à corrupção, e é por isso que os resultados tendem a ser mais duradouros e com menos
retrocessos do que o que aconteceu na Itália.
Sempre que um ciclo de combate à corrupção é muito efetivo, aqueles que
estiveram tentando se livrar das garras da Justiça vão tentar se reorganizar
para lutar de volta. Isso é o esperado. No caso do Brasil, esperamos que não
estejamos vendo agora esse retrocesso do processo.
(Fonte: BBC)
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