"A Bíblia
voltou ao palácio", declarou a presidente interina da Bolívia, a senadora
Jeanine Áñez, ao tomar posse na semana passada. Alguns dias antes, Fernando
Camacho, uma das principais vozes no processo que levou à renúncia de Evo
Morales, entrou com a Bíblia em mãos no mesmo edifício e disse que "Deus"
retornaria ao "governo".
Os dois são
católicos e contaram com o apoio de setores conservadores da igreja e de
lideranças evangélicas para enfraquecer Morales.
Nos últimos anos, menções a Deus e a
passagens da Bíblia parecem ter se multiplicado em discursos políticos, e o
apoio evangélico se tornou instrumental na ascensão de líderes de direita na América Latina e
nos EUA.
No Brasil, os
evangélicos são a principal base eleitoral do presidente Jair Bolsonaro. Nos
Estados Unidos, não é diferente — Donald Trump contou com o apoio das igrejas
pentecostais para se eleger.
Para o
historiador americano Andrew Chesnut, autor de dezenas de livros e artigos
sobre o crescimento das igrejas pentecostais, a forte influência dos
evangélicos na ascensão e queda de líderes é uma das principais
"tendências" da política atual do continente americano.
"Até no
México, onde a população pentecostal é pequena, de apenas 8%, um partido
político fundado por um pastor pentecostal ajudou a eleger o atual presidente
do país, Andrés Manuel Lopez Obrador", disse Chesnut à BBC News Brasil.
"A
influência política evangélica é uma das tendências políticas mais importantes
das últimas quatro décadas no continente americano", completa o professor,
que leciona na Virginia Commonwealth University e assina diversas publicações
sobre o papel da religião na América Latina, entre elas o livro Born Again in Brazil:
Pentecostal Boom and the Pathogens of Poverty.
Mas o que explica essa influência crescente
da religião na política de países do continente? E por que igrejas evangélicas
têm conseguido cada vez mais adeptos entre os latino-americanos?
Em entrevista à BBC News Brasil, Chesnut
listou 5 fatores que ajudam a responder essas perguntas: a coesão ideológica
dos evangélicos, o que facilitaria articulações políticas; o fato de os ritos
das igrejas evangélicas serem mais "condizentes" com aspectos da
cultura da América Latina; a adoção de regras menos rígidas para a formação de
sacerdotes, permitindo maior inserção nas camadas mais pobres; a criação de
redes de apoio em comunidades carentes; e a capacidade de ecoar pensamentos
compartilhados por setores conservadores da classe média e alta.
O que explica essa influência crescente da religião na política de países do continente?
Crescimento
das igrejas evangélicas - e a entrada delas na política
O continente americano tem vivido uma
acentuada queda no número de católicos, ao mesmo tempo em que houve grande
aumento na população evangélica.
Segundo o Pew Research Center, principal
centro de pesquisa sobre religiões, de 1900 a 1960, os católicos eram 94% da
população da América Latina.
Mas esse percentual caiu drasticamente.
Levantamento de 2014 do mesmo instituto mostrou que 84% dos entrevistados
cresceram como católicos, mas apenas 69% continuavam a se identificar como tal.
Em contraste, só 9% dos latino-americanos
foram criados como evangélicos, mas 19% dizem seguir essa religião atualmente.
No Brasil, o percentual de evangélicos é ainda maior: de acordo com pesquisa
Datafolha, eles já são 29% dos brasileiros, enquanto os católicos deixaram de
ser maioria para representar 50% da população.
Segundo Andrew
Chesnut, que estuda o movimento pentecostal há 25 anos, uma característica
importante acompanha o crescimento no número de evangélicos no continente
americano: o engajamento político de líderes e integrantes dessa religião.
O pesquisador
destaca que os católicos são um grupo mais "heterogêneo", com
segmentos ligados à esquerda e outros à direita. Essa pluralidade, na prática,
dificultaria uma mobilização política coordenada.
"Dentro do catolicismo você tem setores
conservadores, ligados ao Opus Dei, por exemplo, e mais progressistas, como os
membros da teologia da libertação. Então, há mais diversidade e isso torna a
tarefa de fazer uma aliança católica mais difícil", explica.
"Já os evangélicos são mais homogêneos
politicamente. Isso facilita a união e as alianças para eleger determinados
políticos."
No Brasil, setores evangélicos formam uma das principais bases de apoio de Jair Bolsonaro
Bolsonaro,
Camacho e... Trump
Os exemplos mais recentes e evidentes da
força evangélica na política são a eleição de Jair Bolsonaro e a queda de Evo
Morales, na Bolívia. Os dois episódios contaram com apoio crucial de setores
evangélicos.
Na queda de Morales, uma figura ligada à ala
mais conservadora da Igreja Católica e a lideranças evangélicas ganhou
protagonismo: Luis Fernando Camacho.
Ele atua como presidente do Comitê Cívico
Pró-Santa Cruz, uma entidade que reúne cerca de 200 instituições, entre
associações de moradores, trabalhadores de direita e empresários. O comitê
funciona na cidade mais populosa da Bolívia, Santa Cruz de la Sierra, e é
chamado de "governo moral".
As constantes menções de Camacho ao
"poder de Deus" e o costume de citar trechos da Bíblia fizeram como
que chegasse a ser chamado pela imprensa internacional de "Bolsonaro
boliviano".
Foi ele o principal articulador dos protestos
de rua que culminaram na retirada do apoio da polícia e das Forças Armadas ao
governo Morales. Camacho tem o costume de iniciar seus discursos com uma oração
e, ao entrar no antigo Palácio do Governo, em La Paz, poucas horas antes da
renúncia do presidente, depositou uma Bíblia em cima da bandeira boliviana.
Para Chesnut,
Camacho e Bolsonaro têm características em comum.
"A
Bolívia, é interessante, porque é um país mais predominantemente católico que o
Brasil. Na faixa de 70% dos bolivianos ainda são católicos. Mas, na retirada de
Morales do poder, vimos uma forte influência evangélica", avalia.
"Camacho é mais ou menos como Bolsonaro.
Ele segue sendo católico, mas tem uma grande influência pentecostal e tem os
pentecostais como grandes aliados. E o discurso dele é 100% pentecostal."
A senadora Jeanine Áñez, que se autoproclamou
presidente interina da Bolívia após a saída de Evo Morales, segue a mesma
linha. Ela entrou ao Palácio de Governo, em La Paz, erguendo uma enorme Bíblia
e, atrás de um altar montado com velas e a imagem de Jesus crucificado, se
empossou.
"Um aspecto importante do papel que a
religião tem exercido em governos latino-americanos é a existência de uma
convergência entre os evangélicos e os católicos conservadores", diz
Andrew Chesnut.
Embora os exemplos brasileiro e boliviano de
influência religiosa na política sejam contundentes, o professor americano diz
que a tendência de crescimento da força evangélica nos governos não é
característica apenas da América Latina.
Segundo ele, o fenômeno teve início nos
Estados Unidos, começou a ganhar força na América Latina na década de 80, com a
ascensão de um pastor evangélico como presidente da Guatemala, e pode ser visto
claramente hoje no governo de Donald Trump.
De acordo com
reportagem do jornal Washington Post, 61% dos pastores evangélicos dos Estados
Unidos manifestaram, num levantamento, intenção de votar em Trump na eleição de
2016. E o presidente americano mantém relações de proximidade com lideranças
evangélicas famosas no país.
"Nos EUA,
os evangélicos são uma das principais bases eleitores de Trump", diz
Chesnut. Segundo ele, um dos reflexos da aproximação do presidente americano
com setores religiosos é a decisão de transferir a embaixada dos Estados Unidos
em Israel de Tel Aviv para Jerusalém.
Bolsonaro chegou a anunciar que faria o
mesmo, para atender ao pleito de grupos evangélicos que se baseiam em
intepretações bíblicas para defender que Jerusalém deve ser
"protegida" e habitada pelos judeus. O presidente brasileiro acabou,
no entanto, decidindo abrir um escritório comercial na cidade, após forte
pressão de países árabes e do setor exportador de commodities, que temia
retaliações comerciais.
"Uma das agendas importantes atuais para
os evangélicos é o apoio a Israel", afirma o professor Andrew Chesnut.
E o que tornou
as igrejas evangélicas tão atrativas para o público?
Além da coesão ideológica, que facilita a
articulação política dos evangélicos, Chesnut lista quatro fatores que teriam
contribuído para o sucesso do movimento pentecostal entre os latino-americanos.
Um deles é o fato de as igrejas evangélicas adotarem ritos "mais
condizentes com a cultura dos povos da região".
Nesse sentido, as músicas de louvor e a
maneira mais informal e direta de os pastores discorrerem sobre trechos da
Bíblia cumpririam papel importante.
Outro aspecto listado pelo pesquisador são as
redes de apoio criadas pelas igrejas evangélicas para intervir em problemas das
comunidades, como casos de alcoolismo, criminalidade e dependência química.
O terceiro fator seria o critério flexível
para a formação de sacerdotes — os bispos e pastores.
"Uma grande vantagem que as igrejas
pentecostais têm é que os pastores podem se casar e não há os mesmos requisitos
educacionais. Um sacerdote católico é parte da elite latino-americana quanto ao
nível educacional", diz.
"Essa
facilidade de não exigir uma extensa formação acadêmica nem a castidade
permitiu uma entrada maior das igrejas pentecostais nas camadas mais
pobres."
Além disso, o
pesquisador destaca que setores conservadores da classe média e alta dos
Estados Unidos e da América Latina passaram a ver suas posições ecoadas nas
novas igrejas evangélicas. Entre essas agendas estão a preocupação com o ensino
sexual nas escolas, o temor do que chamam de "ideologia de gênero", e
a posição firmemente contrária à flexibilização de leis relacionadas ao aborto.
"Havia uma população que compartilhava
desses valores: defendia uma agenda anti-LGBT, o antifeminismo e era contrária
à legalização do aborto. Essas pessoas não tinham lideranças para representar
essas perspectivas da maneira desejada", diz Chesnut.
Na Bolívia, principais líderes de oposição a Evo Morales, Fernando Camacho e Jeanine Áñez,
contaram com apoio de setores católicos e evangélicos
E qual o
impacto dessa influência religiosa na política?
Para o professor americano, o principal temor
relacionado ao aumento da ingerência evangélica na política é o de que líderes
eleitos com o apoio desses setores acabem aprovando políticas públicas que, na
prática, discriminem outros credos religiosos ou que signifiquem retrocessos na
conquista de minorias.
"No caso da Bolívia, já vimos
comentários racistas por parte da presidente interina. Lá, alguns setores
pentecostais enxergam as religiosidades indígenas como satânicas ou
pagãs", diz Chesnut.
No Brasil, o pesquisador diz perceber o risco
de surgimento de uma atmosfera de intolerância contra religiões de matriz
africana. Chesnut fala português e viveu vários anos no Brasil, onde pesquisou
o impacto da religiosidade na sociedade e na política.
Ele lembra
que, em agosto, a polícia do Rio de Janeiro prendeu traficantes evangélicos
integrantes do chamado "Bonde de Jesus", grupo acusado de promover
ataques a igrejas de matriz africana e de expulsar praticantes de candomblé e
umbanda das favelas da Baixada Fluminense.
"Há uma
preocupação de que as religiões indígenas e afro-brasileiras possam sofrer
perseguições com os pentecostais no poder. Grupos violentos podem se sentir
impunes ou estimulados a agir dessa maneira", diz Chesnut.
Mas o historiador destaca que o fenômeno do
crescimento das igrejas evangélicas vem acompanhado de um movimento bem
diferente e que também pode vir a influenciar o cenário político do continente:
o aumento no número de pessoas que dizem não ter religião alguma.
"Além do crescimento das igrejas
evangélicas, há em vários Estados dos EUA e em vários países da América Latina,
inclusive no Brasil, um crescimento rápido das pessoas que não têm nenhuma
filiação religiosa. No Brasil, eles já formam quase 10% da população",
diz.
E as características desse grupo são opostas
às que costumam definir os setores evangélicos e católicos conservadores.
"Eles são mais jovens, sabemos que a tendência é de serem de esquerda e
mais liberais nos costumes. E estão crescendo quase tão rapidamente quanto os
pentecostais."
Resta saber qual dos dois setores terá mais
influência eleitoral nos próximos anos.
(BBC)
Nenhum comentário:
Postar um comentário