A conflituosa relação entre o presidente Jair
Bolsonaro e povos indígenas brasileiros ganhou um novo capítulo neste mês,
quando membros de 45 etnias se reuniram em uma aldeia em Mato Grosso para
protestar contra o governo.
No encontro, convocado pelo cacique kayapó Raoni
Metuktire entre os dias 14 e 17 de janeiro, os indígenas afirmaram em um
manifesto "que está em curso um projeto político do governo brasileiro de
genocídio, etnocídio e ecocídio".
"As ameaças e falas de ódio do atual governo
estão promovendo a violência contra povos indígenas, o assassinato de nossas
lideranças e a invasão das nossas terras", diz o texto, redigido ao fim da
reunião, na aldeia Piaraçu, na Terra Indígena Capoto Jarina.
Participaram do encontro e endossaram o manifesto
algumas das principais organizações indígenas brasileiras, como a Articulação
dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), a Coordenação das Organizações Indígenas
da Amazônia Brasieira (Coiab) e a Aty Guasu (Grande Assembleia Guarani Kaiowá).
As organizações dizem representar a ampla maioria
das comunidades indígenas brasileiras. A BBC News Brasil questionou o Palácio
do Planalto e a Funai (Fundação Nacional do Índio) sobre as críticas feitas ao
governo durante o evento, mas não recebeu qualquer resposta.
Uma associação indígena simpática
a Bolsonaro protestou contra o encontro. Em nota, o Grupo dos Agricultores
Indígenas disse que as visões expostas no evento convocado por Raoni não eram
compartilhadas por todos os povos indígenas.
O grupo é liderado por membros da
etnia paresi, que plantam soja em suas terras, também em Mato Grosso, e têm
relação próxima com o governo. A entidade diz representar várias etnias, mas
não cita quais.
A disputa espelha o complexo
universo dos povos indígenas brasileiros. Segundo o IBGE, há no Brasil 305
etnias indígenas, que falam ao menos 274 línguas.
Parte dos grupos se relaciona há
séculos com a sociedade envolvente (não indígena): entre seus membros
há estudantes universitários, moradores de zonas urbanas e servidores
públicos.
Na outra ponta, há dezenas de
etnias em isolamento voluntário, cujos membros não dominam o português e só se
relacionam esporadicamente com comunidades vizinhas. Os demais povos se
encontram entre esses dois extremos.
Em algumas etnias, há líderes com
visões divergentes quanto ao modo de vida que deve ser perseguido pelas
comunidades. É o caso de caciques kayapós que se associaram a garimpeiros e
defendem a regulamentação da mineração em terras indígenas — posição rechaçada
pelos kayapós alinhados a Raoni, que dizem ser maioria.
A BBC News Brasil lista abaixo os
principais pontos de conflito entre Bolsonaro e os indígenas críticos a seu
governo:
1. Demarcações paralisadas
Durante a campanha presidencial,
Bolsonaro disse que não demarcaria nenhuma terra indígena se fosse eleito — e
tem cumprido a promessa. Disse ainda que buscaria reduzir áreas já demarcadas,
o que ainda não fez.
As terras indígenas demarcadas
pertencem à União e são destinadas à "posse permanente" e ao
"usufruto exclusivo" dos indígenas, não podendo ser vendidas.
Bolsonaro já defendeu entregar os
títulos das terras para as comunidades para que elas possam negociá-las — a
medida, porém, exigiria uma mudança constitucional.
Hoje, segundo a Funai, já foram
concluídos 440 processos de demarcação de terras indígenas no país. Essas áreas
correspondem a 12,6% do território nacional e se concentram na Amazônia.
Segundo o Censo de 2010 do IBGE,
há 817,9 mil integrantes no Brasil — 0,4% da população total do país. É por
isso que Bolsonaro costuma dizer que "há muita terra para pouco índio no
Brasil".
Porém, embora várias etnias de
fato contem com amplas áreas demarcadas, muitas tiveram pequenos territórios
demarcados ou ainda aguardam a regularização de suas terras.
É o caso, por exemplo, de grande
parte das etnias que habitam as regiões Sul, Sudeste, Centro-Oeste e Nordeste,
onde muitas terras reivindicadas pelas comunidades são cobiçadas ou ocupadas
por não-indígenas, o que travou muitos processos.
Segundo a Funai, há 248 processos
de demarcação de terras indígenas em curso. Essas áreas equivalem a um décimo
das terras já demarcadas, ou 1,2% do território nacional.
O caso dos guarani kaiowá, de Mato
Grosso do Sul, é emblemático. Embora sejam o segundo povo indígena mais
numeroso do Brasil, com cerca de 43 mil integrantes segundo o IBGE, muitos
membros da etnia vivem em reservas superpovoadas, onde sofrem com problemas
comuns a bairros de periferia de grandes cidades.
Outros vivem acampados em áreas
hoje ocupadas por fazendas e que as comunidades reivindicam como territórios
ancestrais. Nos últimos anos, conforme o ritmo de demarcações diminuiu, muitas
comunidades recorreram à Justiça para tentar destravar os processos.
Elas argumentam que demarcar
terras indígenas é um dever constitucional do governo.
Em seu artigo 231, a Constituição
de 1988 diz que "são reconhecidos aos índios sua organização social,
costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras
que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer
respeitar todos os seus bens".
Também foi a Constituição que
abriu o caminho para a demarcação de terras extensas em partes do Brasil ao
reconhecer o direito dos indígenas à reprodução física e cultural, onde
pudessem manter tradições como a caça, a pesca e a abertura de roças, além de
criar novas aldeias ou movê-las periodicamente.
A Carta estabeleceu um prazo de
cinco anos para que todas as terras fossem demarcadas, o que não foi cumprido.
Hoje, segundo o IBGE, 42% dos
indígenas vivem fora de terras indígenas.
2. Mineração em terras indígenas
Bolsonaro defende que as terras
indígenas sejam abertas para atividades econômicas de grande escala, como a
mineração e o agronegócio.
Em várias ocasiões, ele afirmou
que os indígenas não podem "continuar sendo pobres em cima de terras
ricas", referindo-se principalmente aos depósitos minerais presentes em
territórios indígenas na Amazônia.
O presidente tem se aproximado de
indígenas favoráveis à mineração e disse que enviaria ao Congresso um projeto
de lei para regulamentar a atividade. Segundo ele, a iniciativa melhorará os
padrões de vida das comunidades.
A Constituição prevê a
possibilidade de mineração em terras indígenas, mas desde que a atividade seja
regulamentada por lei. Como nenhuma lei sobre o tema foi aprovada, a prática é
hoje ilegal.
Apesar disso, em algumas terras
indígenas, garimpeiros atuam há décadas, geralmente com o aval de algumas
lideranças locais.
Indígenas críticos à regularização
da mineração temem os impactos ambientais e sociais da atividade em suas
terras. Em garimpos de ouro, por exemplo, é comum o uso de mercúrio, substância
que contamina rios e peixes e pode provocar danos neurológicos em humanos.
Há ainda o receio de que o
ingresso de forasteiros para trabalhar nas minas traga doenças e estimule a
prostituição de mulheres indígenas.
3. Expansão do agronegócio
Bolsonaro diz que também enviará
ao Congresso uma proposta para autorizar a agropecuária em grande escala em
terras indígenas. Segundo o presidente, a expansão da pecuária nesses
territórios poderia ajudar a baixar o preço da carne bovina no país.
Hoje a maioria das comunidades
indígenas pratica uma agricultura tradicional, voltada ao consumo dos próprios
moradores ou a mercados locais.
O cacique Bedjai Txucarramãe carrega ramas de mandioca
na Terra Indígena Capoto Jarina, em Mato Grosso
Mas há exceções. Nos últimos anos,
algumas comunidades passaram a arrendar suas terras para produtores de grãos.
As iniciativas são contestadas judicialmente, pois a Constituição estabelece o
"usufruto exclusivo" dos indígenas sobre as riquezas do solo, rios e
lagos de seus territórios.
Em Mato Grosso, indígenas da etnia
paresi passaram eles próprios a cultivar soja, milho e feijão com máquinas
modernas em 18 mil hectares (o equivalente a 18 mil campos de futebol) de seu
território.
O governo diz que, com a
regulamentação, as comunidades poderão ter acesso a mecanismos hoje disponíveis
para outros agricultores brasileiros, como financiamentos e assistência
técnica.
Já os críticos apontam para os
riscos associados à produção agropecuária em larga escala, como a contaminação
por agrotóxicos e a perda da biodiversidade.
Há ainda o temor de que as
atividades econômicas vultosas impactem os modos de vida das comunidades,
provocando o abandono de tradições e estimulando o individualismo.
4. Cultura e integração
Bolsonaro costuma dizer que os
indígenas devem ser "integrados" à sociedade nacional — mesmo
discurso adotado pelo governo durante a ditadura militar (1964-1985).
Ao discursar na Assembleia Geral
da ONU, em setembro, o presidente afirmou que "algumas pessoas, de dentro
e de fora do Brasil, apoiadas em ONGs, teimam em tratar e manter nossos índios
como verdadeiros homens das cavernas".
Em outras ocasiões, disse que os
indígenas são "pobres coitados" e que "nosso projeto para o
índio é fazê-lo igual a nós".
A Constituição de 1988, no
entanto, reconheceu a organização social, os costumes, as línguas, as crenças e
as tradições dos indígenas, rompendo com a perspectiva integracionista adotada
pelo Estado brasileiro até então.
Líderes indígenas dizem que, ao
tratar da cultura indígena, Bolsonaro expõe visões racistas e etnocêntricas
(crença de que uma cultura é superior às demais).
O discurso que associa os
indígenas à pobreza também é contestado, especialmente em comunidades que vivem
na floresta e contam com recursos naturais abundantes, como caça, pesca e
frutos.
Muitos líderes criticam ainda o
discurso de que seriam manipulados por ONGs. Eles dizem que as entidades são suas
parceiras e que, muitas vezes, preenchem a ausência do Estado em suas regiões.
5. Órgãos indigenistas
Quando assumiu, Bolsonaro
transferiu a Fundação Nacional do Índio (Funai) do Ministério da Justiça para o
Ministério da Agricultura e retirou do órgão a atribuição de demarcar terras
indígenas.
As mudanças agradaram à bancada
ruralista, que exerce forte influência sobre o Ministério da Agricultura e
historicamente vê a Funai com desconfiança.
Mas os indígenas protestaram e
conseguiram fazer com que o Congresso revertesse as decisões do presidente.
Após o revés, Bolsonaro publicou uma nova Medida Provisória tentando novamente
retirar da Funai a atribuição de demarcar terras indígenas, mas desta vez foi
impedido pelo Supremo Tribunal Federal.
Em julho, o presidente nomeou para
a chefia da Funai o ex-delegado da Polícia Federal Marcelo Augusto Xavier da
Silva, que é próximo de ruralistas.
Para a chefia da Secretaria
Especial de Saúde Indígena (Sesai), Bolsonaro nomeou a fisioterapeuta Silvia
Nobre Waiãpi, indígena da etnia Waiãpi, do Amapá.
O movimento indígena, porém, diz
que a secretária não tem representatividade e nem experiência relevante no
setor. Em 2019, duas vezes indígenas ocuparam a sede da Sesai em Brasília em
protesto contra a gestão de Waiãpi.
Em março, o governo chegou a
cogitar extinguir a Sesai, mas recuou após uma forte reação contrária entre
indígenas. (Fonte: BBC)
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