
Entre 24 e 28 de janeiro, em sua primeira
viagem oficial em 2020, o presidente Jair Bolsonaro foi o convidado de honra da
principal celebração pública da Índia, o Dia da República, e teve seu rosto
estampado em enormes cartazes espalhados por toda a capital Nova Déli.
A mesma homenagem já foi feita a autoridades
como a rainha Elizabeth 2ª, Nelson Mandela e dois outros brasileiros: os
ex-presidentes Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva.
Bolsonaro
também teve uma série de reuniões com empresários e políticos indianos. A única
fala pública do presidente ocorreu em um seminário com CEOs de empresas
indianas e brasileiras — em seu discurso, Bolsonaro pediu para "confiarem
no Brasil porque o Brasil mudou".
Para
especialistas nas relações entre os dois países, Bolsonaro e o
primeiro-ministro indiano, Narendra Modi, guardam semelhanças que podem significar
uma parceria estratégica para além da economia.
Os
dois se elegeram após escândalos de corrupção engolirem antecessores de
centro-esquerda. Eles trouxeram a direita de volta ao poder e prometeram
reformas, economias mais modernas e mais empregos. Resgataram uma retórica
nacionalista, embalada por forte discurso religioso, por ataques a opositores e
por elogios ao passado.
De outro lado, ambos são frequentemente
descritos como "ameaças à democracia". São alvos de críticas no
exterior e de desconfiança de minorias. Falam constantemente em fake news em
ataques à imprensa, ao mesmo tempo em que se beneficiam da polarização do
eleitorado, que rende aos dois alcance e enorme popularidade nas redes sociais.
Em seu segundo mandato como homem forte do
país, o nacionalista hindu Narendra Modi é chamado por seguidores de
"messias" — ou alguém que chegou ao poder para resolver os problemas
do país. Bolsonaro, sabe-se, é conhecido no Brasil como "mito".
Raio-X da relação bilateral
É
consenso entre analistas e membros dos dois governos que as trocas comerciais
entre Brasil e Índia estão aquém do seu potencial.
Os
indianos ocupam apenas o quarto lugar entre os parceiros comerciais brasileiros
na Ásia, atrás de China, Coreia do Sul e Japão.
Para
efeito de comparação, as trocas comerciais entre Brasil e China chegam a US$
100 bilhões por ano. Com a Índia, também um gigante asiático com população
acima de 1 bilhão de pessoas e parte do clube das cinco maiores economias do
mundo, as trocas ficam muito muito atrás: US$ 7,1 bilhões em 2019, segundo o
Itamaraty.
Na
avaliação de um oficial do governo que preferiu não se identificar, "o
Brasil vê a Índia hoje como via a China há 20 anos".
"A
cooperação entre os dois países não avançou por profundo desconhecimento e
muitas vezes preconceito, apesar de ambos terem nível de desenvolvimento
semelhante, potenciais complementares e convergência política", disse.
Hoje, os principais produtos vendidos pela
Índia para o Brasil são pesticidas e defensores agrícolas, materiais têxteis e
peças de automóveis.
Do outro lado, o Brasil vende principalmente
petróleo bruto, açúcar, soja e ouro.
A
Índia tem superávit na relação comercial: as exportações brasileiras, segundo o
Itamaraty, ficaram em US$ 2,76 bilhões em 2019, enquanto a importações vindas
da Índia foram de US$ 4,26 bilhões.
Distantes
entre si, os países parecem saber pouco um do outro.
Na
avaliação do professor indiano Umesh Mukhi, que vive no Brasil há um ano e é
professor do Departamento de Administração da FGV, "normalmente a Índia só
aparece no contexto do Brics, nunca como nação independente", diz,
acrescentando que "a compreensão coletiva dos brasileiros sobre o chefe de
Estado indiano é baixa ou inexistente".
Do
lado indiano, a situação não seria muito diferente.
"Quando
o primeiro-ministro Modi foi eleito, em 2014, ele fez referências a vários
países. Estados Unidos, Alemanha, Rússia... O Brasil também não estava lá.
Apareceu junto aos Brics, mas não individualmente."
"O
desconhecimento também é uma oportunidade para aprofundamento da relação",
avalia.
Defesa
Em
comunicado conjunto, Bolsonaro e Modi anunciaram que as trocas comerciais entre
os dois países devem saltar dos US$ 7,1 bilhões atuais para US$ 15 bilhões em
2022 — pouco mais do dobro do valor atual.
Três
temas se destacam nos debates econômicos da viagem oficial: defesa, etanol e
agronegócio.
Como a BBC News Brasil mostrou
no último sábado, um grupo de 10 CEOs de grandes empresas
brasileiras de armas, munição, equipamentos de vigilância, aviação e
inteligência militar acompanhou a comitiva oficial de Bolsonaro.
Oficiais
do Ministério da Defesa, junto a CEOs da Altave, Atech, Avibras, Companhia
Brasileira de Cartuchos, Condor, Embraer, Iveco, Macjee, Omnisys e Taurus
participaram pela primeira vez na história de um seminário conjunto de
indústrias de Defesa dos dois países.
Nenhuma das empresas, nem os canais oficiais
do ministério da Defesa, haviam anunciado a viagem antes da reportagem.
"Os líderes reiteraram a importância da
cooperação bilateral abrangente na área de defesa para fortalecer a Parceria
Estratégica", diz o comunicado assinado por Modi e Bolsonaro.
O
primeiro resultado concreto foi a assinatura, depois de 11 meses de
negociações, de joint venture da Taurus Armas com a Jindal Group, maior
fabricante de aço da Índia, para a construção de uma fábrica em território
indiano, com tecnologia brasileira.
As
ações da Taurus dispararam logo depois do anúncio.
Bolsonaro em visita ao Templo de Akshardham, em Nova Déli
Etanol
Além
da defesa, o etanol foi uma das palavras mais repetidas pela delegação
brasileira durante a viagem.
O
Brasil é o maior produtor de etanol vindo da cana-de-açúcar do mundo, enquanto
a Índia é a maior produtora mundial de cana-de-açúcar.
"A
possibilidade de cooperação com a Índia servirá para apoiar a criação do
mercado mundial de etanol", disse a ministra da Agricultura, Teresa
Cristina, em um seminário com empresários durante a visita. "Do ponto de
vista da Índia, podemos mencionar a redução da poluição nas grandes cidades,
maior suprimento de energia renovável e a redução da dependência das
importações de petróleo."
Junto
à ministra, o ministro de Minas e Energia, Bento Albuquerque, chegou antes do
presidente Bolsonaro país para costurar um projeto de parceria com o país
asiático com o objetivo de transformar o etanol em uma commodity global.
Os
dois países assinaram termos de cooperação para desenvolvimento conjunto de
tecnologias de produção na tentativa de ampliar as exportações do etanol — um
biocombustível, portanto alternativa mais limpa ao petróleo.
É
cedo, no entanto, para saber se a ambição vai se confirmar. Na primeira década
dos anos 2000, o ex-presidente Lula tentou fazer o mesmo em parceria com o
então presidente americano George W. Bush, mas não houve avanços concretos.
Entre
os 15 acordos assinados na viagem, um Memorando de Entendimento sobre
Cooperação em Bioenergia se relaciona a esse tema. Outro memorando prevê a
cooperação para a construção, ainda sem previsão, de Centro de Excelência na
Índia para Pesquisas em Bioenergia.
Agronegócio
A
ministra da Agricultura anunciou como primeiro resultado concreto da viagem a
abertura do mercado indiano para exportações brasileiras de gergelim, e, do
outro lado, a abertura do mercado brasileiro para exportações indianas de
sementes de milho.
Em
2019, o Brasil exportou US$ 24,6 milhões em gergelim — o mercado mundial do
produto cresce e movimentou R$ 3 bilhões no ano passado, segundo o ministério
da Agricultura.
A
Índia também se comprometeu a estudar a possibilidade de comprar abacate,
cítricos e madeira de ipê do Brasil. Já o Brasil vai avaliar a compra de
milheto, sorgo, canola e algodão vindos da Índia.
Os
dois países também assinaram uma declaração de Colaboração na Área de Pecuária
e Produção Leiteira.
Durante encontro aberto à imprensa, ao lado
de Bolsonaro, Modi disse que "o Brasil é um parceiro valioso na
transformação econômica da Índia e uma fonte confiável para nossas necessidades
nos campos de alimentos e energia".
Espécie de guarda-chuva para a viabilização
de todas as propostas, o principal acordo assinado entre os dois países é o de
Cooperação e Facilitação de Investimentos.
O
documento é visto como peça-chave para a segurança jurídica das novas trocas
comerciais.
Política
O
principal paralelo entre os dois líderes — ressaltado pelos próprios, inclusive
— é o nacionalismo.
Na
noite de sábado, Eduardo Bolsonaro, deputado federal e filho do presidente,
disse a jornalistas que Jair Bolsonaro "elogiou a liberdade religiosa
presente aqui na Índia" e "falou que se sentiu confortável em estar
em um país que não é cristão, mas foi muito bem acolhido" durante sua
reunião bilateral com o primeiro-ministro indiano.
"Os
dois são notoriamente nacionalistas, defendem seus países, são avessos a alguns
fóruns internacionais e acredito que há muita química nessa relação",
disse Eduardo Bolsonaro.
Já o
ministro de Relações Exteriores, Ernesto Araújo, disse em um seminário que
Índia e Brasil hoje têm "convergência de ideias e visões de mundo".
Para o
chanceler, o país liderado por Narendra Modi "está se modernizando sem
abrir mão de suas tradições e valores, e está se construindo a partir de suas
raízes e essência e não a partir dos dogmas dos que formam o mundo
pós-nacionalista ou antinacionalista".
"Apenas
nações que se reconhecem como nações podem aspirar ser algo no mundo. Essa é a
lição da Índia e também a que o Brasil está tentando dar ao mundo."
No
comunicado conjunto assinado durante a viagem, os dois líderes anunciaram que
vão se apoiar na meta conjunta dos seus países de conquistar uma cadeira
permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas.
Para
isso, eles querem ampliar o conselho por meio de uma reforma, incluindo novos
assentos nas categorias permanente e não permanente.
A meta
é aumentar a representação de países em desenvolvimento no conselho.
Esta é
uma vontade antiga, segundo analistas, e sua concretização depende da vontade
dos cinco países ricos que hoje têm cadeira permanente no Conselho de Segurança
com direito a veto — Estados Unidos, Rússia, Reino Unido, França e China.
Energia nuclear
O
presidente Bolsonaro reforçou o apoio brasileiro à candidatura da Índia ao
Grupo de Supridores Nucleares (o NSG), que tem 48 países, incluindo o Brasil.
O
grupo foi criado justamente depois de um teste nuclear feito pela Índia em
1974. O exercício gerou um alerta entre outras potências nucleares de que
tecnologias nucleares usadas para fins pacíficos pudessem ser revertidas e
transformadas em armamento.
Os
membros então se reuniram com o objetivo de prevenir a proliferação de armas
nucleares por meio de controles na exportação de materiais e de tecnologia.
Os
indianos têm o apoio, além do Brasil, de países como EUA, Reino Unido, França e
Rússia para entrar no grupo. A China, porém, se opõe reiteradamente à entrada
indiana no grupo. Segundo os chineses, não há coerência em permitir a entrada
da Índia, mas proibir a do Paquistão.
O
apoio brasileiro é discutido pelos dois países desde pelo menos 2006 — quando
Lula se encontrou com o então premiê Índia, Manmohan Singh, durante a primeira
visita de um chefe de governo indiano ao Brasil desde 1968. Em 2016, o Brasil
anunciou apoio oficial.
(Fonte: BBC)
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