Em meio a uma alta de 18% no
preço das carnes em 2020, o consumo de proteína bovina pelos brasileiros caiu
no ano passado ao menor nível em mais de duas décadas.
A perspectiva para 2021 é de que os preços da carne de boi continuem em alta, como resultado da oferta restrita de gado no país e forte demanda da China. Isso num cenário de menor disponibilidade de renda dos brasileiros, com desemprego recorde, avanço da pandemia e fim do auxílio emergencial.
Diante desse quadro, a
expectativa de analistas é de uma nova queda no consumo interno de carne bovina
esse ano, o que deve levar o acesso à proteína preferida pelos brasileiros a
níveis anteriores à década de 1990.
"Quem mais sofre nesse
cenário são os consumidores", diz Rodrigo Queiroz, analista de mercado da
Scot Consultoria, especializada em cotações do agronegócio.
Consumo é o
menor desde pelo menos 1996
Segundo
dados da Conab (Companhia Nacional de Abastecimento), o consumo brasileiro de
carne bovina foi de 29,3 quilos por habitante em 2020, uma queda de 5% em
relação aos 30,7 quilos por habitante de 2019, ano em que o consumo já havia
recuado 9%.
O patamar
de 2020 é o menor da série histórica da Conab, que tem início em 1996.
E
representa uma redução de 13,5 quilos por habitante em relação ao ponto máximo
da série, de 42,8 quilos por habitante em 2006, durante o primeiro governo Lula
(PT).
A Conab
mede o chamado consumo aparente ou disponibilidade interna per capita, que é o
volume produzido, descontadas as exportações e somadas as importações. O número
para 2020 é uma estimativa, já que ainda não há dados fechados para a produção
pecuária no ano passado.
Os dados da
Conab consideram apenas a carne bovina fiscalizada. Mas, considerando a
produção informal, a tendência é a mesma.
Segundo
estimativa da consultoria Agrifatto, levando em conta a produção formal e
informal, o consumo de carne bovina teria caído 11% em 2020, para 34 quilos por
habitante, contra 38,2 quilos por habitante em 2019.
Preço da
carne de segunda foi o que mais subiu
No ano
passado, o preço das carnes subiu 17,97%, segundo o IPCA (Índice Nacional de
Preços ao Consumidor Amplo), bem acima da alta de 4,52% da inflação em geral.
Dos cortes
bovinos analisados pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística),
apenas o nobre filé-mignon teve queda de preço em 2020, de 6,28%. Já a picanha
(17,01%), o contrafilé (12,71%) e a alcatra (5,39%) ficaram mais caros no ano
passado.
As carnes
de segunda, mais consumidas pela população de baixa renda, cujos rendimentos
foram impulsionados pelo auxílio emergencial em 2020, foram as que mais
subiram, com alta de 29,74% da costela, aumento de 27,67% do músculo e avanços
de 26,79% e 20,75%, respectivamente, do cupim e do acém.
A alta das
carnes nos supermercados acompanhou o aumento do preço do boi no campo.
A arroba do
boi gordo fechou 2020 cotada a R$ 267,15, uma alta de 29% em relação ao final
de 2019, segundo o Cepea da Esalq/USP (Centro de Estudos Avançados em Economia
Aplicada, da Escola Superior de Agricultura "Luiz de Queiroz" da
Universidade de São Paulo).
Somente nos
primeiros 15 dias de 2021, o preço do boi gordo já subiu 7,77%.
Falta gado
e sobra demanda chinesa
"Há
uma combinação de fatores que explica a alta no preço do boi", diz Lygia
Pimentel, diretora-executiva da Agrifatto. "O mais determinante é o ciclo
pecuário: entre 2016 e 2018, nós abatemos muitas fêmeas no Brasil, com isso, o
preço do bezerro subiu muito e diminuiu a oferta de gado pronto para
entregar."
Desde o
final de 2019, com o preço dos chamados animais de reposição (bezerro, boi
magro e garrote) em alta, os produtores passaram a reter as fêmeas nas fazendas
para produzir novos animais. Com menos fêmeas "indo para o gancho",
na linguagem dos pecuaristas, a oferta de gado para abate ficou reduzida no ano
passado e a tendência é que a retenção de fêmeas continue ao longo desse ano,
já que o preço do bezerro segue nas alturas.
"O
segundo fator importante certamente foi a China, porque, nos outros mercados
compradores de carne brasileira — Egito, Rússia, Chile, Estados Unidos —, houve
retração", diz Pimentel, destacando ainda o papel da alta do dólar nesse
impulso às exportações para a China, o que reduz a oferta de carne no mercado
interno, levando à alta de preços.
A analista
destaca que a participação do país asiático nos embarques brasileiros de carne
bovina chegou a 40,9% em 2020, comparado a 25,3% em 2019 e 6,5% em 2015.
E que, com
esse impulso chinês, a participação das exportações na produção total de carne
bovina brasileira chegou a 28% no ano passado, contra 24% em 2019 e 19,3% em
2015.
Forte
demanda da China ainda é reflexo da gripe suína
O
coronavírus em 2020 tornou o quarto surto de gripe suína da China em 2018 uma
lembrança distante. Mas é essa epidemia que ainda repercute na forte demanda
chinesa por proteínas.
"Ainda
não houve resolução para a peste suína africana. Ninguém sabe o número exato,
mas se estima que ela dizimou entre 40% e 60% do plantel de suínos na China,
isso representa mais ou menos um terço da produção de carne de porco do
mundo", diz Rodrigo Queiroz, da Scot Consultoria.
Com essa
redução na oferta de suínos, os chineses têm consumido mais frango e carne
bovina, daí o forte aumento da demanda naquele país.
Além desse
fator conjuntural, também contribuíram para o crescimento das importações pela
China o fato de ela ter sido a única grande economia do mundo a registrar
crescimento em 2020, mesmo em meio à pandemia do coronavírus, e um fator mais
de longo prazo, que é o gradual aumento de renda da população chinesa, o que
resulta em maior consumo de proteínas mais caras, como é o caso da carne
bovina.
Quem se
beneficia da alta de preços?
Segundo os
analistas, a alta de preços do boi gordo tem impacto distintos na cadeia
pecuária.
Os
pecuaristas que trabalham com engorda e recria chegaram a perder margem no ano
passado, já que o farelo de soja subiu 100%, o milho subiu 70% e o bezerro,
mais de 80% dependendo da categoria.
"Por
mais que o boi tenha subido de preço, os custos de produção variaram
acima", observa Pimentel, da Agrifatto. Segundo ela, pecuaristas que
trabalham com o ciclo completo — produzindo o bezerro, engordando ele e
vendendo o boi dois anos depois - tiveram margens melhores, porque seu estoque
se valorizou.
Já entre os
frigoríficos, a diferença está entre os pequenos dedicados ao mercado interno e
os maiores, com certificação para exportar.
"O
frigorífico que trabalha exclusivamente com o mercado doméstico foi muito
prejudicado em 2020, porque o preço do boi gordo subiu muito e o preço da carne
no atacado não acompanhou na mesma medida, então ele perdeu margem."
Segundo
Paulo Bellincanta, presidente do Sindifrigo-MT (Sindicato das Indústrias de
Frigoríficos de Mato Grosso), foram muitos os frigoríficos que precisaram fazer
ajustes para sobreviver ao ano passado.
"Toda
indústria tem uma linha de equilíbrio de produção, com uma série de custos
fixos. Quando o abate fica muito abaixo da capacidade da empresa, aumenta o
custo no produto final, isso se reflete nesse preço maior que estamos vendo na
ponta, com a carne mais cara para o consumidor", diz Bellincanta, que
estima que a ociosidade da indústria frigorífica esteve entre 15% e 25% ao
longo de 2020, sendo que o normal é uma folga em torno dos 10%.
E o que
esperar para 2021?
No ano que
se inicia, as perspectivas não são melhores, já que a renda e a demanda do
brasileiro devem diminuir, mas os preços da carne tendem a continuar em alta,
devido à escassez de oferta e à forte demanda externa.
"Com o
desemprego acima dos 14% e a extinção do auxílio emergencial, o consumidor
brasileiro de baixa renda vai para proteínas alternativas, como ovo, frango e
suíno, que também estão com valores altos, mas a carne bovina é a que mais
sente quando o poder aquisitivo da população diminui", diz Queiroz, da
Scot Consultoria.
"Esperamos
uma nova queda do consumo per capita de carne bovina esse ano, voltando a
patamares antigos, de 20, 30 anos atrás", completa.
"Esperamos
uma nova queda do consumo per capita de carne bovina esse ano, voltando a
patamares antigos, de 20, 30 anos atrás", completa.
"O
consumo de qualquer tipo de alimento de valor agregado maior é determinado por
renda, preço e preferência", diz Carvalho. "A carne bovina de
primeira é a que tem maior elasticidade entre as carnes, em torno de 0,6. Ou
seja, se a renda aumentar 10%, o gasto com carne bovina de primeira aumenta 6%.
Para carne de segunda, a elasticidade é de 0,2."
"Nesse
primeiro semestre, com o fim do auxílio, o consumo cai no mercado brasileiro,
sem sombra de dúvida", diz o pesquisador, ponderando que o quadro pode ser
melhor na segunda metade do ano, caso a economia venha a se recuperar, levando
a um aumento da renda.
O problema
não acaba em 2021
Pimentel,
da Agrifatto, avalia que os preços das carnes devem permanecer pressionados
pelo menos até a metade de 2022, por conta do ciclo pecuário. "A baixa
oferta de boi gordo não é algo que se consegue resolver de imediato. A produção
de bovinos é plurianual, começa a produzir hoje, para entregar esse animal
daqui dois, três, quatro anos. Então demora."
Já
Bellincanta, do Sindifrigo-MT, avalia que, mesmo quando houver aumento da
oferta de gado, os preços da carne bovina não voltarão aos níveis do passado,
devido a mudanças na indústria pecuária que tornaram o processo de produção
mais custoso.
"O
Brasil, a cada dia que passa, tem menos animais sendo terminados a pasto. O
grande rebanho brasileiro hoje é terminado em confinamento", diz o
empresário. "Há cerca de dez ou 15 anos atrás, havia menos de 20% de
animais terminados a cocho, hoje é mais da metade. Esses animais comem grãos, e
por isso são finalizados em 18 a 24 meses, comparado a três a quatro anos
quando o animal era solto no pasto."
"Então
teremos uma proteína mais cara sem data, não há volta nesse processo. A arroba
do boi ganhou valor e terá oscilações, mas estará sempre em novo patamar."
(BBC)
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