Poast argumenta
que a participação ativa na guerra vai bem além do envio de tropas a um campo
de batalha. Para ele, armar ou financiar um dos lados de um conflito é também
participar ativamente dele. E por isso, tanto os Estados Unidos quanto a
Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) - que nas últimas semanas não
só enviaram bilhões de dólares em ajuda aos ucranianos como aplicaram as
maiores sanções econômicas da história à Rússia de Vladimir Putin - já poderiam
ser considerados partícipes da guerra atual.
Assim, na prática,
as maiores potências econômicas mundiais e bélicas (Rússia, Estados Unidos e
Europa Ocidental), já estariam em confronto direto, e já viveríamos o princípio
da Terceira Guerra Mundial.
Há precedentes
históricos para apoiar a interpretação de Poast. O principal deles, segundo o
cientista político, seria o próprio ataque dos japoneses a Pearl Harbor, ato
que arrastou os americanos para os campos de batalha da Segunda Guerra Mundial.
De acordo com o
pesquisador, o ataque do Japão ao território americano, em dezembro de 1941,
aconteceu porque os japoneses se viram incapazes de vencer a guerra que lutavam
na China e atribuíam seu insucesso na Ásia às sanções impostas pelos americanos
ao petróleo japonês e ao auxílio financeiro e armamentício que o governo dos
EUA vinha oferecendo à China.
Por esse mesmo
raciocínio, Poast acredita que é apenas uma questão de tempo - e de capacidade
de organização e força militar - para que a Rússia ataque a Polônia, por onde
hoje escoam a maior parte dos comboios de ajuda da Otan e dos EUA para a
Ucrânia. Isso, no entanto, acarretaria em uma importante escalada da guerra, já
que a Polônia é membro da Otan, o que implicaria que os demais países da
aliança viriam a seu socorro nos campos de batalha.
Leia a seguir os
principais trechos da entrevista de Poast à BBC News Brasil, editada por
clareza e concisão.
BBC News Brasil -
Já estamos vivendo uma guerra mundial sem que ainda tenhamos compreendido
completamente isso?
Paul Poast - Temos
ouvido do presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, que nós já estamos na
Terceira Guerra Mundial, e outros líderes e pensadores têm dito coisas
semelhantes.
A minha resposta é
que depende de como se define guerra. Algumas pessoas usam a expressão Terceira
Guerra Mundial para se referir a um conflito em que as armas nucleares estão
sendo usadas e, portanto, seria realmente uma guerra muito curta porque seria a
aniquilação nuclear. Outros dirão que uma guerra mundial tem que acontecer em
vários locais ao redor do mundo ao mesmo tempo. Ou seja, não pode ser apenas
como na guerra atual, apenas na Ucrânia, mas teria que incluir dois ou três
continentes. Mas, na minha opinião, você não precisa necessariamente ir tão
longe.
A chave para
definir se algo é uma guerra mundial é realmente pensar sobre até que ponto
diferentes países estão participando desse conflito. E isso está muito
relacionado a outro conceito que muitos formuladores de políticas e estudiosos
usam, que é a noção de uma guerra entre grandes potências, algo que muitos
defendem que não acontece desde a Segunda Guerra Mundial.
Então, minha
resposta é que acho que podemos estar nos estágios iniciais do que os
historiadores podem dizer mais tarde ser o início de uma guerra mundial, mesmo
que armas nucleares nunca sejam usadas.
BBC News Brasil -
E por que pensa isso?
Poast - A
razão pela qual digo isso é porque, em primeiro lugar, você já tem uma grande
potência envolvida diretamente, a Rússia. Em segundo lugar, embora outras
grandes potências, como os Estados Unidos, não lutem na guerra diretamente,
estamos muito perto disso. Os Estados Unidos estão abertamente fornecendo todos
os tipos de armas à Ucrânia para combater a Rússia. E o fato de não fazerem em
segredo, como no Afeganistão, quando a União Soviética invadiu o Afeganistão em
1989, é algo que realmente diferencia a guerra atual das chamadas guerras por
procuração mais tradicionais, quando as potências apoiam um dos lados de forma
velada, sem divulgar isso abertamente.
O Iêmen é um ótimo
exemplo de uma guerra por procuração entre, digamos, a Arábia Saudita e o Irã,
que vivem em uma espécie de guerra fria há décadas, na qual os dois países têm
tentado evitar conflitos militares diretos entre si, mas têm investido em
muitos conflitos militares indiretos no Iêmen.
Mas no conflito da
Ucrânia, os lados são muito claros. De um lado, temos a Rússia, com alguma
ajuda da Bielorrússia e tentando ajuda de outros países como a China. De outro
lado, a Ucrânia com a Otan, os Estados Unidos e vários outros países do chamado
Ocidente que os apoiam. E então, nesse sentido, as linhas de batalha, os lados
são muito claros. O campo de batalha é muito claro. E também, novamente, o
apoio na participação dos lados é muito claro. Então, nesse sentido, ele tem
muitas características das coisas que você procuraria ao tentar dizer que algo
é uma guerra entre grandes potências e, dependendo de quantas grandes potências
estão envolvidas, você pode dizer que é realmente uma guerra mundial.
A única coisa que
atualmente levaria alguém a dizer que não estamos em uma guerra mundial é que
ainda não temos aquele confronto militar direto entre, digamos, as forças da
Otan ou os Estados Unidos contra a Rússia. Mas se você olhar para comentários
que Zelensky e outros fizeram, há um tom de que isso inevitavelmente deverá
acontecer e, quando os historiadores olharem para esse período, dirão que em
fevereiro 2022, quando a guerra começou, os lados já recebiam assistências de
outros países e, eventualmente, isso alimentou o confronto militar direto. Mas
essa é a única coisa que ainda não vimos. É uma grande coisa, claro, mas todo o
restante dos fatores já indica para uma guerra mundial.
BBC News Brasil -
O governo americano tenta estabelecer limites para a
participação dos EUA na guerra. Biden já disse que não enviará combatentes
americanos para lutar contra os russos em território ucraniano, mas não parece
ver como participação de guerra o envio de armas e recursos financeiros. No
entanto, a participação dos americanos nas duas guerras mundiais começou
exatamente pelo auxílio econômico e armamentício que os americanos enviaram aos
seus aliados. Então, como explicar essa linha de não participação que
parece bastante artificial?
Poast - Acho
que artificial é a palavra certa aqui. Uma grande área da minha pesquisa é o
que chamo de economia política da guerra ou economia da guerra, então levo muito
a sério a ideia de fornecer fundos, suprimentos, recursos e sobre como isso é
tão vital para a guerra. Para mim, se você é o financiador/ fornecedor
essencial, você é um contribuinte-chave para o esforço de guerra. E por isso é
difícil dizer que você não é um participante dessa guerra. E por isso essa
palavra artificial é muito importante, porque se olharmos para a participação
dos EUA na Segunda Guerra Mundial, em particular, os americanos foram
fundamentais para suprir os aliados por muitos anos antes de diretamente se
envolverem nos conflitos.
Entre 1940 e 1941,
embora os EUA não enviem tropas oficialmente para a guerra até 1942, eles já
estão fornecendo as armas e, do ponto de vista da Alemanha, do ponto de vista
de Hitler, já estão envolvidos no conflito e já são vistos como uma grande
ameaça. E, portanto, da perspectiva do inimigo, não importa muito se você
declarou guerra ou se se reconhece como parte da guerra, se ao financiar ou
armar um dos lados você se torna o principal motivo pelo qual o inimigo está
perdendo essa guerra ou está tendo mais dificuldade para vencê-la.
É possível ver que
o Putin opera com essa lógica de entender a ajuda para a Ucrânia vinda do
Ocidente, da Otan, dos Estados Unidos, como parte do conflito. Ele inclusive
fez declarações sobre como essas sanções já são uma guerra econômica. Da
perspectiva de Putin, ele já está em guerra com o Ocidente, com os Estados
Unidos. Para ele, não importa que ainda não tenham sido usadas tropas
americanas. Claro que é possível dizer que importa, já que a presença do
exército americano seria um ponto-chave de escalada no conflito. Mas se Putin
continuar tendo seu progresso militar frustrado na Ucrânia, ele dirá que a
causa disso é a assistência que está sendo fornecida pelos Estados Unidos, pela
Otan. E então, de sua perspectiva, não é uma luta entre a Rússia e a Ucrânia,
ele se vê lutando contra o Ocidente na Ucrânia. Por isso que eu acho que
artificial é uma boa palavra, porque sim, Biden pode dizer que ainda não está
em guerra, mas Putin vê a situação de forma diferente.
BBC News Brasil -
E, de acordo com seu raciocínio, Putin não está errado em pensar assim.
Poast - Sim.
Há quem questione esse raciocínio dizendo: bem, Putin ainda não atacou um país
da Otan, se ele realmente acha que estava em guerra com a Otan, ele já não
teria atacado a Polónia? E a resposta pode ser, bem, o tempo dirá. Pode ser que
nas próximas semanas ele ataque a Polônia. E pode ser que ele não o tenha feito
ainda porque não tem a capacidade de abrir uma nova frente militar por conta
das dificuldades grandes na Ucrânia. Ele pode, na verdade, ser alguém racional
o suficiente para dizer 'não quero disparar uma arma nuclear porque ainda não
estou em uma situação desesperadora o suficiente para fazer isso'.
Mas acredito que
se ele tivesse condições militares um pouco melhores, ele já teria expandido
essa guerra. No início da guerra, eu falei sobre como, dependendo de quão fácil
fosse conquistar a Ucrânia - o que obviamente se mostrou bastante difícil -
Putin procuraria expandir o conflito para os países vizinhos, então acho que a
única razão pela qual ele ainda não atacou outros pontos da Europa ocidental é
que ele simplesmente não conseguiu vencer ainda na Ucrânia, e por isso não tem
como redirecionar forças.
BBC News Brasil -
Mas isso seria um cenário em que as intenções de Putin vão muito além da
Ucrânia. Na sua avaliação, o que Putin deseja com sua ofensiva militar?
Poast - Acho
que seu objetivo final era recriar pelo menos uma parte do Império da União
Soviética, possivelmente até mesmo do Império Russo. E percebe-se isso em sua
retórica antes da invasão. E se tivesse sido fácil, creio que ele teria buscado
a anexação completa da Ucrânia para tornar a Ucrânia não apenas um estado
independente subserviente à Rússia, mas realmente torná-la parte da Rússia. E
se ele tivesse conseguido isso, acho que teria mirado em outras ex-repúblicas
soviéticas que não estão totalmente alinhadas com a Rússia, como a Moldávia ou
a própria Geórgia. E se isso se mostrasse fácil o suficiente, ele se voltaria
para os estados bálticos, embora, é claro, os estados bálticos sejam um cenário
totalmente diferente porque estão na Otan.
Agora, na minha opinião, ele teve que ajustar seu objetivo. Acredito que ele ainda espera conseguir uma mudança de regime na Ucrânia. O cenário, no entanto, é que ele pode acabar em um atoleiro na Ucrânia, de onde não quer recuar, mas onde também não consegue avançar em seu objetivo final.
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