"A maioria das crianças que eu vi era completamente saudável antes
da covid. Elas praticavam esportes e atividades fora da escola", afirma
Buonsenso.
"E, agora, elas não conseguem voltar para sua rotina escolar normal
porque têm dor de cabeça ou dificuldade de concentração depois de algumas
horas."
Buonsenso foi o primeiro médico a pesquisar se as crianças seriam
vulneráveis à covid longa. Como muitos pediatras, ele observou crianças com
sintomas persistentes de fadiga, insônia, dor nas articulações, problemas
respiratórios, erupções na pele e palpitações cardíacas, que podem permanecer
por meses depois de debelada a infecção
Buonsenso afirma que é fundamental que as crianças não sejam deixadas
para trás nos estudos de doenças pós-covid. Ele indica que, da mesma forma que
acontece com os adultos, mesmo as crianças que são assintomáticas ou apresentam
a forma leve da doença podem desenvolver problemas duradouros.
Acreditava-se que as crianças, de forma geral, seriam menos vulneráveis
aos efeitos de longo prazo da covid-19 e que, quanto mais novas, menor seria o
risco. O motivo poderia ser o fato de que as crianças mais novas possuem menos receptores
ACE2 — a porta de entrada que o vírus usa para invadir as nossas células pelo
nariz e pelo trato respiratório.
Mas o surgimento da variante ômicron — que é mais infecciosa que as
formas anteriores de covid-19 — e da sua nova subvariante BA.2, aumentou em
muito a proporção de crianças infectadas pelo vírus.
Segundo um relatório dos Centros de Controle e Prevenção de Doenças dos
Estados Unidos, as taxas de internação hospitalar por covid-19 entre crianças e
adolescentes com menos de 17 anos aumentaram rapidamente no fim de dezembro de
2021, quando a variante ômicron começou a se alastrar. Isso foi particularmente
observado entre crianças de 0 a 4 anos, que ainda não podem ser vacinadas.
Comportamento similar foi verificado no Reino Unido, onde as
estatísticas indicavam, no início de fevereiro de 2022, que havia tido um
aumento da proporção de crianças internadas em hospitais com covid-19 durante a
onda de ômicron, especialmente com menos de um ano.
Embora a ampla maioria das crianças se recupere rapidamente, os especialistas
ainda estão preocupados com os primeiros sinais que indicam que as taxas de
covid longa entre elas podem estar aumentando.
"Estamos observando atualmente um crescimento do número de crianças
diagnosticadas com condições pós-covid", afirma Carlos Oliveira, pediatra
responsável pelo programa de atenção pós-covid do Hospital Infantil Yale New
Haven em Connecticut, nos Estados Unidos.
"No nosso hospital, por exemplo, o número de crianças e
adolescentes diagnosticados com condições pós-covid neste mês [janeiro] já é
mais de três vezes superior ao verificado nos meses de verão (do Hemisfério
Norte). Outros países estão observando tendências similares."
Isso é confirmado pelos dados mais recentes do Escritório de
Estatísticas Nacionais do Reino Unido, que concluiu que o número de crianças
com menos de 16 anos que relataram apresentar covid longa de qualquer duração
aumentou de 77 mil em outubro de 2021 para 119 mil em janeiro de 2022.
Para atender a este forte aumento do fluxo de pacientes, o Reino Unido criou
15 centros pediátricos especializados para fornecer tratamento pós-covid. Os
Estados Unidos e vários outros países estão fazendo investimentos similares.
O Hospital
Infantil de Los Angeles recebeu US$ 8,3 milhões (R$ 39,7 milhões) em auxílio,
especificamente para estudar a covid longa em crianças e adultos jovens, como
parte de uma iniciativa nacional chamada Recover, que pretende desvendar os
mistérios em torno das sequelas da covid-19.
O risco
aparentemente mais alto de covid longa em crianças também vem sendo usado para
defender o aumento da vacinação de crianças contra a doença. Estudos em adultos
associaram a vacinação contra a covid-19 à redução do risco de desenvolvimento
de sintomas da covid longa.
Mas, enquanto os
EUA, o Reino Unido e muitos outros países europeus, como a França e a Espanha,
estão agora vacinando crianças de 5 a 11 anos, os imunizantes ainda aguardam
autorização para uso em crianças com menos de 5 anos.
Mas uma das
principais questões continua sendo tentar descobrir o quão comum a covid longa
é em crianças.
Cientistas da
University College de Londres (UCL), no Reino Unido, revelaram recentemente a
primeira definição padronizada desta condição, como sendo um conjunto de
sintomas que prejudicam o bem-estar físico, mental ou social das crianças e
persistem por pelo menos 12 semanas após o primeiro teste positivo para
covid-19.
A expectativa é de
que esta definição facilite o estudo da evolução da doença e seus vários
desdobramentos, permitindo que os pesquisadores compreendam precisamente por
que muitas crianças são afetadas.
Em setembro de
2021, pesquisadores da UCL e da agência governamental de saúde pública Public
Health England divulgaram algumas das primeiras respostas concretas, depois de
examinarem 3.065 pacientes de 11 a 17 anos que testaram positivo para covid-19
entre janeiro e março de 2021.
Concluiu-se que de
2% a 14% dos adolescentes ainda sofriam de fadiga, falta de ar e dores de
cabeça persistentes 15 semanas depois do teste PCR positivo — em um percentual
maior do que um grupo controle que testou negativo para o vírus.
Na mesma época, o
Ministério da Saúde de Israel publicou uma pesquisa mostrando que 11,2% das
crianças relataram sintomas de covid longa como parte da sua recuperação,
enquanto de 1,8 a 4,6% continuaram a apresentar sintomas seis meses depois.
Pediatras
responsáveis por clínicas pós-covid acreditam que a incidência, na verdade,
varia na faixa de 10%. Mas outros cientistas indicam que os dados são frágeis
pelo fato de que mais da metade das crianças sem covid-19 também apresentou
dores de cabeça, fadiga, distúrbios do sono e problemas de concentração durante
a pandemia.
Muitas pesquisas
sobre sintomas pós-covid persistentes em crianças não comparam crianças
infectadas com covid-19 com grupos de controle não infectados, o que poderia
gerar uma sobrerrepresentação da incidência dos sintomas.
Por isso, muitos
cientistas acreditam que ainda são necessários estudos mais rigorosos para determinar
com precisão o verdadeiro risco da covid longa, particularmente com a variante
ômicron. E é provável que, à medida que mais crianças sejam vacinadas contra
covid-19, os números se alterem.
Para Buonsenso,
seja qual for a verdadeira incidência de covid longa em adolescentes e crianças
mais novas, o número elevado de infecções pelo vírus significa que muitas
pessoas nesta faixa etária estão sofrendo.
"Mesmo se a
incidência da covid longa for de 2%, por exemplo, ainda será um número muito
alto se considerarmos as centenas de milhares de crianças que estão contraindo
covid", diz ele.
Por que razão
exatamente as crianças desenvolvem sintomas da covid longa ainda é outro
mistério.
Oliveira contou à
BBC que, em alguns casos, as crianças podem apresentar lesões nos órgãos
provocadas pelo Sars-Cov-2, o vírus causador da covid-19.
Ele pode invadir o
coração ou o pâncreas, causando pericardite ou pancreatite — a inflamação
destes órgãos respectivamente, que pode levar a problemas respiratórios e
outras complicações de longo prazo. Mas isso é relativamente raro.
Há diversas
teorias para explicar a ocorrência de covid longa em adultos, que vão da
reativação de um vírus dormente até fragmentos virais persistentes dentro do
corpo e reações autoimunes induzidas pelo vírus, com os chamados autoanticorpos
se ligando a células em diferentes tecidos.
O mesmo poderia
acontecer em crianças, mas outra ideia que vem sendo considerada como possível
mecanismo para a covid longa em crianças e adultos é o fato de que o vírus prejudica
o sistema circulatório.
"A hipótese
mais comentada atualmente são alterações inflamatórias em pequenos vasos
sanguíneos, que mais tarde geram distúrbios nos órgãos", afirma Jakob
Armann, pediatra da Universidade de Tecnologia de Dresden, na Alemanha, que vem
coletando amostras de sangue de alunos do ensino médio para tentar identificar
as possíveis causas da covid longa.
"Mas ainda
não há dados confiáveis em crianças para comprovar isso", diz ele.
Oliveira não está
convencido de que os processos que causam a covid longa em crianças são sempre
iguais aos dos adultos. Um dos motivos é o fato de que os perfis dos sintomas
são levemente diferentes em adultos e crianças.
Muitos adultos
apresentam névoa mental e outros problemas neurológicos — e acredita-se que
estes sintomas sejam ocasionados, em alguns casos, pela presença de
autoanticorpos (anticorpos que atacam os próprios tecidos do corpo). Mas
Oliveira afirma que os principais sintomas da covid longa em crianças tendem a
ser fadiga, dor de cabeça, tontura e dor nas articulações e nos músculos.
"Digamos que
os autoanticorpos sejam a principal causa desta doença. Estes autoanticorpos
deveriam ser produzidos independentemente da idade", diz ele.
"Por isso, a
incidência da covid longa deveria ser a mesma em todas as idades. Mas não é o
que observamos — a incidência é menor nas crianças."
Oliveira indica um
estudo que concluiu que crianças pequenas que vão ao médico com inflamações
pós-covid tendem a ter um biomarcador no sangue que é associado ao intestino
permeável — condição digestiva que pode permitir que os micróbios do intestino
se infiltrem na corrente sanguínea.
Ele sugere que,
embora a covid-19 seja predominantemente uma doença respiratória nos adultos,
ela pode ser mais um problema gastrointestinal em uma parcela de crianças
susceptíveis, nas quais as partículas virais residem no intestino até que sejam
reabsorvidas pelo sangue e causem problemas.
"Sabemos que
crianças e adultos podem eliminar DNA do vírus pelas fezes por vários meses.
Por isso, é uma ideia razoável que a reexposição aos vírus mortos devido ao
intestino permeável acione um processo inflamatório súbito", afirma.
"Se isso
realmente for verdade, poderemos testar crianças infectadas para determinar
intestino permeável e ver se podemos prever quem é mais propenso a ter
problemas, o que seria ótimo."
Mas, assim como
acontece com os adultos, provavelmente existe mais de uma explicação.
Buonsenso está
atualmente colaborando com o Instituto Karolinska, na Suécia, para observar se
as crianças com covid longa parecem ter algum distúrbio genético óbvio.
Já Daniel Munblit,
pediatra especializado da Universidade Sechenov, em Moscou, na Rússia, vem
investigando se há alguma relação entre a susceptibilidade a alergias e a
vulnerabilidade à covid longa.
Nas últimas duas
décadas, uma das principais teorias por trás das alergias é um desequilíbrio
dos glóbulos brancos do sangue, especificamente as células Th1 e Th2. As
células Th1 agem como a primeira linha de defesa contra invasores externos e
geram inflamações em reação a patógenos, enquanto as células Th2 são a segunda
linha de resposta e produzem anticorpos.
Em um sistema
imunológico funcional, estes dois grupos de células trabalham juntos para
manter o sistema equilibrado. Mas, em alguns indivíduos susceptíveis, um grupo
se torna dominante, o que pode gerar reações excessivas a um vírus ou outros
estímulos externos, resultando em alergias e outras doenças autoimunes.
Munblit acredita
que esta poderá ser uma possível causa dos sintomas pós-covid.
"Descobrimos
que crianças com histórico de alergia são mais propensas a desenvolver covid
longa", diz ele.
"Mas estou
estudando isso com cuidado até termos mais evidências, já que infelizmente os
pais tendem a exagerar nos relatos de doenças alérgicas dos filhos, de forma
que precisamos de mais estudos."
Embora a
constatação de que a covid longa pode afetar as crianças tenha assustado pais
em todo o mundo, Buonsenso faz questão de tranquilizar as famílias. Ele afirma
que, na grande maioria dos casos, elas se recuperam em poucos meses, o que
significa que não há impacto a longo prazo em sua educação e desenvolvimento.
Mas há casos de
crianças que permanecem doentes por mais de seis meses após a infecção inicial.
Especialistas do Centro Médico Infantil Schneider, em Israel, relataram
recentemente casos de crianças com covid longa que desenvolveram problemas
crônicos, como asma e perda de audição, e de bebês que reverteram seu desenvolvimento,
deixando de andar para engatinhar devido às dores musculares.
"Eu diria no
momento que de dois terços a três quartos das crianças com covid longa se
recuperam após três meses, mas existe um grupo de cerca de 10 a 20% que não se
recupera espontaneamente", diz Buonsenso.
"E ainda não
sabemos se algumas destas crianças vão sofrer sequelas por um prazo mais longo,
como acontece com o sarampo e outras infecções virais."
Os Institutos
Nacionais de Saúde dos Estados Unidos lançaram um estudo que vai rastrear até 1
mil crianças e jovens adultos que testaram positivo para covid-19 e
acompanhá-los por até três anos, para investigar eventuais consequências de
longo prazo para sua saúde e qualidade de vida.
Os médicos também
estão pesquisando se a aplicação de vacinas contra covid-19 em crianças que
sofrem de covid longa pode ajudar a reduzir os sintomas, como se observou em
adultos. Oliveira afirma que este é um tratamento comprovadamente bem-sucedido
para algumas crianças que ainda possuem partículas virais em algumas partes do
corpo.
"A ideia é
que, se existem partes remanescentes do vírus no corpo, a vacina pode fazer com
que elas sejam eliminadas", explica.
"Atendi
diversas crianças que tinham sintomas persistentes, e nem todas melhoram. Mas a
maioria apresentou resolução total ou parcial dos seus sintomas."
"Atendi uma
criança com fortes dores abdominais por meses, além de outros sintomas como dor
de cabeça e febre. Depois que ela tomou a vacina, suas dores de cabeça e
abdominais desapareceram por completo, mas a febre permaneceu. Dois dos três
sintomas desaparecerem, para mim é uma vitória", relata Oliveira.
Além disso,
continua a ser uma questão de tentar aliviar os problemas da melhor forma
possível. Alguns sintomas, como tontura, podem ser tratados com medicações para
reduzir os batimentos cardíacos, enquanto Oliveira encaminha crianças com dores
crônicas para especialistas em comportamento cognitivo, que podem tentar ajudar
a encontrar formas de lidar com as mesmas.
Outros
especialistas esperam que o aumento das pesquisas dedicadas à covid longa em
crianças possa ajudar a esclarecer as complicações de longo prazo que podem
resultar de outras infecções virais da infância.
Sabe-se, por
exemplo, que o vírus sincicial respiratório (RSV) pode gerar asma, e que os
vírus Influenza e Epstein-Barr também podem causar doenças crônicas em um
pequeno percentual de crianças.
Henry Balfour,
especialista em pediatria da Faculdade de Medicina da Universidade de
Minnesota, nos Estados Unidos, acredita que todas estas condições pós-virais
podem decorrer de fraquezas similares no código genético.
"Acho que
todos esses problemas estão relacionados às diversas formas de desregulação
imune e podem ter um ancestral comum nos nossos genes que vale a pena ser
examinado", afirma.
Mas, para muitos
pais e mães, como Sammie McFarland, que fundou a organização britânica Long
Covid Kids depois que sua filha Kitty, de 15 anos, desenvolveu sintomas de
covid longa, tem sido reconfortante ver mais médicos e formuladores de
políticas levando o problema mais a sério nos últimos meses.
Em entrevista à
BBC em 2021, McFarland contou que, quando descreveu a doença da filha pela
primeira vez para uma enfermeira, ouviu que ela queria chamar a atenção,
enquanto muitos outros pais foram informados que os problemas dos filhos eram
psicológicos.
"Isso passou
a ser uma preocupação desde que o Royal College of Paediatrics and Child Health
[organização de pediatras do Reino Unido] publicou um artigo indicando que as
famílias estavam relatando sintomas aos médicos, com uma discussão sobre
doenças inventadas", diz McFarland.
"E existe a
brigada da positividade tóxica, que acha que o pensamento positivo cura a covid
longa. É claro que a positividade desempenha um papel importante em qualquer
recuperação, mas ela não cura órgãos lesionados."
Embora a covid
longa possa afetar apenas uma parcela relativamente pequena das crianças,
Buonsenso afirma que, ainda assim, os números são tão expressivos que o mundo
não pode se dar ao luxo de ignorar seu sofrimento.
"Sei que é
menos frequente nas crianças, mas acho muito difícil fechar os olhos para
tantos pacientes que relatam esta condição", diz ele.
"Está
começando a criar problemas para os sistemas nacionais de saúde, pois é muito
caro e complicado cuidar de crianças com tantas comorbidades.
Vivenciamos
problemas de longo prazo no passado com Epstein-Barr e outras infecções virais,
mas a principal diferença agora é que milhares de pacientes estão lutando para
retomar suas vidas." (BBC)
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