Nas últimas semanas, um
debate que parecia ter sido superado com a redemocratização do Brasil, em 1985,
voltou à tona: o papel das Forças Armadas no processo eleitoral brasileiro.
O tema voltou a ser
discutido, principalmente, depois que o presidente Jair Bolsonaro (PL) passou a
levantar dúvidas sobre a segurança das urnas eletrônicas, criticar o Tribunal
Superior Eleitoral (TSE) e acusá-lo de recusar sugestões feitas pelo Exército
sobre o funcionamento do sistema eleitoral.
Em uma live, Bolsonaro
chegou a afirmar que as Forças Armadas não se limitariam a "participar
como espectadoras" das eleições deste ano.
Mas afinal: qual é o papel
definido, até agora, para as Forças Armadas durante as eleições deste ano?
Especialistas ouvidos pela BBC News Brasil afirmam que, apesar das afirmações
do presidente, o papel dos militares nas eleições deverá se limitar ao
transporte de urnas eletrônicas para locais de difícil acesso, garantir a
segurança da votação em municípios onde haja possibilidade de conflitos e
participar do processo de fiscalização do processo eleitoral.
Os especialistas, no
entanto, são unânimes: não cabe às Forças Armadas o papel de
"revisora" das eleições.
Forças Armadas x TSE
A tensão em torno de qual
o papel a ser desempenhado pelas Forças Armadas neste ano começou há pelo menos
um ano quando o presidente Bolsonaro e alguns de seus aliados intensificaram
suas críticas ao sistema eleitoral. Sem apresentar provas, Bolsonaro levantou
dúvidas sobre a integridade das urnas eletrônicas.
Alegando supostas falhas
no sistema de urnas eletrônicas, Bolsonaro defendeu a implantação de um sistema
de contabilização de votos impresso, em que os números digitados por cada
eleitor nas urnas sejam impressos e depositados em uma urna de acrílico como
forma de garantir segurança em caso de acusações de fraude.
Em julho, o então ministro
da Defesa e atualmente cotado para ser vice na chapa de Bolsonaro, general
Braga Netto, defendeu o debate sobre o chamado voto impresso e disse que a
discussão era "legítima".
Uma Proposta de Emenda Constitucional
(PEC) chegou a tramitar no Congresso Nacional, mas ela não obteve os votos
necessários e foi derrotada, em agosto de 2021.
Todo esse debate se
acentuou ao mesmo tempo em que as principais pesquisas de intenção de voto
passaram a mostrar o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) a frente de
Bolsonaro na disputa pela Presidência da República.
Logo após a derrota da PEC
do voto impresso, os militares voltaram à cena. Eles foram convidados pelo TSE
para fazer parte da Comissão de Transparência das Eleições (CTE), criada em
setembro de 2021 pelo então presidente do tribunal, Luiz Roberto Barroso.
A comissão tinha o
objetivo de receber sugestões de diversas entidades da sociedade para ampliar a
segurança do processo eleitoral. Entre os órgãos convidados estavam a Polícia
Federal e as Forças Armadas.
E é justamente a
participação dos militares nessa comissão que deu ainda mais munição para o
debate sobre a atuação das Forças Armadas durante as eleições.
Isso porque os militares
enviaram um conjunto de 88 questões ao TSE sobre quais medidas seriam tomadas
diante de supostas fragilidades no sistema encontradas por eles.
A lista de perguntas
feitas pelos militares é dividida em cinco grandes grupos: dúvidas sobre o
teste de integridade das urnas eletrônicas; nível de confiança nos sistemas de
votação e apuração dos votos; solicitação de documentos, listas, relatórios e
informações sobre as políticas do TSE; funcionamento das urnas; e propostas de
aperfeiçoamento da transparência do tribunal.
Para especialistas, Forças Armadas incorporaram discurso
do presidente Bolsonaro sobre as urnas eletrônicas
Em suas respostas, o TSE
voltou a defender que o sistema eleitoral do país é seguro e rejeitou a maior
parte das propostas feitas pelos militares.
Analistas avaliam que as
perguntas feitas pelo Exército desconsideram o histórico de segurança
apresentado pelas urnas eletrônicas, em uso desde 1996, e incorporam elementos
do discurso de Bolsonaro que coloca em xeque o sistema eleitoral.
A temperatura ficou ainda
mais alta depois que o ex-presidente do TSE e ministro do Supremo Tribunal
Federal (STF), Luiz Roberto Barroso, disse que as Forças Armadas estariam sendo
"orientadas" a atacar o processo eleitoral.
"Desde 1996 não tem
nenhum episódio de fraude. Eleições totalmente limpas, seguras. E agora se vai
pretender usar as Forças Armadas para atacar. Gentilmente convidadas para
participar do processo, estão sendo orientadas para atacar o processo e tentar
desacreditá-lo", afirmou Barroso.
Em resposta, o Ministério
da Defesa rechaçou a declaração do ministro e a classificou como
"irresponsável".
E em meio a esse cenário,
Bolsonaro voltou a levantar dúvidas sobre a segurança das eleições.
Em um evento no dia 27 de
abril, ele chegou a dizer que os militares teriam sugerido uma apuração
paralela dos votos feita pelas Forças Armadas.
Para isso, segundo ele,
bastaria a instalação de um "cabo" para que os dados da votação
fossem enviados a um computador dos militares.
"Uma das sugestões é
que, [com] esse mesmo duto que alimenta na sala secreta os computadores, seja
feita uma ramificação um pouquinho à direita para que tenhamos do lado um
computador também das Forças Armadas para contar os votos no Brasil",
disse.
Na semana seguinte, no dia
27 de abril, o presidente disse, em uma transmissão em suas redes sociais, que
os militares não teriam um papel passivo durante as eleições.
"Convidaram as Forças
Armadas. Repito, as Forças Armadas não vão fazer papel de chancelar apenas o
processo eleitoral, participar como espectadores do mesmo. Não vão fazer
isso", disse.
Dois dias depois, o
presidente do TSE, Edson Fachin, disse que não há "poder moderador"
para intervir na Justiça Eleitoral.
"Não há poder
moderador para intervir na Justiça Eleitoral", disse Fachin, em uma
entrevista.
"Colaboração, cooperação e, portanto, parcerias proativas para aprimoramento, a Justiça Eleitoral está inteiramente à disposição. Intervenção, jamais.", afirmou o ministro.
Transporte, fiscalização e acesso a
sala-cofre
O ex-presidente do
Tribunal Superior Eleitoral (TSE) Ayres Britto, que comandou o tribunal entre
2008 e 2010, disse à BBC News Brasil que, desde a redemocratização, o papel
exercido pelas Forças Armadas nas eleições têm se resumido a transportar urnas
para regiões de difícil acesso e garantir a segurança da votação em municípios
ou localidades onde haja possibilidade de conflito.
O ex-ministro ressaltou
que isso só acontece quando a Justiça Eleitoral requer a ação dos militares e
que, neste ano, esse papel não deverá ser diferente. Ele diz ainda que não cabe
aos militares o papel de "revisor" das eleições.
"Desde a volta da
democracia, os militares só atuam nas eleições por determinação da Justiça
Eleitoral. Em geral, a atuação deles se limita a distribuir urnas e garantir a
segurança em alguns locais de votação sempre que solicitado", afirmou o
ex-ministro.
Procurado pela BBC News
Brasil, o TSE informou que, desde 2019, as Forças Armadas também estão
habilitadas a atuar como fiscalizadoras do processo eleitoral.
Entre as instituições que
podem exercer este papel estão os partidos políticos, polícia federal e
entidades como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).
Segundo o TSE, as Forças
Armadas podem participar de todas as fases do processo de fiscalização das
eleições, inclusive da contabilização dos votos.
"Os integrantes da
CTE (Comissão de Transparência Eleitoral) poderão participar de todas as etapas
do processo eleitoral, inclusive com acesso à sala-cofre", disse o TSE em
nota enviada à BBC News Brasil. Sala-cofre é onde são armazenadas cópias
físicas dos programas que serão usados durante as eleições.
Ayres Britto, faz uma
ressalva, porém. Segundo ele, os militares não podem atuar como
"mentores" do processo eleitoral.
"As Forças Armadas
não são um poder e nem um ministério. Elas não podem atuar como mentores do
processo eleitoral, determinando o que pode ou não pode ser feito. Elas atuam apenas
como colaboradores", diz o ex-ministro.
Outro ex-ministro do TSE e
advogado especializado em direito eleitoral, Henrique Neves, diz que ainda que
as Forças Armadas participem como fiscalizadoras das eleições e integrantes da
comissão de transparência, o TSE não é obrigado a acatar as recomendações.
"As Forças Armadas
não podem atuar como revisoras das eleições. Os militares podem fiscalizar e
fazer parte da comissão de transparência, mas por lei, não há nada que obrigue
o tribunal a acatar essas sugestões", disse o ex-ministro.
Ayres Britto, ex-presidente do TSE, diz que as Forças Armadas nas
últimas eleições tem se resumido a transportar urnas
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