Enquanto membros do governo de
Jair Bolsonaro (PL) e defensores da redução da presença do Estado nas relações
econômicas do país comemoraram o anúncio, representantes da Federação Única dos
Petroleiros (FUP-CUT) afirmaram que o presidente verá "a maior greve da
história da categoria" caso avance na intenção.
O presidente do Senado, Rodrigo
Pacheco (PSD-MG), afirmou que a privatização da estatal não está em seu
"radar" neste momento — a proposta precisa ser aprovada pelo
Congresso antes que o presidente possa assinar o decreto para incluir a
Petrobras no Plano Nacional de Desestatização (PND).
Iniciativas de privatizações
geram debates acalorados não só no Brasil, mas em diversos outros países que já
colocaram ou cogitaram colocar medidas semelhantes em prática.
Não são incomuns casos de
petrolíferas que decidiram seguir o caminho da capitalização como forma de
obter mais recurso — como fez a própria Petrobras em 2010 — ou de governos que
desinvestiram em determinados setores para ampliar a concorrência.
Mas quando se trata de grandes
estatais produtoras de petróleo se tornando majoritariamente privadas, não há
uma gama gigantesca de exemplos, de acordo com especialistas consultados pela
BBC News Brasil.
A reportagem consultou estudiosos
do mercado de gás e petróleo e da área de privatizações para identificar alguns
dos mais notáveis casos e entender o que aconteceu com essas empresas.
Eles apontam que não há um único
caminho a ser seguido por petrolíferas estatais no momento da privatização —
mas que casos de sucesso costumam acontecer quando há ambiente regulatório
forte e estável para atrair investimentos. Especialistas dizem, ainda, que a
gestão privada costuma aumentar a eficiência operacional, mas argumentam que
nem sempre a desestatização é a melhor escolha — a depender do momento político
e econômico do país.
E quando se fala no assunto, os
grandes exemplos citados são o da Rússia, que colocou em prática um grande
projeto de privatizações após o fim da União Soviética (URSS); da YPF na
Argentina, que voltou a ser estatizada após mudanças no governo; e da
multinacional BP, no Reino Unido. Há ainda casos de petroleiras privatizadas no
Canadá, França, Itália e Espanha, entre outros. Entenda:
Rússia e a formação da oligarquia
Após o colapso da URSS em 1991, o
governo da Rússia — sob o comando do presidente Boris Yeltsin — colocou em
prática um amplo projeto de privatizações.
O esforço foi iniciado em outubro
de 1991 e concluído em julho de 1994, quando dois terços da indústria russa já
era de propriedade privada.
A desestatização do setor de gás
e petróleo foi regulamentada por um decreto presidencial em 1992. Petroleiras e
refinarias foram agrupadas, transformando-se em empresas de capital aberto.
A Lukoil, considerada a maior
companhia russa não-estatal do setor de petróleo, foi formada em 1991 quando
três estatais sediadas na Sibéria se fundiram. Em 1993, ela foi privatizada e
transformada em uma empresa de capital aberto.
A Gazprom também se tornou
privada nesse contexto. A empresa, porém, retornou ao controle do governo no
início dos anos 2000, e em 2021 foi responsável por 68% d produção de gás
russa.Especialistas afirmam, porém, que o modelo de privatização adotado pela
Rússia ajudou a criar um poderoso grupo de magnatas, os oligarcas russos, e a
aprofundar a desigualdade no país.
O economista Marshall Goldman,
especialista em economia da URSS, afirma em seu livro "The Piratization of
Russia: Russian Reform Goes Awry" que o movimento de desestatização russo
apenas transformou o monopólio do Estado em um monopólio privado.
"Mas o monopólio privado não
funciona de maneira muito diferente", disse o autor em sua obra.
O governo utilizou um sistema de
privatização por meio de vouchers, previamente implementado na Checoslováquia.
Sob esse modelo, o governo
distribuiu vouchers entre a população, que poderiam ser usados para comprar
ações das cerca de 15.000 empresas que estavam sendo desestatizadas.
Empresários bem relacionados, porém, adquiriram enormes blocos desses vouchers
e garantiram grandes participação ou controle das companhias.
O movimento criou uma oligarquia
russa que ainda está intimamente ligada a uma grande parcela da riqueza
nacional. Eles controlam importante parte de setores como o de energia,
mineração, mídia e transporte do país e possuem conexões no governo central.
Segundo Sérgio Lazzarini,
professor do Insper e estudioso das privatizações, após o fracasso na Rússia, o
sistema de vouchers deixou de ser considerado. "Esse modelo é bastante
controverso e se provou que não funciona bem".
"A passagem de ativos
aconteceu também de uma forma não transparente na Rússia, o que contribuiu
ainda mais para a concentração de renda dos oligarcas", afirmou o
especialista à BBC News Brasil.
Quando chegou ao governo em 1999,
Vladimir Putin começou a controlar os oligarcas. Aqueles que seguiram alinhados
politicamente com o atual presidente tornaram-se ainda mais bem-sucedidos. Mas
alguns dos oligarcas originais que se recusaram a seguir essa linha foram
forçados a fugir do país.
Talvez o oligarca mais conhecido
fora da Rússia seja o empresário Roman Abramovich, proprietário do Chelsea
Football Club. Com um patrimônio estimado em US$ 14,3 bilhões (R$ 73 bilhões),
ele fez sua fortuna vendendo ativos após a queda da União Soviética.
Em março deste ano, uma
investigação da BBC revelou novas evidências sobre como Abramovich lucrou
bilhões de dólares de forma indevida ao fazer negócios com o Estado russo na
área do petróleo.
O russo teria comprado a estatal
de petróleo Sibneft do governo russo em 1995, pela qual pagou cerca de US$ 250
milhões (R$ 1,2 trilhão). Contudo, ele revendeu a empresa ao Estado, em 2005,
por US$ 13 bilhões (R$ 65 bilhões).
Abramovich e outros oligarcas
russos foram sancionados pela União Europeia, Reino Unido e Estados Unidos após
a invasão à Ucrânia. O magnata do futebol decidiu então se afastar de algumas
de suas funções e vender o Chelsea.
O Instituto Ucraniano para o
Futuro (UIF), uma organização independente com sede em Kiev, culpa a ampla
influência dos oligarcas na sociedade, na indústria e na política ucranianas
pela falta de desenvolvimento do país.
Reino Unido e BP
A multinacional britânica de
capital aberto BP foi privatizada em fases, entre 1979 e 1987.
A desestatização aconteceu
durante a onda de privatizações implementada pela ex-primeira-ministra
britânica Margaret Thatcher.
Durante o governo da Dama de
Ferro (1979-1990), muitas companhias e serviços que haviam sido estatizados no
mandato do ex-primeiro-ministro Clement Attlee entre 1945 e 1951 foram
transformados em empresas privadas: indústrias, siderúrgicas, ferroviárias,
aeroviárias, aeroportos e companhias de gás, eletricidade, telecomunicações e
água.
Em 1979, o governo de Thatcher
vendeu pouco mais de 5% de suas ações da BP e reduziu sua participação na empresa
para 46%, tornando-se minoritário pela primeira vez desde que a petroleira foi
incorporada pela Inglaterra em 1909.
A participação estatal foi sendo
reduzida ainda mais nos anos seguintes e, em 1987, a privatização foi concluída
quando o governo vendeu suas últimas ações.
Inicialmente chamada de
Anglo-Persian Oil Company Limited e depois de British Petroleum, a petroleira
se fundiu com a americana Amoco em 1998 e adquiriu a também americana ARCO e a
escocesa Burmah Castrol em 2000, tornando-se oficialmente BP plc em 2001.
No livro "The Org: The
Underlying Logic of the Office", o economista Raymond Fisman e o
historiador Tim Sullivan descrevem como nas primeiras décadas após a
privatização, a BP se tornou um exemplo no setor energético de como uma estatal
pouco lucrativa poderia ser transformada em um negócio frutífero com a
privatização.
O comando da empresa foi todo
substituído por funcionários empenhados em cortar custos e reduzir riscos e
alguns empreendimentos que antes faziam parte da companhia — como os dedicados
à produção de alimento e mineração de urânio, por exemplo — foram vendidos.
"A BP passou de perdas de
quase US$ 1 bilhão [cerca de R$ 5 bilhões na cotação atual] em 1992 para lucros
de quase US$ 5 bilhões [R$ 25 bilhões] até o final de 1997. A folha de
pagamento foi reduzida para 53.000 [funcionários], bem abaixo das 129.000
pessoas que a BP empregava antes", escreveram Fisman e Sullivan.
Em 2005, uma refinaria da BP no
Texas explodiu, matando 15 e ferindo cerca de 170 pessoas. Em 2006, um
vazamento em um oleoduto da BP derramou centenas de milhares de galões de
petróleo em uma baía no Alasca.
E em 2010, a plataforma Deepwater
Horizon, de propriedade da empresa suíça Transocean e operada pela BP no Golfo
do México, explodiu
e afundou, matando 11 funcionários.
Durante os meses seguintes, quase
5 milhões de barris de petróleo foram despejados no oceano, no que é
considerado o maior vazamento acidental de petróleo da história. Cinco Estados
(Flórida, Alabama, Mississippi, Louisiana e Texas) foram atingidos pela mancha
de óleo, que encobriu aves marinhas, danificou praias e provocou enormes perdas
para as indústrias de pesca e turismo.
O acidente de 2010, em especial,
prejudicou a imagem da empresa, que teve sua avaliação rebaixada por agências
de risco após o desastre.
A BP foi alvo de múltiplos
processos judiciais, vários deles movidos pelo governo americano, tanto por
violações criminais quanto por violações a regulações civis. Em um acordo
considerado o maior do tipo na história americana, a BP concordou em pagar
cerca de US$ 20 bilhões (aproximadamente R$ 100 bilhões) ao governo federal e
aos cinco Estados afetados pela catástrofe ambiental.
No ano passado, os lucros da
petroleira atingiram seu maior nível em oito anos, impulsionados pelo aumento
dos preços do gás e do petróleo no mercado internacional. Após um ano de perdas
em 2020, a BP fechou 2021 com ganho de US$ 12,85 bilhões (R$ 64 bilhões).
Os lucros continuaram a crescer
no primeiro trimestre de 2022, alcançando um patamar de US$ 6,2 bilhões (R$ 31
bilhões) — mais do que o dobro dos US$ 2,6 bilhões (R$ 13 bilhões) que a
empresa lucrou no mesmo período do ano passado.
O balanço provocou um movimento
pela imposição de uma taxação especial, destinada a coletar parte do que é
chamado de "lucro inesperado". A ideia por trás desse tipo de imposto
é taxar empresas que se beneficiaram de uma situação pela qual não são
responsáveis, como é o caso da alta dos preços de gás e petróleo.
Segundo fontes ouvidas pela BBC,
o Tesouro britânico está estudando a possibilidade de adotar tal imposto para o
setor energético do país. A BP, porém, rejeita a ideia e afirmou que novas
taxas poderiam significar menos investimentos em projetos de energia renovável.
Argentina e o caso YPF
A estatal e maior produtora de
petróleo da Argentina, Yacimientos Petrolíferos Fiscales (YPF), foi privatizada
em 1999, mas reestatizada em 2012, durante o governo de Cristina Kirchner.
A YPF foi criada em 1922 como a
primeira petroleira estatal integrada verticalmente em todo o mundo. Durante o
período inicial da ditadura militar, que se estendeu de 1976 a 1983, houve um
recuo na política de nacionalização no país.
O governo abriu ao setor privado
a possibilidade de concessões e permitiu contratos da YPF com terceiros. Essas
medidas foram parcialmente anuladas em 1974 e posteriormente reorganizadas em
1985 pelo governo de Raúl Alfonsín.
Mas a privatização só foi
concretizada no fim do governo de Carlos Menem, em 1999.
O primeiro passo desse processo
foi a transformação da YPF de uma empresa estatal para uma de sociedade anônima
com capital aberto. A desestatização foi concluída quando o Estado argentino
vendeu 14,99% de suas ações à empresa espanhola Repsol.
No fim de 2011, a Repsol já
controlava 57% do capital da YPF.
Em abril de 2012, porém, a
presidente Cristina Kirchner apresentou um projeto de lei ao Congresso que
declara "de utilidade pública e sujeito à expropriação" 51% do
capital da YPF. O texto foi aprovado com ampla maioria no Congresso e a repatriação
efetivada.
O governo culpava a YPF pela
queda na produção petrolífera, o que teria obrigado a Argentina a gastar muito
com a importação de combustível, num momento em que o país sofria uma escassez
de dólares devido a uma fuga de capitais.
Economistas que também apoiaram a
medida afirmaram ainda que, desde que a Repsol assumiu o controle da YPF, houve
fuga sistemática de divisas sem reinvestimento para a exploração, tornando o
modelo insustentável.
Uma pesquisa realizada na época
do anúncio da reestatização pelo jornal portenho La Nación mostrou que seis em
cada dez argentinos apoiavam a medida.
A YPF, por sua vez, afirmava que
as próprias políticas econômicas intervencionistas do governo deram origem à
crise energética no país.
Fora do país, a medida gerou
grande desconforto com o governo da Espanha e outras potências. A decisão foi
duramente criticada pela União Europeia, FMI e pelos centros econômicos
mundiais.
A nacionalização desencadeou
ainda uma intensa batalha jurídica entre o governo e a Repsol, que terminou em
um acordo de US$ 5 bilhões (R$ 25 bilhões) de indenização pela expropriação das
ações.
"A reestatização da YPF
aconteceu sem nenhum amparo regulatório institucional", diz Sérgio
Lazzarini, do Insper.
"Ao mesmo tempo, é preciso
um ambiente institucional e legal relativamente estável para que os
investimentos privados prosperem, algo que faltou na Argentina após a
privatização da petroleira".
Antes de ser estatizada, a
empresa tinha um valor de mercado de cerca de US$ 16 bilhões (R$ 80 bilhões).
No momento do anúncio da expropriação, a empresa já havia perdido quase metade
de seu valor, passando a US$ 8 bilhões (R$ 40 bilhões).
Dez anos depois, as ações da YPF
valem 75% menos, segundo análise feita pelo jornal argentino El Clarín. O valor
de mercado da companhia está hoje em torno de US$ 3,4 bilhões (R$ 17 bilhões).
As ações da YPF estão sendo
negociadas a cerca de US$ 5 (R$ 25) desde a invasão russa na Ucrânia. Em 2012,
elas chegavam a US$ 41 (R$ 204), segundo o Clarín.
Afinal, existe uma receita para o
sucesso?
Segundo os especialistas
consultados pela BBC, não há um único caminho a ser seguido por petrolíferas
estatais no momento da privatização.
Da mesma forma, nem sempre a
desestatização é a melhor escolha, a depender do momento político e econômico
do país, de acordo com Sérgio Lazzarini.
"Às vezes pode ser indicado
apenas melhorar a governança, blindar a empresa de interferência governamental,
atrair mais investimentos e implementar estratégias para desinvestir setores
estratégicos e ampliar a concorrência", diz o professor do Insper.
"Mas experiência em geral,
não só no setor do petróleo, mostra que a gestão privada, de fato, aumenta a
eficiência operacional".
Lazzarini lançou em março deste
ano o livro "The Right Privatization - Why Private Firms in Public
Initiatives Need Capable Governments" (A Privatização Certa - Porque
Empresas Privadas em Iniciativas Públicas Precisam de Governos Capazes, em
tradução livre).
Na obra, o especialista destaca
justamente a importância de um governo bem-organizado e preparado no processo
de privatização de estatais de diversos setores.
"E o que são governos
capazes? Governos que levam o tema da privatização para o debate público
adequadamente e criam um ambiente regulatório adequado para tratar do
problema", diz.
Ainda segundo Lazzarini, os casos
de sucesso costumam acontecer quando há um ambiente regulatório forte e
institucional estável que consiga atrair investimentos, além de competição no
setor. "Os preços só começam a cair quando há mais atores e mais
competição", diz.
Patrick Heller, diretor Executivo
do Natural Resource Governance Institute e pesquisador do Centro de Direito,
Energia e Meio Ambiente da Universidade da Califórnia em Berkeley, lista ainda
outros fatores que considera essenciais para uma boa transição.
"O primeiro deles é fazer
uma boa avaliação dos preços das ações antes da privatização. Definir um bom
mecanismo para encontrar um valor inicial de referência e a partir daí seguir
com as negociações", diz.
"Fazer isso sempre foi
complexo, mas está ainda mais difícil neste momento, diante das incertezas
reais em torno do futuro da indústria de petróleo e gás no mundo e da
necessidade de se investir em energia limpa".
Heller lembra ainda da
importância da transparência em qualquer processo de privatização. "Todas
as etapas precisam ser transparentes, seja no momento da avaliação dos ativos,
da definição dos modelos de privatização ou de estabelecer os requisitos para
que as partes tenham acesso aos recursos desestatizados", afirma.
"Por fim, há um terceiro
ponto importante e que se conecta ao anterior, que é a construção de um
processo justo e objetivo", diz. Segundo Heller, o princípio deve ser
obedecido independentemente do modelo de privatização escolhido.
"É preciso se certificar de
que as ações não sejam entregues a pessoas politicamente conectadas ou que um
grupo específico de investidores seja privilegiado".
Segundo os especialistas, os
casos de fracasso na história acontecem justamente quando esses princípios não
são respeitados.
"Pode haver falhas em três
estágios da privatização: no desenho do modelo, na implementação e na fase
pós-privatização", diz Sérgio Lazzarini.
Para o professor do Insper,
quando há falha no modelo, por vezes troca-se o monopólio estatal por um
privado, como aconteceu na Rússia.
"Na implementação é preciso
estar atento para falhas no momento de identificar compradores e licitar a
venda. Já no pós os problemas estão na não regulamentação do setor ou definição
dos padrões de qualidade e quantidade dos investimentos", complementa
Lazzarini.
Os estudiosos afirmam ainda que
associar diretamente a queda dos preços dos combustíveis a um sucesso na
privatização nem sempre é o melhor caminho, já que o preço no setor é ditado
internacionalmente e muito influenciado por fatores externos.
"Em geral, empresas privadas do setor de gás e petróleo tendem a ser mais eficientes quando se trata de gerenciar recursos e custos de produção", diz Patrick Heller. "Mas o petróleo é uma commodity global e, portanto, o que mais influencia os preços que chegam até os consumidores não é a eficiência de uma empresa de extração em particular, mas sim o mercado global de energia".
(BBC)
Nenhum comentário:
Postar um comentário