No
documento, o ministério pediu para os Estados "otimizarem e fazerem uso
racional desta vacina por este período" até que "a situação do
estoque nacional da vacina BCG seja regularizada". Idealmente, o
imunizante deve ser aplicado ainda na maternidade — no máximo, até o fim do
primeiro mês de vida.
A BBC
News Brasil enviou e-mail a todas as secretarias estaduais do país perguntando
sobre a disponibilidade da vacina BCG. Das 17 que responderam, todas afirmaram
que atualmente não há falta de doses, mas algumas mencionaram estarem se
readequando para os próximos sete meses, em que o envio pelo ministério será
reduzido.
As
secretarias de Mato Grosso, Paraná, Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte e Santa
Catarina afirmaram que enviaram aos municípios a orientação para que controlem
o uso dos frascos, para que não haja desperdício; e para que passem a oferecer
a vacinação somente em locais selecionados, em alguns casos com agendamento.
A
cidade de Cachoeira do Sul, no Rio Grande do Sul, já anunciou para a população
mudança no esquema de vacinação. Até o aviso do Ministério da Saúde, o
município aplicava a vacina em 10 unidades de saúde espalhadas pela cidade.
Agora, ela é dada em apenas três postos — e com agendamento.
"Na
última remessa de vacinas não recebemos nenhuma dose de BCG", diz Marcelo
Figueiró, secretário de Saúde de Cachoeira do Sul.
"Muitas
vezes, você precisa abrir um lote inteiro para dar poucas vacinas. Aquelas que
sobram precisam ser descartadas depois de seis horas da abertura. Então,
estamos tentando racionalizar e ter um melhor controle sobre esse uso para que
a gente perca o mínimo de doses possíveis, já que nos próximos meses pode faltar
vacina", diz.
Este é
mais um capítulo dos problemas no fornecimento desta vacina nos anos recentes.
Em 2019, a BBC News Brasil mostrou que 12 Estados
precisaram racionar o imunizante para garantir a vacinação e
que a Onco BCG, imunoterapia feita com a mesma base da BCG mas usada para
tratamento do câncer de bexiga, estava em falta no país.
Desde
2016, a única fábrica nacional que produz a BCG e a Onco BCG, pertencente à
Fundação Atalpho de Paiva (FAP), no Rio de Janeiro (RJ), passou por sucessivas
interdições da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) — e, a partir
daí, o fornecimento da vacina no país passou a ficar intermitente.
A
assessoria de imprensa da Anvisa informou à BBC News Brasil que a fábrica, no
bairro de São Cristóvão, segue interditada. Enquanto isso, uma nova fábrica da
fundação em Duque de Caxias (RJ), em construção desde 1989, ainda não foi
inaugurada (leia mais abaixo).
O
Ministério Público do Rio de Janeiro (MP-RJ) abriu um inquérito em fevereiro
para investigar possíveis irregularidades na gestão da fundação.
Um
laudo da Anvisa que levou à interdição em 2016, obtido pela BBC News Brasil via
Lei de Acesso à Informação, afirmou que "a fabricação dos produtos Vacina
BCG e Imuno BCG [a marca da Onco BCG feita pela instituição] pela Fundação
Ataulpho de Paiva na fábrica localizada em São Cristóvão (Rio de Janeiro - RJ)
apresenta risco à saúde da população brasileira". Foram constatadas
"4 não conformidades críticas" — o que significa um "desacordo
com os atributos críticos" do produto ou algo que "possa apresentar
risco latente ou imediato à saúde".
Segundo
e-mail enviado pela Anvisa à reportagem no último dia 16, "a fábrica da
Fundação Athaulpho de Paiva (FAP) localizada no bairro de São Cristóvão (RJ) se
encontra paralisada pela empresa para a realização de ajustes e correções
decorrentes da última inspeção sanitária".
"A
fabricação não pode ser retomada até que os ajustes necessários sejam
concluídos e, novamente, a fábrica seja inspecionada para se verificar a
efetividade das correções", continua.
Desde
que os problemas com a produtora nacional começaram, o Brasil tem obtido doses
de BCG com o Fundo Rotatório da Organização Pan-Americana da Saúde (Opas),
braço regional da Organização Mundial da Saúde (OMS). O fundo fornece vacinas e
insumos, como seringas, a governos locais e nacionais que não têm produção
nacional disponível.
O
Ministério da Saúde não respondeu exatamente por que haverá redução no
quantitativo nos próximos sete meses e se houve algum problema com o
fornecimento através do Fundo Rotatório.
Em
nota, a pasta escreveu: "Essa readequação se refere a toda tramitação do
processo de aquisição, que envolve a compra propriamente, o desembaraço
alfandegário e autorização pela Anvisa para a entrada do produto no país, o
qual, posteriormente, é enviado para análise do controle de qualidade do INCQS
antes de ser distribuído para as salas de vacina."
Fundação nacional é investigada
Nos
anos 1980, a Fundação Ataulpho de Paiva (FAP) foi uma das instituições que
receberam investimentos por meio do Programa de Autossuficiência Nacional em
Imunobiológicos (Pasni) — que visava justamente garantir uma produção nacional,
sem que o país precisasse passar por todos os trâmites aos quais está sendo
submetido agora na importação. Nascida em 1900, a FAP é uma entidade privada, sem
fins lucrativos e filantrópica.
Quando
o funcionamento da fábrica da FAP em São Cristóvão estava regular, as vacinas
BCG eram compradas pelo governo federal através da modalidade
"inexigibilidade de licitação", uma vez que esta era a única
produtora no país do imunizante. Em uma proposta de convênio com o Ministério da Saúde, de 2016,
a instituição defendeu que "tornou o Brasil sempre autossuficiente na
produção da Vacina BCG, nunca tendo havido a necessidade de importação deste
produto".
Em
1989, a FAP iniciou a construção de uma nova fábrica em Xerém, Duque de Caxias
(RJ). Segundo o site da fundação, a nova unidade tem com objetivo produzir a
BCG de forma a "suprir a demanda nacional e parte da internacional, uma
vez que a instituição recebe consulta de vários países." Mas, 33 anos
depois, a fábrica ainda não está cumprindo seu objetivo. A Anvisa afirmou à
reportagem que a unidade em Xerém ainda não tem autorização para fabricar
vacinas porque não recebeu pedido da fundação para realizar a inspeção, o que
pode ocorrer apenas após a conclusão das obras.
Procurada,
a FAP afirmou, por meio do seu presidente, Germano Gerhartdt Filho, que a fábrica
"já iniciou sua operação, nas áreas e atividades de armazenamento,
embalagem e venda de produtos" e que está em "processo de
regularização perante a Anvisa" para "dar continuidade à
comercialização e fornecimento de BCG e Onco BCG". Ou seja, a fábrica está
produzindo outros itens mas ainda não fabrica as vacinas.
A BBC
News Brasil publicou em 2020 uma reportagem sobre os imbróglios envolvendo a
construção da nova fábrica. Na época, a fundação afirmou que a
unidade seria inaugurada em 12 meses e atribuiu a demora à necessidade de
readequação da estrutura a novas normas regulatórias da Anvisa.
Por
meio da Lei de Acesso à Informação (LAI) e consultas ao Portal da
Transparência, a BBC News Brasil identificou convênios do Ministério da Saúde
com a entidade destinados especificamente à nova fábrica em Xerém que somaram
R$ 41,9 milhões em verbas, dos quais mais ou menos metade (46,5%) haviam sido
liberados.
Na
realidade, esse montante é possivelmente maior, já que não foi possível
localizar informações sobre gastos com o projeto desde os anos 1980 — só a
partir de 2012. O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES)
emprestou ainda R$ 5,9 milhões à fundação por meio de um programa do Ministério
da Saúde que visava desenvolver e modernizar o parque industrial brasileiro na
área da saúde.
Em
fevereiro deste ano, o MP-RJ abriu um inquérito civil para "investigar
possíveis irregularidades na gestão da Fundação Ataulpho de Paiva e supostas condutas
ilegais praticadas pelos membros de sua diretoria" a partir de uma
denúncia encaminhada à ouvidoria do órgão, segundo seu diário oficial.
Em
nota enviada à reportagem, o presidente da FAP afirmou que "houve falsa
acusação de irregularidade na gestão da entidade, promovida por um
ex-funcionário, com nítido interesse de chantagear a fundação, na vã esperança
de que faremos um acordo em ação trabalhista por ele movida".
"Prestamos
todas as informações e continuaremos à disposição do Ministério Público, para
evitar qualquer suspeita sobre esta centenária e importante instituição para o
país", escreveu Gerhartdt Filho, acrescentando que "não condizem com
a verdade as acusações de irregularidade administrativas".
(BBC)
Nenhum comentário:
Postar um comentário