Até o momento, não existem respostas certeiras para essa pergunta.
Mas os cientistas listam ao menos cinco hipóteses que ajudariam a entender
porque a doença virou uma emergência de saúde pública internacional.
Entre os fatores levantados por especialistas ouvidos pela BBC
News Brasil, estão o descaso com doenças negligenciadas, o aumento da
mobilidade de pessoas com o fim das restrições relacionadas à covid, a falta de
imunidade da população contra os vírus dessa família, um padrão de transmissão
e uma mistura de todos esses fatores.
'Sinais eram claros'
A virologista Clarissa Damaso, da Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ), dedicou os últimos 35 anos de carreira a estudar os
orthopoxvirus, uma família de agentes infecciosos da qual fazem parte o
monkeypox e o causador da varíola humana, entre outros.
Ela também é assessora da Organização Mundial da Saúde (OMS) e
integra comitês sobre a pesquisa e as políticas públicas relacionadas a esses
agentes infecciosos.
De acordo com a avaliação da cientista, era questão de tempo para
que o espalhamento do monkeypox acontecesse.
"Uma hora ou outra uma situação dessas ia estourar. A questão
é que não damos atenção aos indícios que vêm dos países menos
desenvolvidos", analisa.
"E os sinais eram claros: o número de casos vinha aumentando
pouco a pouco. Primeiro, por meio do contato do ser humano com animais
infectados em áreas silvestres. Depois, nas regiões próximas das cidades
maiores."
"Para completar, cada vez mais pessoas vão trabalhar ou
passear nas áreas onde esse vírus é endêmico", completa.
"Vale lembrar que essa doença nunca desapareceu do radar, e
já tivemos outros surtos menores, de poucos casos, registrados fora da África
em anos recentes", concorda a infectologista Mirian Dal Ben, do Hospital
Sírio-Libanês, em São Paulo.
Todo esse processo significa que o contato das pessoas com o
monkeypox foi se tornando cada vez mais comum — até os casos começarem a ser
"exportados" para outros continentes com mais frequência e gerarem as
cadeias de transmissão observadas nos últimos três meses.
Hora errada
Damaso acrescenta um segundo fator que ajuda a entender a crise
sanitária atual: ela se desenrola num momento em que a maioria das restrições
relacionadas à pandemia de covid-19 foram completamente abandonadas pelos
países.
"O surto de monkeypox acontece na hora errada, num período
logo após a crise da covid, em que as pessoas se sentiram mais livres, foram se
divertir e se aglomeraram", contextualiza a virologista.
Pelo que foi divulgado por autoridades no final de maio, a
primeira leva de casos de monkeypox parece estar relacionada a festas que
ocorreram na Espanha e na Bélgica.
Possivelmente, uma ou várias pessoas que participaram desses
eventos estavam infectadas, tiveram contato com muita gente e passaram o vírus
adiante.
Isso, por sua vez, criou cadeias de transmissão do patógeno na
comunidade que, num cenário de aumento de viagens internacionais e encontros
presenciais pós-covid, rapidamente se disseminou por cidades, países e
continentes.
Mas isso ainda não responde completamente porque essa doença se
espalhou justamente agora — e não em outros momentos do passado, quando
deslocamentos, aglomerações e festas também aconteciam.
"Por que o monkeypox demorou tanto para afetar outros
lugares? Isso ainda é um mistério para nós", admite o médico Alexandre
Naime Barbosa, vice-presidente da Sociedade Brasileira de Infectologia.
Um vírus modificado?
Uma das primeiras hipóteses que ajudariam a explicar o surto atual
seria alguma nova mutação do monkeypox, que o tornaria mais transmissível entre
as pessoas, por exemplo.
O cenário, porém, é considerado muito improvável pelos
especialistas. Este patógeno possui ,DNA como código genético, o que significa
que ele é muito mais estável e carrega mecanismos internos para reparar erros
genômicos — ao contrário do que acontece com o coronavírus, que é constituído
de RNA e apresenta mutações numa frequência bem maior.
O sequenciamento genético de amostras colhidas de
pacientes nas últimas semanas também ajuda a descartar essa teoria: o vírus em
circulação agora não parece apresentar alterações significativas no genoma
quando comparado a versões do patógeno analisadas em anos anteriores.
Damaso explica que o subtipo do monkeypox que está atuando em
vários países tem uma menor letalidade e, apesar de não ter sofrido grandes
mutações no código genético, pode ter adquirido uma espécie de "padrão de
passagem".
Vale lembrar aqui que a principal forma de transmissão acontece
por meio do contato direto e prolongado com as feridas características dessa
doença — outras possibilidades de infecção são as gotículas de saliva (que
podem carregar o vírus) e o compartilhamento de objetos de uso pessoal (como
toalhas, roupas de cama, pratos, copos e talheres).
"Até o momento, a maioria dos casos está acontecendo em
homens que fazem sexo com outros homens, e eles comumente apresentam lesões na
região genital", descreve.
"O contato com essas feridas costuma ser mais intenso durante
a relação sexual. A partir daí, o vírus é transmitido para um outro indivíduo,
que também tende a manifestar os sintomas na região genital", complementa.
Ou seja: o padrão de passagem acontece por conta do contato
próximo com as lesões, que no surto atual surgem com mais frequência na região
genital. Assim, a pessoa infectada também desenvolve lesões nessa parte do
corpo — e pode perpetuar o ciclo ao ter um contato mais íntimo com outros
indivíduos.
Mas isso, claro, não descarta a relevância das outras formas de
transmissão desse agente infeccioso que vão além da relação sexual, como o
compartilhamento de objetos e as gotículas de saliva. Prova disso são os casos
recentemente confirmados em crianças.
Proteção desatualizada?
A segunda hipótese que justificaria o espalhamento do monkeypox agora
tem a ver com o despreparo das nossas células de defesa para lidar com essa
família de vírus.
Isso porque os orthopoxvirus têm uma característica peculiar: se
você já teve contato com um deles, fica relativamente bem protegido de ser
infectado pelos outros. Trata-se de uma espécie de "imunidade
cruzada".
E é justamente aí que entra a vacinação contra a varíola, uma doença
causada pelo smallpox (também um orthopoxvirus) que foi completamente
erradicada do planeta.
A aplicação das doses foi suspensa no mundo inteiro a partir do
final dos anos 1970 — afinal, esse vírus deixou de circular entre nós e não
representava mais uma ameaça.
O mesmo não acontece com a faixa etária mais jovem, que não
recebeu esse imunizante na infância.
Não à toa, a grande maioria dos casos registrados nas últimas
semanas acometeu justamente indivíduos que ainda não alcançaram a quarta década
de vida.
Num artigo publicado no periódico Nature, a
epidemiologista Raina MacIntyre, da Universidade New South Wales, na Austrália,
explica que "a cada ano desde a erradicação do smallpox, a população com
pouca ou nenhuma imunidade contra esse grupo de vírus [os orthopoxvirus] só
aumentou".
Pode ser, portanto, que o número de indivíduos vulneráveis a esses
agentes infecciosos se tornou suficientemente alto para que um surto de
proporções internacionais se tornasse possível.
Ação em cascata
Por fim, não é exagero pensar que todos esses fatores, juntos com
uma boa dose de acaso, possam ter contribuído para que o monkeypox se tornasse
um problema global.
Ou seja: embora ainda não exista um consenso sobre as causas da
emergência de saúde pública, a baixa na imunidade, a volta das aglomerações, o
padrão de transmissão e a negligência com o vírus ajudam a entender e montar
esse quebra-cabeças complexo.
"Mas ainda precisamos
entender melhor tudo o que está acontecendo", resume Dal Ben.
Se o cenário é considerado nebuloso, existe uma clareza maior
sobre o que pode ser feito para diminuir a probabilidade de infecção com esse
vírus.
O primeiro passo é evitar as situações de maior risco, ficar
atento aos sintomas e buscar a avaliação médica se eles aparecerem.
"Qualquer lesão que comece com um edema ou uma pequena
vermelhidão e evolua para uma placa, tenha líquido, forme ferida e crostas,
pode ser monkeypox", descreve Barbosa, que também é professor da
Universidade Estadual Paulista (Unesp).
Essas manifestações podem aparecer no ânus, nos genitais, no rosto
e nas mãos.
"A lesão também pode ser acne, herpes, herpes-zóster ou uma
série de outras coisas. Mas, na dúvida, é importante procurar atendimento
médico e fazer um teste", complementa.
Caso o exame confirme a presença desse agente infeccioso, os
profissionais de saúde recomendam fazer isolamento e evitar o contato próximo
com outras pessoas até que as feridas estejam completamente cicatrizadas (mesmo
a casquinha delas ainda carrega vírus).
Ao limitar a interação e o compartilhamento de objetos de uso
pessoal, o paciente diminui o risco de transmitir o monkeypox adiante e evita a
criação de novas cadeias de contágio na comunidade.
Embora o perfil de
infectados até agora tenha se concentrado em gays, bissexuais e
homens que fazem sexo com outros homens, a tendência é que a doença afete cada
vez mais pessoas de outros grupos — isso aliás, é a evolução natural e esperada
para esse surto, de acordo com especialistas ouvidos pela BBC News Brasil.
Ainda falando em prevenção, alguns países como Reino Unido, Espanha
e Estados Unidos já iniciaram
campanhas de vacinação contra o monkeypox, mas ainda não há
previsão de quando as primeiras doses devem chegar ao Brasil.
Por ora, não está claro se a camisinha ajuda a proteger contra
esse vírus — embora o uso de preservativos continue a ser primordial para
impedir a transmissão de várias infecções sexualmente transmissíveis (ISTs),
como HIV, sífilis, gonorreia e algumas hepatites.
Na maioria dos casos de monkeypox, o quadro evolui bem e o
paciente está completamente recuperado em duas a quatro semanas.
As mortes por essa doença são consideradas raras pelas
autoridades em saúde.
Segundo o portal Our World In Data, o mundo já registrou 23,2 mil casos de monkeypox. Desses, 1,3 mil foram diagnosticados no Brasil.
(BBC)
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